CINEMA E DIREITOS HUMANOS: CONHECIMENTO E CULTURA POR TODO O MUNDO – GRÃ-BRETANHA E CHINA

* Alfredo Oscar Salun

A premiação no Oscar do filme Ainda estou aqui (Brasil/2024) de Walter Salles Jr. que retrata o período ditatorial e a violação dos Direitos Humanos pelo Estado, que foi uma das características dos regimes autoritários ao redor do mundo na década de 1970. A lista infelizmente seria muito extensa, mas alguns exemplos de triste memória como o Chile (Pinochet), Romênia (Ceausescu), Haiti (Baby Doc), Camboja (Pol Pot), Uganda (Idi Amin), Espanha (Francisco Franco) ou Nicarágua (Somoza) não podem ser esquecidos ou minimizados.

Foto divulgação filme Ainda Estou Aqui (2024). Disponível em https://gshow.globo.com/globoplay/noticia/ainda-estou-aqui-ganha-novo-poster-oficial-apos-vitoria-no-oscar.ghtml. Acesso em 01/04/2025.

Para nós que defendemos os Direitos Humanos sem seletividade, estou aproveitando esse importante espaço para fazer a indicação de filmes recentes que abordam a desigualdade social, exploração do trabalho, machismo, racismo, homofobia, preconceito e violência estatal. São obras interessantes em várias partes do mundo no século XXI: Israel, Irã, China, EUA, Grã Bretanha, Japão, Coréia do Sul, França, Índia e Rússia. Alguns filmes são denúncias discretas e outras mais assertivas sobre os problemas em suas próprias sociedades e em alguns casos, o diretor teve de se exilar por perseguição estatal. Estas obras premiadas e reconhecidas pela crítica e público, apontam que a sétima arte pode ter um caráter político e contestador.

Necessário assumir que TODOS regimes violadores (em qualquer grau) devem ser condenados de prontidão, porque nosso compromisso é com a defesa das vítimas. Escolhemos alguns países para proporcionar um viés abrangente e sem hipocrisias, nesse primeiro texto serão analisados Grã Bretanha e China.

GRÃ-BRETANHA

Os dois filmes escolhidos do britânico Ken Loach são representações universais dos problemas que afligem a classe trabalhadora ocidental em diversos países industrializados, são eles: Você não estava aqui (2018) que aborda a situação da classe trabalhadora inglesa explorada no sistema de uberização e Eu, Daniel Blake (2016) sobre a questão do desemprego e dificuldades no sistema de seguro.

Aclamado pela crítica e vencedor da Palma de Ouro em Cannes (2016) Eu, Daniel Blake é a história de um carpinteiro inglês (Daniel Blake) de 59 anos que precisa enfrentar a burocracia para receber suporte financeiro após sofrer um ataque cardíaco e ficar sem condições de trabalhar. Em uma situação constrangedora e injusta tem de provar sua incapacidade, mas a burocracia não parece interessada em admiti-la ou mesmo prover um tratamento digno. Ainda tenta encontrar emprego, mas sua idade é fator de dificuldade inclusive pelo preconceito etário. Durante sua jornada pelas repartições, mantem amizade com uma mãe solteira, Katie e seus dois filhos que também passam por problemas econômicos e sociais.

Com o sugestivo título “Eu, Daniel Blake: Ken Loach e o escândalo do sistema de benefícios da Grã-Bretanha” o jornal The Guardian explica que o filme de Ken Loach defende que:

 “a pobreza é sistêmica e não se deve a falhas de caráter, como muitos políticos insinuam e foi capaz de capturar a demolição da alma de pessoas decentes, à medida que o contrato social entre cidadão e governo é despedaçado pela rapacidade do neoliberalismo”.

Para os críticos de direita esse filme é “pura propaganda comunista”, mas o diretor e seus auxiliares pesquisaram exaustivamente a história recente inglesa e encontraram muitos casos semelhantes. Completa a análise citada anteriormente “a trama tem sim correspondência em casos de pessoas que tiveram o mesmo processo de Daniel Blake frente aos órgãos de Serviço Social no Reino Unido para conseguirem aposentadoria por invalidez ou auxílio doença”.

Nas palavras da Agnés B para a matéria citada do The Guardian:

“É um filme importante – há tantas histórias sobre casais e outras coisas chatas na França agora, mas este filme é político, é realista, é comovente, tem que ser visto”.

Completa ainda que:

“[…]E pode ser em qualquer lugar: pode ser em Paris, porque na França é o mesmo. Você espera horas para ter alguma ajuda, e há muitos que estão desempregados”.

Em suma, o desamparo social e a crescente desigualdade provocada por políticas neoliberais são assuntos que fazem parte dos problemas cotidianos que afetam milhares de pessoas ao redor do mundo.  

No filme Você não estava aqui (2018) Loach retoma sua característica abordagem realista da sociedade, como classificou Bruno Victorino (2019), são dramas que retratam pessoas desfavorecidas na Inglaterra. O enredo incide sobre uma família cujo pai (Rick) em situação econômica ruim e seduzido pela promessa de “ser o próprio patrão” trabalha numa empresa de entrega de encomendas a domicílio e a mãe (Abby) é cuidadora/assistente social. Ambos se sujeitam as condições precárias e horas extenuantes para pagar as contas e manter dois filhos adolescentes, assim, se esvai o equilíbrio mental da família.

Em resenha sobre o filme, Reece Beckett (2020) explica que o foco principal é sobre Ricky que se vê “seduzido pela ideia atraente de se tornar um motorista de entregas autônomo depois de ter sido demitido de seu emprego como operário da construção civil”. Completa ainda que emulando a realidade, ele vai se afundar em um trabalho incrivelmente exaustivo para empatar os custos da gasolina e o aluguel da van. Essa situação vem ao encontro com um pequeno texto do Professor de Ciência Política da Universidade de Brasília Luis Felipe Miguel (2025), que comenta como o discurso do “empreendedorismo glamouriza a precariedade” e esconde as desigualdades. Em conjunto com a meritocracia, superação e resiliência formam o núcleo da ideologia neoliberal voltada às populações mais pobres.

Foto divulgação do filme Você não estava aqui. Disponível em https://www.vivoplay.com.br/details/movie/voce-nao-estava-aqui-legendado-8079911. Acesso em 01/04/2025.

CHINA

O Professor de Letras Chinesa (USP/FFLCH) Shu Chang-Sheng no artigo “Interações entre Mao e os Guardas Vermelhos na Revolução Cultural” comenta sobre as auguras que milhares de pessoas sofreram durante a Revolução Cultural. Evitando a romantização que caracteriza alguns autores, descreve o cenário chinês desse período de forma realista e crítica. Recentemente, diversos historiadores chineses tem utilizado a História Oral para entrevistar vítimas da Revolução Cultural no governo Mao Tse Tung, cujos relatos trágicos estão disponíveis para consulta nas instituições universitárias do país.

Esse contexto é retratado no filme Voltando para a casa (2014) do premiadíssimo Zhang Yimou que na sua juventude assim como o Presidente Xi Jin Pin foram detidos e mandados para Campos de Reeducação. O enredo gira em torno de Lu Yanshi que na Revolução Cultural no início de 1970 é enviado para um campo de trabalho forçado. Isso era um opróbrio para família, sua filha e esposa em várias cenas são assediados moralmente pelos chefes locais.

Com o fim da Revolução, ele retorna para casa, mas encontra sua esposa Feng Wanyu que perdeu a memória, sem reconhecê-lo fica esperando pelo retorno do marido. A reconstrução social chinesa pós Revolução Cultural com a queda de vários líderes locais que a apoiavam é citado passageiramente. Lembremos que os principais auxiliares (Bando dos Quatro) de Mao Tse Tung após sua morte foram julgados e condenados durante o governo de Deng Xiao Ping.

Cartaz do filme Voltando para casa. Disponível em https://www.cafecomfilme.com.br/filmes/voltando-para-casa. Acesso em 01/04/2025.

Essas experiencias traumáticas também estão presentes no filme, do mesmo diretor, One Second/Um Segundo (2018/2020) sobre pessoas comuns presas injustamente na Revolução Cultural. No caso o personagem central conhecido como “fugitivo” procura encontrar um filme/documentário onde sua filha aparece por apenas um segundo. Ele acaba fazendo amizade com dois órfãos (Liu e seu irmãozinho) que praticam pequenos furtos para sobreviver, cuja mãe faleceu e o pai os abandonou. De acordo com David Ehrlich as autoridades chinesas teriam ficado receosos com uma premiação no “Urso de Ouro Festival” que poderia atrair atenção para a pobreza causada pela Revolução Cultural. Entretanto, um filme anterior chamado Blue Kite/Pipa Azul (1993) de Tian Zhuangzhuang já havia denunciado de forma mais contunde aquele período, tanto que devido pressões da censura teve de fazer a montagem final no exterior. A Professora de Cinema Asiático (ECA/USP) Cecilia de Mello indica que esses diretores de um modo geral, repudiavam Hollywood pela falta de conexão social e o Realismo Socialista por seu excesso ideológico e restrição artística. Optaram por um cinema engajado, com crítica a sociedade chinesa, patriarcado, sexualidade, opressão feminina e a Revolução Cultural.

Foto divulgação filme Um segundo. Disponível em https://www.melhoresfilmes.com.br/movies/%E4%B8%80%E7%A7%92%E9%92%9F. Acesso em 01/04/2025.

Essa veia crítica está presente em outro importante diretor, Jia Zhangke que ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza (2006) com o filme Em busca da vida. Ele pertence a um grupo posterior que explora o consumismo e individualismo crescente na sociedade urbana chinesa a partir dos anos 1990, fato que explica o sucesso junto a juventude por seu cinema independente.

Capa DVD do filme Em busca da vida. Disponível em https://www.amazon.com.br/Em-Busca-Vida-Sanxia-Zhang-Ke/dp/B084HJ9PLM. Acesso em 01/04/2025.

O filme Um toque de Pecado (2013) de Jia Zhangke (vencedor do prêmio de melhor roteiro em Cannes 2013) tem como mote a exploração dos trabalhadores de baixa renda nas fábricas e outros empreendimentos chineses na atualidade. Apesar da violência, descreve os trabalhos precários e os desmandos/enriquecimento das elites burocráticas locais.

Conforme artigo de Marcio Ferrari (2015) a Professora Cecília Mello aponta que Jia, embora vigiado pelo governo chinês, não se furta à incumbência de ser o principal retratista contemporâneo do país:

“Apesar de toda a diversidade de idiomas e culturas da China, sempre houve um esforço oficial de manter uma ideia do país não como uma nação, mas como uma civilização”.

Para quem quiser conhecer mais sobre cinema chinês outras dicas são o Prof. Zhang Xudong de Estudos do Leste Asiático e Literatura Comparada na Universidade de Nova York e o Prof. Camilo Soares do Curso de Cinema e Audiovisual da UFPE.

Foto divulgação filme Um toque de pecado. Disponível em https://cinecartaz.publico.pt/filme/china–um-toque-de-pecado-327441. Acesso em 01/04/2025.

Bibliografia

AGNES B. After seeing the film, I felt I was losing a new Family. In: The Guardian. The Observer.  I, Daniel Blake: Ken Loach and the scandal of Britain’s benefits system. 2016. Disponível em: https://www.theguardian.com/film/2016/sep/11/i-daniel-blake-ken-loach-director-film-movie-benefits-system.  Acesso em 19/03/2025.

BECKETT, Reece. Sorry We Missed You by Ken Loach (resenha). Cinematary. 02/03/ 2020. Disponível em: https://www.cinematary.com/writing/2020/3/2/sorry-we-missed-you-2020-by-ken-loach Acesso 25/03/2025.

CHANG-SHENG, Shu. Interações entre Mao e os Guardas Vermelhos na Revolução Cultural. Diálogos – Revista do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História, vol. 9, núm. 3, 2005, pp. 137-166 Universidade Estadual de Maringá Maringá, Brasil. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/3055/305526547015.pdf.  Acesso em 23/07/2020.

EHRLICH, David. “One Second”: Review. Zhang Yimou’s Censored Ode to the Power of Cinema Finally Sees the Light of Day. Movies: Indie Wire. Setembro de 2021. Disponível em: https://www.indiewire.com/criticism/movies/one-second-review-zhang-yimou-1234665559/ Acesso em 12/03/2025.

FERRARI, Márcio. Os olhos da China (Filmes do diretor Jia Zhang-ke ganham o mundo com visão crítica sobre o país). Fapesp Pesquisa. Edição 236 out 2015. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/os-olhos-da-china/ Acesso em 03/02/2025.

MELLO, Cecília. O cinema de Jia Zhangke. Revista Eletrônica de Jornalismo Cientifico. Resenha Dossiê 224. 12\03\ 2021. Disponível em: https://www.comciencia.br/o-cinema-de-jia-zhangke/ Acesso em 23/05/2024.

MIGUEL, Luis Felipe. O discurso do “empreendedorismo” glamouriza a precariedade e passa pano para as desigualdades. Amanhã não existe ainda. 17/02/2025. Disponível em: https://lfmiguel.substack.com/p/o-pesadelo-meritocratico?utm_source=post-email-title&publication_id=3732832&post_id=155583090&utm_campaign=email-post-title&isFreemail=true&r=yyko&triedRedirect=true&utm_medium=email. Acesso 26/03/2025.

THE GUARDIAN. The Observer.  I, Daniel Blake: Ken Loach and the scandal of Britain’s benefits system. 2016. Disponível em: https://www.theguardian.com/film/2016/sep/11/i-daniel-blake-ken-loach-director-film-movie-benefits-system. Acesso em 19/03/2025.

VICTORINO, Bruno. “Sorry We Missed You”, de Ken Loach: uma família à beira do colapso. Comunidade Cultura e Arte. 18/11/2019. Disponível em: https://comunidadeculturaearte.com/sorry-we-missed-you-de-ken-loach-uma-familia-a-beira-do-colapso/. Acesso em 21.03.2025

XUDONG, Zhang. Poética da desaparição: os filmes de Jia Zhangke. Dossiê China. Novos Estudos CEBRAP (89). Mar/ 2011 (publicado originalmente na New Left Review, 63, maio-jun.2010, pp. 71-88). Disponível em: https://www.scielo.br/j/nec/a/4mLVqL3ptNpFmGDkGw54Gtw/?lang=pt&format=pdf  Acesso 12/09/2018.

* Doutor em História Social pela FFLCH/USP; Mestre em História (Ensino e Educação) pela PUC/SP e Licenciatura Plena em História/Estudos Sociais. Possui sólida experiência docente no ensino superior e educação básica. Autor dos livros: Corinthians e Palestra Itália: Futebol em Terras bandeirantes (Todas as Musas, 2015), Zé Carioca vai a Guerra (Editora Pulsar, 2004), Revolucionários e tiranos: temas de Historia Contemporânea, Editora Todas as Musas (2011); co-autor: Logística Reversa, sustentabilidade e educação, Editora Todas as Musas (2013) e capítulo sobre a Força Expedicionária Brasileira in World War II Re-explored. Berlim. Peter Lang, 2019 e co-autor do capítulo Aspects of Brazilian Culture during the Military Dictatorship and the Cold War na coletâneaThe Cold War Re-Called: 21st Century Perceptions of the Worldwide Geopotical Tension (Peter Lang, 2024), além de diversos artigos na área de História e Educação. Como professor atuou nas instituições PUC/SP, Anhanguera e UniABC, nesta desenvolveu diversas atividades entre 1996 e 2013; orientador de TCC e Iniciação Científica, orientador de estágio, coordenador de grupo de pesquisa, coordenador do curso de História e outras funções administrativas e acadêmicas. Na Uninove foi professor no curso de História (presencial e EAD) e orientador de TCC. Atuou como Professor e orientador de TCC do curso de Pós-Graduação “Educação e Direitos Humanos” na UFABC e em 2019 foi orientador de TCC no curso de Pós-Graduação/Especialização “Gestão Pública” pela UNIFESP/UAB. Foi Professor no curso Educação em Direitos Humanos/UFABC do conteúdo Fundamentos Históricos e Sociológicos e Marcos Regulatórios dos Direitos Humanos/Orientação de TCC. É pesquisador associado do Núcleo de Pesquisa de História Oral (NEHO/USP) e do GEINT (Grupo de Estudos do Integralismo). Tem experiência na elaboração de materiais didáticos para os cursos de História e Pedagogia sobre Aspectos da cultura afro-brasileira; Sustentabilidade e Educação. Realizou pesquisa e tem desenvolvido projetos em relação ao Futebol e Sociedade; A FEB e a Segunda Guerra Mundial; História Oral e Cultura Popular; Nazismo\Fascismo; Educação e Meio Ambiente. É pesquisador integrante do Grupo de Pesquisa Educação em Direitos Humanos/UFBC – CNPq.

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