O FUROR COR DE ROSA, APROPRIAÇÃO DA LUTA DAS MULHERES E AS ESTRATÉGIAS DA BRANQUITUDE: O CASO BARBIE

** Profa. Dra. Rute Rodrigues dos Reis

 Há poucas semanas atrás, as salas de cinema eram tomadas por uma onda cor-de-rosa. Nada contra a paleta de cores, porém, o que impressionava era a variedade de tons de rosa, seguidos dos modelitos que lhe dava forma. O advento do filme Barbie no cinema, se tornando uma das maiores bilheterias dos últimos tempos, nos espaços onde entrou em cartaz, saltou aos olhos e, nos lançou ao mundo cor-de-rosa, mesmo que involuntariamente. Ao passar perto de um lugar de exibição do filme Barbie, éramos tomados pelos símbolos e a expressão hi barbie, como concretude de imersão nesse mundo da fantasia/quase perfeição, mas que pelo enredo do filme, vai revelar o drama da boneca/quase humana. Chamava também a atenção, o entusiasmo de grande parte do público na sala de espera dos cinemas, além dos trajes cor-de-rosa, apropriados para missão tão ilustre.

Divulgação Filme Barbie (2023). Disponível em https://www.barbiefilme.com.br/. Acesso em 09/10/2023.

O sucesso de bilheteria alcançou espaços tradicionalmente reconhecidos como um circuito alternativo de uma “pegada cult”, com exibição de filmes fora do circuito comercial e hollywoodiano. E, pasmem! Essas salas estavam lotadas! Consegui ingresso para um domingo, às treze horas, na segunda fileira, o que me causou um desconforto primeiro físico. Quase fiquei de ponta cabeça para conseguir visualizar a tela de tão próximo que estava dela, mas eram os poucos lugares que restavam na compra feita quatro horas antes da sessão. 

A sessão se iniciou com aplausos, isso mesmo, aplausos! Afinal a expectativa para muitos era de assistir a Barbie com uma narrativa feminista. Essa narrativa se efetiva em cada discurso de efeito, ganhando mais intensidade quando se destina ao boneco Ken, seu namorado. Confesso que fiquei na dúvida se Ken era namorado, talvez o namorar das bonecas/quase humanas seja diferente.

O entusiasmo se manteve grande, pois os aplausos se repetiram a cada frase de efeito, levando o público ao delírio.  Em Magia e técnica, arte e política, texto publicado inicialmente nos anos de 1935/1936, Walter Benjamin (1987) ao refletir sobre o cinema formula que,

(…) Nossos cafés e nossas ruas, nossos escritórios e nossos quartos alugados, nossas estações e nossas fábricas pareciam aprisionar-nos inapelavelmente. Veio então o cinema, que fez explodir esse universo carcerário com a dinamite dos seus décimos de segundo, permitindo-nos empreender viagens e venturosas entre as ruínas arremessadas à distância. (…) O cinema introduziu uma brecha na velha verdade de Heráclito segundo o qual o mundo dos homens acordados é comum, o dos que dormem é privado. E o fez menos pela descrição do mundo inteiro. (…) A hilaridade coletiva representa a eclosão precoce e saudável dessa psicose de massa. (…) Seu percursor foi o excêntrico. Nos novos espaços de liberdade abertos pelo filme, ele foi o primeiro a sentir-se em casa. É aqui se se situa Chaplin, como figura histórica
(BENJAMIN, 1987, p. 189-190).
Charlie Chaplin interpretando Carlitos. Disponível em https://diariodocomercio.com.br/variedades/mostra-reune-mestres-das-comedias-do-cinema-mudo/. Acesso em 09/10/2023.

Importante destacar que toda a narrativa apresentada no filme Barbie é sobre a condição feminina de lutas travadas por séculos pelas mulheres. Poderíamos dizer que a tradução para as massas dessas histórias, lutas, problemáticas, que o patriarcado consolidou em grande parte das sociedades sempre foi um desejo intrínseco a essa luta, pois a busca por espaço, consenso e aliados são estratégias históricas de todos os grupos historicamente minorizados que tiveram seu poder subtraído. A cada cena do filme, os jargões de caráter “feminista” se intensificam ao passo que se aproxima do mundo humano, nada cor-de-rosa. Arrisco a dizer, que há um processo de vulgarização de debates tão caros, que nós mulheres humanas na sua mais vasta diversidade, acumulamos com muito suor e lágrimas. Mas, e a busca de aliados e de consenso? E a estratégia de atingir as massas?  Segundo Benjamin (1987):

A massa é a matriz da qual emana, no momento atual, toda uma atitude nova em relação à obra de arte. A quantidade converteu-se em qualidade. O número substancialmente maior de participantes produziu um novo modo de participação. O fato de que esse modo tenha se apresentado inicialmente sob uma forma desacreditada não deve induzir em erro o observador. Afirma-se que as massas procuram na obra de arte distração, enquanto o conhecedor a aborda com recolhimento. Para as massas, a obra de arte seria objeto de diversão, e para o conhecedor, objeto de devoção (p. 192).

Se a massa procura, nas salas de cinema a distração, qual o sentido de temáticas de cunho político ocupar esse espaço? Poderíamos usar uma máxima do capitalismo de que tudo ele transforma ao seu favor. Tudo vira mercadoria inclusive as ideias, que não parece nada palpável, mas que alimenta o capitalismo moderno, que basicamente se constitui da venda de ideias, sendo ele mesmo, o capitalismo, uma ideia que precisa ser comprada para existir.

Importante resgatar que a personagem Barbie, antes de chegar a ser personagem de filme. Ela é uma boneca criada em 1959, pela indústria de brinquedos em Nova York e foi considerada uma revolução no mercado. Apresentando uma aparência adulta, corresponde a um período conhecido como anos dourados, pós-segunda guerra, em que a imagem da mulher dona de casa, que casa cedo, que é boa mãe e alimentada pelo desenvolvimento tecnológico concretizado na infinidade de novos eletrodomésticos que surgiam para “facilitar o seu trabalho”. Daí o advento de uma boneca com feição adulta e que se traja muito bem, e é branca.

Assim como qualquer mercadoria, a indústria de brinquedos atende às expectativas, ou melhor, se aproxima do universo consumidor, assim, a boneca foi ganhando diversos personagens ao longo dos seus quase 65 anos. Ocupou o mundo do trabalho com diversas profissões, foi esportista, aprendeu a dirigir, se tornou piloto de avião, um mulherão para ninguém por defeito. Mas foi além, ganhou características étnicas, ficou preta, indígena, asiática, mas retornou a sua “originalidade”. Branca, loura, cisgênero, procurando uma vagina, que só aos 65 descobriu que não à tem. Podemos dizer que está numa situação mais preocupante de que muitas de nós humanas, que ainda não descobrimos nossa vagina como fonte de prazer, mas ao menos a temos. O fato é que, Barbie reafirma a sua e outras branquitudes travestida num discurso politicamente correto.

Parte de nós passamos nossa infância e adolescência sob esses signos de beleza imposto, como padrão universal. Branco, alto, magro perfilavam o padrão do belo universal a ser desejado e seguido. Nós, mulheres outras, não coubemos nessa caixa.

            Em Memórias da Plantação, Grada Kilomba (2019, 37-38) reflete sobre a dimensão da branquitude,

Dentro dessa infeliz dinâmica, o sujeito negro torna-se não apenas a/o “Outra/o” – o diferente, em relação ao qual o “eu” da pessoa branca é medida -, mas também “Outridade” – a personificação de aspectos repressores do “eu” não sujeito branco. Em outras palavras, nós nos tornamos a representação mental daquilo com o que o sujeito branco não quer se parecer. Toni Morrison (1992) usa a expressão “dessemelhança”, para descrever a “branquitude” […].

Mas essa imagem não ficava emoldurada na caixa de papelão como não ficou emoldurada nas telas de cinema. Moldavam e moldam em nós crianças, meninas não brancas o lugar de não belo, não desejado e o pior, do não autoamor. Impulsionadas a não amar nosso corpo, nossa pele, os nossos. Somos lançados ao desejo de ser o que não somos, renegamos o corpo gordo, preto, de nossas avós, mães e tias. Vergonha dos turbantes das nossas. Nas palavras de bell hooks em Tudo sobre o amor, novas perspectivas,

O amor próprio não pode florecer em isolamento. Não é uma tarefa fácil amar a si mesmo. Axiomas simples que fazem o amor-próprio soar fácil só tornam as coisas piores. Eles levam muitas pessoas a se perguntarem por que continuam presas a sentimentos de baixa estima e auto-ódio se é assim tão fácil se amar
(bell hooks, 2021, p. 94).

hooks (2021) afirma que, se é importante compreendermos as origens de uma autoestima frágil, também é possível ultrapassar esse estágio (a identificação de quando e onde recebemos socialização negativa) e ainda criar uma base para a construção do amor-próprio. Nesse sentido ao olhar para as produções artísticas, como é o caso do filme em análise, nos coloca na condição de indivíduos que ultrapassaram esse estágio e tendem a avançar para o próximo, que consiste em introduzir ativamente em nossa vida padrões de pensamentos e comportamento construtivos e positivos (p.95).

Audre Lorde (2019), em Irmã Outsider diz que para as mulheres, a necessidade e o desejo de cuidarem umas das outras não são patológicos, mas redentores, e é nesse saber que a nosso verdadeiro poder é redescoberto. “A diferença não deve ser apenas tolerada, mas vista como uma reserva de polaridade necessária, entre as quais a nossa criatividade pode erradiar como uma dialética” (p.136). Sem comunidade não há libertação, apenas o mais vulnerável e temporária armistício entre uma mulher e sua opressão. No entanto, comunidade não deve implicar um descarte de nossas diferenças, nem o faz de conta patético de que essas diferenças não existem, para Lorde é a busca da igualdade nas diferenças.

Lordes nos lança a dimensão de proposição e nos desafia que aquelas entre nós que estão fora do círculo do que a sociedade julga como mulheres aceitáveis, aquelas de nós forjadas nos cadinhos da diferença – aquelas de nós que são pobres, que são lésbicas, que são negras, que são mais velhas – sabem que a sobrevivência não é uma habilidade acadêmica, é  aprender a estar só, a ser impopular e as vezes hostilizada, e a unir forças com outras que também se identifiquem como estando de fora das estruturas vigentes para definir e buscar um mundo que todas possamos florescer. Ainda segundo Lordes (2019): […] “as ferramentas do senhor nunca derrubarão a casa-grande. Elas podem possibilitar que os vençamos em seu próprio jogo durante certo tempo, mas nunca permitirão que provoquemos uma mudança autêntica”(p.137).

A Barbie nunca nos representou, mas gostamos das cores do arco-íris e do cor-de-rosa, de preferência O ROSA CHOQUE.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.

KILOMBA, Grada.Memórias da Plantação. Episódio de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2019.

hooks, bell. Tudo sobre o amor, novas perspectivas. São Paulo: Editora Elefante, 2021.

LORDE, Audre. Irmã Outsider. São Paulo: Editora Autêntica, 2019.

** Profa. Dra. Rute Rodrigues dos Reis Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1998) e mestrado em Educação: História, Política, Sociedade pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2006). Doutora em Ciências Sociais pela mesma Universidade concluído em 2011. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em sociologia da educação, metodologia científica, relações étnico racial e de gênero e política educacional. Participou do projeto de pesquisa intitulado Homens nas margens: idade, etnicidade, orientação sexual e trajetórias profissionais na construção de masculinidades não hegemônicas, coordenado pela Dra. Sofia Aboim do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, no período de 2010 a 2013, com financiamento da Fundação para Ciência e Tecnologia (Portugal).  Participou da pesquisa O Multiculturalismo Contemporâneo nas Escolas: reconhecimento e afirmação de Histórias e Culturas Urbanas Negadas, como Pós Doutoranda pela Faculdade de Educação da USP. Gestora na Rede Municipal de São Paulo.

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