COMO ENSINAR, AQUILO QUE NÃO SE APRENDE? *

** Silmar Leila dos Santos

Desde 2008, o Estado brasileiro decretou, por meio da Lei de nº 11.645, que as escolas de educação básica devem, obrigatoriamente, promover estudos sobre a história e a cultura indígena e afro-brasileira. Esta determinação reforça uma lei anterior, a de nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003, que alterou o artigo 26 da Constituição Brasileira, determinando a implementação de uma educação antirracista e de valorização dos negros e dos povos originários do Brasil. Registra-se, portanto, que há mais de 20 anos, os responsáveis pela educação brasileira foram chamados a implementar nos currículos escolares, informações sobre a história e a cultura dos indivíduos oriundos dos diferentes povos africanos, que foram sequestrados de seu continente e trazidos ao território brasileiro da maneira mais cruel possível, e hoje, seus descendentes correspondem  à 56% da população brasileira. Paralelo a isso, temos a dizimação dos povos originários, denominados de indígenas, nativos do Brasil ou povos originários, e que correspondem atualmente, a 305 etnias, segundo dados no último Censo demográfico realizado, no ano de 2010. Diante destas importantes leis, a expectativa era de que as novas gerações de estudantes passassem a compreender a diversidade e a riqueza étnica da sociedade brasileira, de maneira a diminuir situações de preconceito, racismo e discriminação que, por décadas, se pautaram na falácia de uma pretensa democracia racial no país. Contudo, se faz necessário descrever que, apesar da legislação tornar obrigatória tal abrangência no currículo da formação básica, não há nenhum artigo ou lei complementar que obrigue aos estabelecimentos de ensino superior a oferecer tal formação aos docentes, que são os responsáveis diretos por promover essa ampliação curricular que envolve a história e a cultura dos povos indígenas e afro-brasileiros.

Representação das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008.
Fonte: https://pt.scribd.com/presentation/661115180/LEI-N%C2%BA-10639.
Acesso em 04/05/2025.

Legislação brasileira: adequações para reparação histórica

Promulgada em 1988, a Constituição atual brasileira é denominada de Constituição Cidadã, por abarcar em seus artigos o fortalecimento da efetivação dos direitos fundamentais aos cidadãos brasileiros, sejam eles civis, políticos e sociais: saúde, educação, assistência social, etc. Diante dessa característica e das reinvindicações dos movimentos negros quanto a reparação histórica aos descendentes de povos africanos, no ano de 2003 foi sancionada a Lei de nº 10.639, oriunda do Projeto de Lei apresentado pelos então deputados federais Ben-Hur Ferreira e Esther Grossi, e que alterou artigo 26 A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB), determinando a implementação de uma educação antirracista e de valorização dos negros e dos povos originários do Brasil, a partir da obrigatoriedade do ensino de História e Cultura afro-brasileira para estudantes da educação básica.

            Cinco anos depois, após reinvindicação de representantes dos povos originários, surge a Lei 11.645/2008, que amplia a obrigatoriedade do ensino na educação básica, também sobre a história e a cultura indígena.

            Identifica-se, portanto, que todo este processo de se garantir a obrigatoriedade do ensino sobre os povos originários e africanos, tende a promover um resgate de parte da história brasileira que sofreu, de fato, um apagamento que foi pautado na falácia de que, no Brasil o que prevalecia era a denominada “democracia racial”. Falácia essa que consolidou estereótipos sobre os povos indígenas a consolidação do racismo estrutural (ALMEIDA, 2020).

            Do ponto de vista educacional, retomo a opinião da Profa. Lara Santos Rocha, em entrevista ao CENPEC (Centro de Estudos e Pesquisa em Educação, Cultura e Ação Comunitária):

Quando você torna o ensino de história e culturas africanas e afro-brasileiras obrigatório nos currículos escolares da educação básica nacional, você dá respaldo para que os professores e gestores tratem dessa questão na sala de aula. Não é mais uma questão opcional, mas sim uma obrigatoriedade trabalhar a questão do racismo na educação – em um país extremamente racista (CENPEC, 2023).

Representação de cultura afro e indígena.
Fonte: https://pt.quizur.com/trivia/cultura-indigena-e-africana-VEQw.
Acesso em 04/05/2025.

Será mesmo necessário fomentar a formação docente na EDH?

No que se refere à formação docente sobre as relações étnico raciais, localizamos o artigo de Gomes e Santos (2021), que revelam percentuais importantes no que tange à educação étnico racial***. Segundo os autores:

74,1% dos professores participantes da pesquisa, declararam não ter recebido […] formação [para as questões étnico raciais] durante a graduação, enquanto que um número menos expressivo (25,9%) declarou ter sido contemplado com algum tipo de ensino para as relações étnico raciais.

No que se refere à formação continuada dos docentes, os autores descreveram que;

[…] os profissionais foram indagados se, no período de atuação no magistério, receberam algum tipo de formação voltada para a educação das relações étnico-raciais. A maioria dos docentes pesquisados (81,5%) declarou que não recebe formação para tal temática, enquanto que uma pequena minoria (apenas 18,5%) afirmou ter recebido algum tipo de formação para a educação das relações étnico-raciais durante o período em que atuam no magistério.

Identifica-se, assim que os dados apresentados por Gomes e Santos (2021), corroboram a percepção de que ainda temos muito que investir em formação docente, inicial e continuada, sobre diversidade cultural brasileira. Assim, se realmente desejamos que as Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, passem a ser desenvolvidas nas escolas brasileiras, de maneira satisfatória, se faz necessário oferecer essas formações com qualidade e com foco não só na educação étnico-racial, mas também na Educação em Direitos Humanos.

Como ensinar na sala de aula, o que não se aprende na faculdade? Eis um grande paradoxo!

Importância de uma formação docente de qualidade.
Fonte: https://www.tecnicageracao.com.br/blog/um-curso-tecnico-pode-reduzir-a-duracao-da-faculdade/. Acesso em 04/05/2025.

Diante desses apontamentos, identifica-se  a existência de um grande PARADOXO, uma vez que, se por um lado há leis que impõem aos docentes da educação básica, a obrigatoriedade em tratar de questões étnico-raciais na sala de aula, por outro lado, não há nenhuma referência legal, que se dirija as Instituições de Ensino Superior, no que se refere a obrigatoriedade de formar os docentes com conhecimento, habilidades e competências que lhes proporcionem repertório acadêmico e pedagógico, para que possam atender à essas Leis, de modo a combater a reprodução de estereótipos e preconceitos junto aos alunos e alunas da educação básica.

            Tal constatação se torna ainda mais preocupante, quando se identifica que as questões étnico-raciais são parte de um grupo que se pode identificar como de minorizados, dentre eles: a população LGBTIA+; as mulheres; as crianças e os idosos; as pessoas em situação de rua; as pessoas com deficiência (PcD). Desta forma, muito provavelmente, nenhuma problemática social que envolve esses grupos, está sendo abordada no cotidiano das salas de aula do Brasil.

            Considera-se, portanto, de extrema urgência, que a sociedade brasileira se atente a este paradoxo e busque desenvolver um sério debate sobre a necessidade de que os cursos iniciais de formação docente ofereçam a disciplina Educação em Direitos Humanos, inicialmente (e com urgência!) nos cursos de licenciatura, com gradual abrangência à todos os demais cursos de formação superior, considerando que a questão da Educação em Direitos Humanos perpassa toda a sociedade brasileira e não se restringe apenas em munir os docentes no cumprimento de leis que precisam sair do papel e adentrar as salas de aula e, todos os demais espaços públicos e privados possíveis.

*** Infelizmente, neste artigo não nos é revelado a referência numérica de professores que participaram da pesquisa. No entanto, acredita-se que os percentuais apresentados possam refletir a realidade de, ao menos parte dos docentes brasileiros.

* Texto adaptado do artigo A obrigatoriedade do ensino de história e cultura indígena no Brasil e a ausência dessa obrigatoriedade para a formação docente, apresentado no VIII Congresso Internacional de Direitos Humanos de Coimbra (2023).

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. (Feminismos Plurais / coordenação de Djamila Ribeiro).

CENPEC: 20 anos da Lei 10.639: por mais avanços rumo a uma educação antirracista. Por Stephanie Kim Abe, em 09/01/2023. Disponível em:

https://www.cenpec.org.br/noticias/20-anos-da-lei-10-639?campaign=20103032771&content=%7bads%7d&keyword=o%20que%20%C3%A9%20a%20lei%2010.639&gclid=Cj0KCQjwyLGjBhDKARIsAFRNgW93XdjybkHsDjfL0S1irZIFUqigdDAHaoArTRpRJ5idQsX1GIMIndEaAtUvEALw_wcB. Acesso em 10/10/2023.

GOMES, Matheus Henrique e SANTOS, Vanessa Cristiane de Freitas Fernandes. A formação de professores para a educação das relações étnico-raciais: o estado da arte. Anais do Congresso Internacional de Estudos das Diferenças & Alteridade. 2021. Disponível em: https://www.even3.com.br/anais/congressoestudosculturais2021/362797-a-formacao-de-professores-para-a-educacao-das-relacoes-etnico-raciais–o-estado-da-arte/. Acesso em 10/10/2023.

PEREIRA, M. M. e SILVA, M. S. Percurso da lei 10639/03: antecedentes e desdobramentos. Linguagens & Cidadania: v.14, jan./dez., 2012. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/LeC/article/view/23810. Acesso em 10/10/2023.

** Profa. Silmar Leila dos Santos é doutora e mestre em Educação: História, Política, Sociedade pela PUC/SP; possui licenciada em História. É Profa. Titular de História no Ensino fundamental II e Médio na rede municipal de educação de São Paulo, desde o ano 2000. Atua na formação docente desde 2006, lecionando as disciplinas de História da Educação, Sociologia da Educação, Filosofia da Educação, Antropologia e Educação, Currículo, Políticas educacionais e Educação em Direitos Humanos. É integrante do Grupo de Pesquisa CNPQ Educação em Direitos Humanos/UFABC; professora colaboradora do Projeto Africanidades/UFABC; organizadora da Coluna do Grupo de Pesquisa Educação em Direitos Humanos da UFABC na Revista ContemporArtes e membro titular do Comitê Nacional de Educação e Cultura em Direitos Humanos (CNECDH): 2024-2026. Contato: professorasilmarleila@gmail.com

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