** Profa. Ma. Célia Regina Gaião
*** Profa. Dra. Silmar Leila dos Santos
Em 08 de julho de 2022 entrou em vigor a Lei de n° 14.402 que, em substituição ao Decreto nº 5.540, de 02 de julho de 1943, instituiu o dia 19 de abril como o Dia dos Povos Indígenas, retirando assim a terminologia “dia do índio”. Tal lei significou o reconhecimento do Estado brasileiro de que o termo “índio” carrega em si uma conotação negativa e não faz jus à diversidade cultural das 305 etnias indígenas inseridas no território brasileiro, segundo dados do censo de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Importante registrar que boa parte da sociedade brasileira − com exceção daqueles grupos que defendem projetos de lei como o de nº 490/2007, que está sendo votado vergonhosamente pelo Congresso Nacional Brasileiro −, tem se preocupado com as questões afro-brasileiras e indígenas. Exemplo disso, são as Leis 10.639/2003 e 11.645/2008 que determinam a obrigatoriedade do estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena, na educação básica.
Identifica-se que, a Lei 10.639 está completando 20 anos de vigência e que a Lei 11.645, em 10 de março deste ano, completou 15 anos, o que nos faz acreditar que, desde então, as escolas de educação básica brasileira já tenham conseguido avançar em suas propostas curriculares e práticas pedagógicas, de modo a desenvolverem atividades que proporcionem às novas gerações o reconhecimento da pluralidade cultural presente no Brasil, de modo a reconhecer a necessidade de se respeitar os povos indígenas e de se combater o racismo estrutural que ainda dificulta a sobrevivências dos negros em nosso país. Porém, a realidade cotidiana nas escolas brasileiras, sejam elas públicas ou privadas, nos revelam que ainda há muito o que ser adequado em nosso sistema educacional.
No último dia 19 de abril, data em que pela primeira vez se registrava o Dia dos Povos Indígenas, foi possível localizar na internet, em redes sociais de diferentes estabelecimentos de ensino público e privado, imagens de crianças “fantasiadas de índios”. Imagens estas que, além de serem profundamente lamentáveis, por perpetuarem uma visão totalmente estereotipada dos povos indígenas, ainda revela que, mesmo após 15 anos da vigência da Lei 11.645, o Estado brasileiro ainda não instituiu aos cursos de licenciatura, disciplinas que possam embasar a prática docente na Educação em Direitos Humanos, de modo que a história e a cultura afro-brasileira e a história e a cultura indígena deixem de ser reproduzidas desta maneira estereotipada.

A UTOPIA SE RENOVA
Se por um lado, identificamos a necessidade urgente de que o Estado brasileiro reveja os parâmetros para uma formação inicial de qualidade aos professores e, que invista com seriedade na formação continuada dos docentes que já estão em salas de aula das redes públicas de ensino, e que, cobre das instituições privadas que esta formação também seja garantida, não podemos deixar de salientar que dentro das Universidades Públicas já há uma séria preocupação com esta formação docente, haja vista o curso de Pós-Graduação Lato Sensu Educação em Direitos Humanos/UFABC, cuja história e atuação se encontra resumida no artigo CURSO EDH/UFABC: UMA REDE DE INCLUSÃO E RESISTÊNCIA CAPAZ DE TRANSFORMAR SONHOS EM REALIDADE, disponível no link: https://revistacontemporartes.com/2023/03/23/curso-edh-ufabc-uma-rede-de-inclusao-e-resistencia-capaz-de-transformar-sonhos-em-realidade/.
Atrelada à esta formação continuada, estamos nós professoras Célia Regina e Silmar Leila que, além de termos participado do curso de formação EDH/UFABC, também exercemos a função docente em uma escola pública de educação básica da rede municipal de São Paulo, onde buscamos realizar atividades interdisciplinares.
Em novembro de 2022, em uma dessas atividades interdisciplinares, a Profa. Célia Gaião realizou palestras às turmas de 8ºs e 9s anos, onde a Profa. Silmar Leila leciona a disciplina de História. O objetivo dessas palestras era de conhecermos e analisarmos um pouco da história e da cultura da aldeia Shanenawá, localizada na terra indígena Katukina/Kaxinawa, município de Feijó, no estado do Acre, onde a Profa. Célia havia passado alguns dias de vivência e por uma experiência ímpar. Desta forma, utilizamos seu relato, para iniciarmos uma série de atividades relacionadas à cultura dos povos indígenas. Assim, sob o intuito de que esta atividade possa vir a ser uma inspiração para outras escolas brasileiras, de modo a atenderem às Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, segue um resumo do depoimento da Profa. Célia Gaião. Depoimento este que foi muito bem acolhido por nossos alunos e alunas.

Iniciarei minha fala focando na maneira como foi construída a minha aprendizagem no que se refere aos povos originários do Brasil, a população indígena. Buscando na memória, as aulas de História de minha época na escola me ensinaram que o Brasil foi formado por habitantes brancos, negros e “índios”, e que esses denominados “índios” moravam em ocas, viviam da caça e da pesca, eram selvagens e que a catequese viria salvá-los.
Felizmente, na última década, consegui perceber que este “quadro” foi pintado sob a ótica europeia, e, durante anos, me organizei para viver, nem que fosse por poucos dias, como aquelas identidades que ainda estão ausentes de representação e de reconhecimento em nossas salas de aulas, por conta da forma como a discriminação estrutura a sociedade brasileira.
Minha ansiedade por conhecer a cultura, a maneira como vivem, o que comem, sua medicina, como se comportam, seus anseios, e o mais importante, como nos receberiam, era imensa e a minha imersão se iniciou em Rio Branco, capital do estado do Acre, de onde partimos (eu e mais um grupo de turistas de São Paulo) em uma van, por uma estrada de terra adentro. A paisagem era aterrorizante, pois cruzávamos com caminhões e mais caminhões, vindo em direção contrária à nossa, carregados de árvores nativas, cuja procedência jamais nos será apresentada, pois quiçá podemos cogitar se realmente foram extraídas com a devida autorização legal.
Enfim, após 8 horas de viagem, chegamos!
Do alto da colina pudemos observar a recepção dos moradores daquele pedaço de terra, no fim do mundo. Selvagens? Não! Povo receptivo e, com suas vestimentas de festas e de boas-vindas. Vieram nos recepcionar e, carregar nossas bagagens, montanha abaixo, até o aterro em que iríamos nos hospedar.

Fomos avisados, com antecedência, de que, dormiríamos em barracas ou redes e, que deveríamos levar nossas acomodações. Também solicitaram que não levássemos nada que não fosse neutro, com relação ao banho, para não contaminarmos o ambiente. E, o mais importante, deveríamos levar repelente de largo alcance, o que, digo de antemão, não resolveu nada. Fomos, literalmente, consumidos pelos mosquitos.
Após a recepção, fomos levados ao local onde se realizam as festividades e, entramos na roda com as músicas e batidas de tambores, fazendo parte de sua dança circular, reservada aos visitantes. Algum tempo depois, fomos direcionados ao local de armar as barracas e as redes, antes da chegada do pôr do sol.
Com os dormitórios já organizados, partimos para o banho. Como há uma infraestrutura organizada por uma agência que repassa verbas à aldeia, tínhamos um espaço de banho separado para homens e mulheres, porém, com água fria. Mas, não seria tão ruim, pois estávamos no verão Amazônico, 30 graus durante o dia e, 18 graus à noite. Em seguida, foi servido o jantar, com os alimentos que, normalmente, fazem parte da dieta indígena: macaxeira cozida e frita, banana da terra cozida e frita, arroz e ovos fritos.
O café da manhã e o almoço, consistiam nos mesmos alimentos, acrescido de um mingau de banana, no café da manhã. Após o jantar, houve uma roda de conversa com o Cacique para as informações sobre a aldeia e seus moradores e, a rotina dos próximos seis dias.
Neste momento, pós-receptividade de boas-vindas, os indígenas usavam vestimentas como as nossas, bermudas e camisetas, alguns descalços, alguns de chinelos de borracha.O local da concentração era um terreiro com pedaços de troncos de árvores, que serviam como bancos, acomodados de maneira circular, de modo que, todas as conversas, histórias e danças, eram realizadas neste local, em cujo centro, durante a noite, sempre havia uma fogueira para iluminar e, principalmente, aquecer do frio que fazia após o pôr do sol.

Neste momento, o Cacique se apresentou. Era um homem de 46 anos. Em seguida, conhecemos sua esposa, uma mulher de 48 anos e, suas 7 filhas. Por se tratar de uma semana de festividades na aldeia, por conta do aniversário do Cacique, todas as filhas estavam presentes, mesmo as que residiam em Rio Branco pelos estudos Universitários.

O Cacique contou-nos, também, que havia formado a aldeia há alguns anos, pois já possuía liderança para se tornar Cacique e não poderia permanecer em sua aldeia de origem por já haver um cacique por lá. Chegou neste local com sua família e iniciou um novo povoado, onde seus integrantes são pessoas de sua família que se dispusera a morar lá: suas filhas casadas, caminhantes, indígenas e, também não indígenas, que chegam e lá montam suas moradias.
Esclareceu-nos ainda que, desde a infância, os filhos dos Caciques já se preparam para herdar o posicionamento do líder, pois, quando este vier a falecer, é de tradição que um “filho homem” venha a assumir a liderança deixada pelo pai. Porém, como ele teve apenas “filhas mulheres”, sua filha mais velha e o marido, juntamente com o genro da segunda filha a se casar, estavam participando dos treinamentos de liderança, que consistia em: se aprofundar na “cultura Indígena; desenvolver estratégias para a resolução de problemas da aldeia; desenvolver força física e o planejamento e cuidado com o outro”. Percebemos, com isso, que, ao longo do tempo, a cultura do homem como liderança e força, já está se emoldurando para os tempos atuais, onde as mulheres já conseguem disputar um alto posto, com os homens. No entanto, trata-se de um processo lento e gradual, pois ainda se mantém a cultura da liderança atrelada à da força ser atribuída. Exemplo disso é que nas muitas aldeias que se consolidaram no Amazonas, apenas uma é liderada por mulher.O povoado Shanenawá é constituído por 58 pessoas, em sua maioria crianças. O aprendizado se faz por meio de escola, construída na aldeia, com aulas ministradas na língua mãe e em Português, pelos próprios adultos da aldeia, unicamente, a educação básica do primeiro ao quinto ano. Em geral, as filhas do Cacique vão para Rio Branco continuar os seus estudos até o nível superior, os demais indígenas, pela própria condição do baixo poder aquisitivo, não possuem esta oportunidade.

No que se refere às moradias, as do Cacique e seus herdeiros são construídas com madeiras tiradas da própria floresta (há um trabalho de reflorestamento intenso), com boa estrutura, já as dos demais moradores, são feitas de palhoça, um tipo de palmeira, com infraestrutura bem inferior. Verifica-se um padrão de vida bem desnivelado dentro da aldeia.
Entrando nas questões medicinas, o Cacique nos informou que não há um Pajé (o indígena com aprendizado para as medicinas e a cura) na aldeia, e que as medicinas são realizadas pelas mulheres de mais idade, conforme o aprendizado natural e, pelo conhecimento dele mesmo.
Faz parte desta medicina os chás, o “uni” um xarope feito da raiz de uma planta, que produz um efeito que os levam mais próximos da natureza e do Ser superior; a “Sananga” um colírio, também feito de planta que dilata a vista e, o rapé, um pó que inspirado nos permite estar mais sensíveis e imersos no Universo. Há, também, o banho de ervas para energizar o corpo, com ervas que ficam expostas ao sereno da noite e, no dia seguinte, misturadas com água quente; e, o banho de argila branca. Trata-se da retirada de argila encontrada na floresta, e colocada em um buraco feito no centro do terreiro, misturado com um pouco de água e, onde a pessoa entra e se cobre com esta pasta.
Nos dias que se seguiram, fomos, aos poucos, fazendo parte da vida dessa aldeia. Eles sempre levantam antes do nascer do sol, para a colheita das frutas, ervas e ovos que serão utilizados durante o dia, e, com muita sorte, aparecia um alimento advindo da caça. Digo com muita sorte porque não há rio nas proximidades da aldeia, e, sem água, não há animais.
Eles, também, trazem folhagens de palmeiras, com as quais revitalizam seus telhados, confeccionam artefatos como esteiras ou redes, para deitarem e utensílios para serem utilizados na cozinha, como cumbucas, abanos para o fogo e, até mesmo vestimentas para ocasiões especiais. Aproveitam para a busca das sementes que servirão para a fabricação das tintas que utilizam para pintarem suas moradias, o espaço dos eventos e o próprio corpo, entre elas estão o urucum e o nanã, feita do jenipapo. Alguns tipos de sementes e, também penas que eles encontram pelos caminhos, são recolhidas para o feitio de colares, pulseiras e cocares, que eles utilizam como adornos nas festividades e, comercializam para auxílio das famílias.

Célia Gaião
Com o final de semana se aproximando, começaram a chegar os convidados para as festividades do aniversário do Cacique, que são famílias inteiras das aldeias vizinhas. Cada aldeia possui suas vestimentas diferenciadas, além de um ritual próprio juntamente com uma música que a representa.
Na programação havia uma Gincana, que é uma competição entre as aldeias, divididas em infantis e adultas. A competição infantil consiste na travessia da lagoa a nado, ida e volta, e é realizada por meninas e meninos, ao mesmo tempo, sem distinção de gênero. As competições dos adultos eram divididas em masculinas e femininas, tendo a prova de força (cabo de guerra); a de quem come uma banana (da terra) em menor tempo e quem bebe 2 litros de Machú (bebida fermentada de macaxeira que lembra a nossa cerveja), também em menor tempo.
Há, também, a apresentação da dança circular e da música que representa a aldeia, contando com a participação de todos os integrantes.
As pessoas se acomodavam, ao redor do terreiro, com suas barracas ou mesmo redes de dormir e, permaneceram na aldeia, durante os três dias de festividades, cabendo ao anfitrião oferecer a alimentação e a bebida a todos os convidados.
Durante estes dias de festividade, tivemos a oportunidade de conhecer um pouquinho da cultura de cada aldeia, o que não diferencia muito uma da outra por pertencerem a uma mesma região.
Em nosso último dia na aldeia Shanenawá, cada um de nós foi batizado pelo Cacique, com um nome indígena, representativo de nossa personalidade, observada por ele durante nossa estadia. E, em uma próxima visita, se ocorrer, seremos chamados pelo nome de batismo.
Partimos da aldeia, completamente transformados espiritualmente e com uma imensa bagagem de conhecimento construído em uma cultura completamente diferente da que temos acesso em nosso mundo pautado no capitalismo.

Esta expedição me proporcionou uma certeza:
“Se, os povos indígenas são os legítimos originários da terra brasileira, sendo responsáveis por diferentes formas de organização social, cultural e porque não dizer, política, não significa que, por se tratarem de diferentes das do modelo europeu imposto pelos colonizadores, nos dá o direito classifica-lás como primitivas e bárbaras”.
E antes de encerrar, deixo um questionamento a vocês:
Não está na hora de substituirmos o termo descobrimento das terras indígenas por invasão de terras dos povos originários, pelos povos europeus?
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei 10.639: Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “história e cultura afro-brasileira”. Brasília (DF): 09 de janeiro de 2003.
BRASIL. Lei 10.639: Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Brasília (DF): 10 de março de 2008.
BRASIL. Lei 14.402: Institui o Dia dos Povos Indígenas: 8 de julho de 2022.
IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Brasileiro de 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2012.

Contato: celia_gaiao@yahoo.com.br

É Profa. Titular de História no Ensino fundamental II e Médio na rede municipal de educação de São Paulo, desde o ano 2000. Atua na formação docente desde 2006, lecionando as disciplinas de História da Educação, Sociologia da Educação, Filosofia da Educação, Antropologia e Educação, Currículo, Políticas educacionais e Educação em Direitos Humanos. É integrante do Grupo de Pesquisa CNPQ Educação em Direitos Humanos/UFABC; professora colaboradora do Projeto Africanidades/UFABC e organizadora da Coluna do Grupo de Pesquisa Educação em Direitos Humanos da UFABC na Revista ContemporArtes.
Contato: professorasilmarleila@gmail.com
