* Cláudia Aparecida Cesar Rezende
O presente artigo apresenta um relato analítico do Sarau Cultural da EMEF Raul Pompéia observando-o como uma prática pedagógica que reconhece a diversidade cultural, fortalece vínculos comunitários e coloca em evidência epistemologias historicamente marginalizadas. A presença do Projeto Africanidades no evento, observa e contribui para que a escola possa constituir-se como território de produção de conhecimento, afirmação identitária e democratização das narrativas. O referencial teórico apoia-se em Paulo Freire (1987), ao compreender o sarau como prática libertadora que rompe com a lógica da educação despolitizada; em Chimamanda Adichie (2019), ao evidenciar a importância de romper com a “história única” que invisibiliza saberes plurais; e em Flavia Martins Carvalho (2021), ao destacar o protagonismo de meninas e mulheres na produção científica e cultural. Conclui-se que o sarau não é apenas um evento artístico, mas uma ação pedagógica transformadora que amplia repertórios, afirma identidades e contribui para uma educação reflexiva, comprometida com a justiça social, equidade racial e a construção de novos imaginários possíveis.

Fonte: Equipe Imprensa Jovem da Unidade Escolar
Em meio às notícias estarrecedoras como a veiculada recentemente pelas mídias — informando que uma escola de educação infantil teve suas práticas pedagógicas arbitrariamente questionadas por agentes da Polícia Militar, em uma ação hostil, desproporcional e absolutamente incompatível com a função pública que deveriam exercer — emergem, por toda a cidade, potentes experiências educativas que reafirmam o compromisso da escola pública com a pluralidade epistemológica, com a dignidade humana e com a democracia. Enquanto alguns tentam reduzir a escola ao silêncio, inúmeras ações brotam como sementes indomáveis de resistência, memória e criação. Entre essas ações, destaca-se com vigor o Sarau Cultural da EMEF Raul Pompéia, um evento que expandiu horizontes e reafirmou o papel da educação como prática de liberdade.
Quem melhor que os oprimidos, se encontrará preparado para entender o significado terrível de uma sociedade opressora? Quem sentirá, melhor que eles, os efeitos da opressão? Quem, mais que eles para ir compreendendo a necessidade da libertação? Libertação a que não chegarão pelo acaso, mas pelas práxis de sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por ela. Luta que, pela finalidade que lhe derem os oprimidos, será um ato de amor, com o qual se oporão ao desamor contido na violência dos opressores, até mesmo quando esta se revista da falsa generosidade referida. (FREIRE, 1987, p. 17) .
Reunindo uma turma de 6º ano, três turmas de 7º ano, além de professores, gestores, equipe técnica, autores, uma professora aposentada e artistas convidados, o sarau constituiu um espaço impregnado de saberes, descobertas, significados e atitude. Cada participação foi um gesto de afirmação: a afirmação de que a escola é território de conhecimento vivo e diverso, de expressão sensível e de construção coletiva. Assim, o evento não apenas celebrou a produção cultural dos estudantes, mas também reafirmou a escola como espaço de direitos humanos, de identidades múltiplas e de epistemologias diversas — lugar onde a palavra encontra corpo, onde a memória encontra futuro e onde a ancestralidade dialoga com as urgências do presente.
O Sarau Cultural realizado pelos estudantes da unidade escolar foi mais do que uma atividade artística: configurou-se como um potente exercício de formação humana, de reconhecimento identitário e de valorização das epistemologias plurais que constituem a cultura afro-brasileira. Integrado ao Projeto Identidade, desenvolvido em aula compartilhada entre as disciplinas de História e Sala de Leitura, que têm como docentes responsáveis a Profa. Silmar Leila dos Santos e a Profa. Elza Andrea Santos, respectivamente. O evento reafirmou como este ambiente educativo se apropria com rigor e sensibilidade da Educação Com/ Para e Em Direitos Humanos, assumindo seu compromisso de formar cidadãos críticos, conscientes e sensíveis às questões sociais e ambientais.
A EMEF Raul Pompéia destaca-se pelo compromisso com uma pedagogia que rompe silenciamentos históricos e valoriza diversas formas de conhecimento. Ao adotar metodologias afrocentradas, que privilegiam o fazer coletivo, o pertencimento e a conexão entre corpo, palavra e ancestralidade, a escola oferece experiências que marcam profundamente o percurso formativo dos estudantes.
Participar deste sarau foi especialmente agradável: um ambiente harmonioso, colaborativo e cheio de sentido, onde cada estudante, cada educador e cada convidado contribuiu para tecer um espetáculo que ultrapassou o estético atravessando o campo da ética, da memória e da justiça.

Fonte: Equipe Imprensa Jovem da Unidade Escolar
ABERTURA E PERCURSO DAS APRESENTAÇÕES: VOZES QUE ATRAVESSAM O ESPAÇO
A abertura do evento foi realizada pelas professoras Silmar Leila dos Santos e professora Elza Andrea Santos, idealizadoras e realizadoras do Projeto Identidade. Em seu relato inicial, a professora Elza apresentou o caminho percorrido pelas turmas, evidenciando a importância das discussões sobre identidade, pertencimento e ancestralidade na formação dos estudantes. Sua fala colocou em perspectiva a intencionalidade pedagógica do sarau: criar um espaço de partilha, reconhecimento e fortalecimento de narrativas historicamente silenciadas.

Fonte: Equipe Imprensa Jovem da Unidade Escolar
O 7º ano B apresentou primeiramente, o poema “Eu”, de Clarice Lispector e, em seguida, apresentou o coral com o Canto das Três Raças, interpretada pela saudosa Clara Nunes. Mais do que entoar versos e melodias, os estudantes demonstraram compreensão profunda do significado político e afetivo das obras, revelando consciência do que estava sendo declamado e cantado: histórias que contam o Brasil pelos olhos de quem o construiu também com dor, luta e beleza.
O professor Leonardo Vinicius de Souza Tavares, que leciona a disciplina de Português na Unidade Escolar, realizou a leitura de três contos do livro trabalhado no projeto. Suas leituras foram seguidas pela participação da Auxiliar Técnico de Educação (ATE), senhora Leuda Souza Lima de Oliveira, compondo um conjunto de quatro histórias que dialogaram intensamente com o espírito do evento e fortaleceram os sentidos que atravessavam o espaço — sentidos vinculados à ancestralidade, ao direito à memória e às múltiplas identidades que formam a comunidade escolar.

Fonte: Equipe Imprensa Jovem da Unidade Escolar
O 7º ano A apresentou o poema “Quem Sou Eu”, de Pedro Bandeira, seguido do coral da música Sorriso Negro, interpretada por Dona Ivone Lara. Na sequência das apresentações dos estudantes, ouvimos a leitura realizada pela Assistente de Direção Daniela Cristina da Rocha, que iniciou narrando sua relação com Dona Jacira — mãe de Fióti e Emicida — e de sua experiência com o conhecimento ancestral das plantas. Um momento emocionante, de relato e interpretação. Em seguida, a Professora de Geografia, Érica Tenório de Almeida complementaram este momento de emoção, ampliando camadas de memória, afeto e ancestralidade feminina.

Fonte: Equipe Imprensa Jovem da Unidade Escolar

Fonte: Profa. Cláudia Aparecida Cesar Rezende
O 7º ano C apresentou o contundente poema “Me Gritaram Negra”, de Victoria Santa Cruz, seguido do coral declamando “Negro Zumbi”, gravado na belíssima voz de Leci Brandão, reafirmando assim, a força da identidade negra como movimento político e estético. Tal apresentação foi seguida pelo depoimento feito pela Profa. Maria Valéria Leme, professora convidada especialmente para o Sarau Cultural por ter atuado na Sala de Leitura da Unidade por vários anos e que, atualmente está aposentada, completou o conjunto de vozes que ecoaram consciência, resistência e pertencimento.

Fonte: Profa. Cláudia Aparecida Cesar Rezende
As alunas Franciele, Beatriz e Maria Júlia, do 7º ano B, realizaram uma belíssima leitura do poema “Sentimentos”, escrito pela própria estudante Franciele. Foi um momento de valorização da escrita estudantil, reafirmando que a escola é um território fértil para o surgimento de novas autoras e novas narrativas.
HISTÓRIAS E TERRITÓRIOS: MEMÓRIA VIVA DA ZONA NORTE
O escritor Herivelton Silva realizou uma leitura marcante do primeiro capítulo de seu romance Mukambu, ambientado na antiga fazenda Boi –Preto na região da Freguesia do Ó. Antes da leitura, o autor apresentou um posicionamento histórico que problematiza as narrativas oficiais, trazendo à luz fatos omitidos sobre a resistência dos povos sequestrados em África. Além disso falou com os jovens sobre o mito da democracia racial e apresentou um panorama que mostra taxas de mortalidade por diferentes motivos que recai sobre a população negra. Sua fala foi um ato de reivindicação da memória e um gesto de justiça histórica. Ao final de sua fala, distribuiu vários livros de sua autoria aos estudantes.

Fonte: Equipe Imprensa Jovem da Unidade Escolar
Houve também a leitura do livro Meninas Sonhadoras, Mulheres Cientistas, apresentando a trajetória de Amanda Costa, jovem ativista que luta pela democratização da pauta climática e pelo enfrentamento ao racismo ambiental. Esta leitura estabeleceu um diálogo direto com a minha pesquisa, especialmente por reforçar que a crise climática não é neutra: afeta de maneira desproporcional populações racializadas e territórios vulnerabilizados. Amanda Costa é referência justamente por traduzir esse debate de forma acessível às periferias, fortalecendo uma educação climática de base comunitária.
A artista Gabi Antero juntamente com seu parceiro de apresentação Jairo Sampaio encantou o público com a história sobre o Desaparecimento do Sol e, em seguida, trouxe cânticos de capoeira que ecoaram força, ancestralidade e espiritualidade. Em continuidade, o evento recebeu uma potente roda de capoeira, com participação dos estudantes Lucas Willian e Guilherme (7º A); Maria Eduarda e Miguel (7º B); Davi, (7º C) e Walisson (6º A). A roda contou também com a presença especial da diretora da escola, Sra. Fernanda Costa, que jogou com os jovens reforçando a importância da capoeira como prática educativa que une esporte arte, redimensionando a vivência cultural e comunitária.

Fonte: Equipe Imprensa Jovem da Unidade Escolar
MINHA PARTICIPAÇÃO: O ESPELHO DA VERDADE E A LUTA CONTRA A HISTÓRIA ÚNICA
Minha intenção inicial era ler uma história de Eva Furnari, que aborda a relação entre consumo, desejo e identidade. Contudo, após ouvir o relato inicial da professora Elza, optei por narrar A História “Espelho da Verdade”, um conto presente na oralidade africana. Estabeleci um diálogo entre o conto com o livro “O Perigo de uma História Única”, de Chimamanda Ngozi Adichie. A escolha se deu porque o projeto inteiro convidava justamente a romper narrativas únicas e ampliar horizontes interpretativos.
Relacionei também o conto, e o que disse a eles ao símbolo adinkra Sankofa, cujo ensinamento — “volte e pegue o que ficou para trás” — reforça que compreender o passado é condição para construir, com sabedoria e coragem, o futuro.

Fonte: Equipe Imprensa Jovem da Unidade

Fonte: Profa. Cláudia Aparecida Cesar Rezende
ENCERRAMENTO: UMA ESCOLA ONDE COMUNIDADE E ANCESTRALIDADE CAMINHAM JUNTAS
A equipe gestora encerrou o evento destacando o envolvimento de todos e a potência transformadora do Sarau Cultural. O que se viu foi muito mais que apresentações: foi uma celebração da identidade, um gesto de educação emancipadora e um compromisso com a ancestralidade, a coletividade e a justiça.
O Sarau da EMEF Raul Pompéia reafirma que quando uma escola se compromete com seus estudantes e com a história plural do Brasil, o conhecimento se transforma em movimento — movimento que inspira, fortalece e alimenta o sonho de uma sociedade mais justa, mais consciente e de uma humanidade verdadeiramente empática.
Se no início deste texto evocamos a tentativa de cerceamento e medo que ainda assombra práticas pedagógicas comprometidas com a liberdade, encerramos reafirmando que esses tempos de silenciamentos estão se findando. A escola pública resiste. A escola pública floresce. E é precisamente porque educação, arte e cultura são — e sempre foram — os grandes semeadores de novos tempos, que experiências como o Sarau Cultural da EMEF Raul Pompéia continuam a germinar, transformando cada gesto educativo em um ato de coragem, em uma afirmação de humanidade e em uma promessa de futuro digno, bom e feliz para todos.

Fonte: Equipe Imprensa Jovem da Unidade
REFERÊNCIAS
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
CARVALHO, Flavia Martins. Meninas sonhadoras, mulheres cientistas. Rio de Janeiro: Papirus 7 Mares, 2021.

* Mestranda do programa de Pós-graduação em Ensino e História das Ciências e da Matemática pela UFABC, Pesquisadora das linhas: Educação em Direitos Humanos e Africanidades, mulheres e Educação Antirracista nas infâncias. Pedagoga, atuante na rede municipal de São Paulo. Especialista em Educação em Direitos Humanos pela UFABC, Letramento e Literatura Infantil, Sociologia e Educação Étnico-raciais e Práxis antirracista. Possuo extensão em Direito e Questões Raciais pela Escola Paulista de Magistratura. Coautora do livro: O que pode a escola vazia e autora do projeto de intervenção: Palavra aberta com mulheres. Colaboradora de documentos oficiais como o Currículo da Cidade – Educação Infantil/ Orientação Normativa de Registros na Educação Infantil/ e Leitura Literária na Educação Infantil: Inter-relações Humanizadoras. Eleita delegada nas Conferências Estaduais por Igualdade Racial, articula sua atuação acadêmica, política e cultural. Integra ainda grupo de cultura popular de Maracatu em São Paulo, onde atua como professora de dança, promovendo apresentações e diálogos formativos em escolas e espaços públicos.

A luta diária pelo pertencimento é dolorosa e muito longe de ser romantizada, nos coloca em enfrentamento constante com as heranças culturais passadas pelas gerações. Encontrar apoio e força junto daqueles que acreditam que a educação é a ferramenta mais poderosa contra as sombras da opressão que ainda nos rodeia é acreditar que o nosso trabalho ele também é ancestral, é saudar aos que vieram antes de nós, o que estão conosco e os que ainda virão. Lindo trabalho efetuado pela EMEF Raul Pompéia e todos os convidados.
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