A RÉGUA QUE ME MEDE SÓ REFLETE SUA PERSONALIDADE: DIVAGAÇÕES BREVES SOBRE EDUCAÇÃO E EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS*

Leonardo Vinicius de Souza Tavares**

A metáfora da régua que mede não é meramente um instrumento técnico de aferição, mas um artefato simbólico de poder, de classificação e de julgamento. Medir alguém implica pressupor critérios de valor, parâmetros de normalidade e fronteiras de aceitabilidade. No campo da Educação, essa régua assume contornos ainda mais complexos, pois está atravessada por relações de “micropoder”, escolhas lexicais legítimas e processos de estigmatização, como nos mostram Michel Foucault, Pierre Bourdieu e Erving Goffman, por exemplo.

A perspectiva foucaultiana do micropoder oferece um prisma elucidativo para compreendermos como, no cotidiano escolar e social, práticas aparentemente banais constituem estratégias de controle e de sujeição. Foucault (2015) evidenciou que o poder não se concentra apenas nas macroinstituições, mas se capilariza e opera em pequenas relações, invisíveis e naturalizadas. Assim, o professor que define quem é o “bom estudante” ou a escola que estabelece padrões disciplinares constituem dispositivos reguladores que moldam corpos e subjetividades.

No Brasil, esse cenário se complica diante das profundas desigualdades sociais e das estruturas políticas frágeis e instáveis. A Constituição Federal de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN/1996) consagram princípios de igualdade e dignidade, mas a práxis educacional, muitas vezes, não consegue materializar tais ideais. A seletividade escolar, em maior ou menor grau, discrimina/separa/hierarquiza conforme o capital cultural e econômico, tal prática reafirma uma educação excludente, distante da universalidade e da Educação em Direitos Humanos. Esse panorama está em processo de mudança, paulatina, mas está.

Pierre Bourdieu (2022) contribui para essa análise ao desvelar a economia das trocas linguísticas. Na escola, o domínio da linguagem legítima — aquela sancionada pela instituição, pela gramática normativa (que impede um pouco mais o avanço do ensino da oralidade, por exemplo), — é um marcador decisivo de distinção social. A escolha lexical, portanto, não é neutra: implica a adesão ou a rejeição a um determinado habitus, uma vez que reforça hierarquias culturais e alija aqueles que não dominam os códigos hegemônicos.

Sob esse viés, o ensino da língua materna, por exemplo, torna-se um campo de disputa simbólica. A defesa de uma norma-padrão estrita, desvinculada das múltiplas variedades linguísticas presentes na sociedade brasileira, representa uma violência simbólica, como postula Bourdieu (2022), pois silencia e inferioriza os modos de falar de determinados grupos sociais, principalmente os que se encontram em situação de extrema vulnerabilidade.

Capa do livro O Poder Simbólico, de Pierre Bourdieu.
Fonte: https://www.mercadolivre.com.br/pierre-bourdieu–o-poder-simbolico/up/MLBU1436652215. Acesso em 05/10/2025.

A estigmatização, como pensada por Erving Goffman (2022), também se apresenta como um elemento constitutivo das práticas educacionais e sociais. O estigma é um processo relacional, mediante o qual certos atributos são socialmente desacreditados. Na escola, estudantes com deficiência, negros, indígenas, LGBTQIAP+ ou oriundos de classes populares são frequentemente estigmatizados, mesmo que inconscientemente, atitude que compromete seu pleno direito à educação e à cidadania.

Esses processos estigmatizantes são reforçados pelo discurso político e midiático dominante, que, em contextos de crise, tende a culpabilizar os indivíduos pelas falhas estruturais. A responsabilização dos mais vulneráveis e a exaltação meritocrática configuram uma pedagogia da exclusão, que nega o caráter universal dos Direitos Humanos e transforma a educação em instrumento de distinção, não de emancipação.

A relação entre Educação e Direitos Humanos, portanto, no Brasil, é permeada por uma tensão permanente entre os princípios normativos e a realidade prática. Embora o país tenha firmado compromissos internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas (ONU), a efetivação desses direitos é embaraçada por políticas públicas descontínuas, baixa valorização docente e ausência de financiamento adequado.

O discurso oficial frequentemente celebra a diversidade e a inclusão, mas, na prática, prevalecem currículos eurocêntricos, monoculturais e pouco sensíveis às questões de gênero, raça e classe. Essa dissonância revela que o poder opera não apenas na estrutura formal das instituições, mas também nos discursos que as legitimam e nos silêncios que perpetuam. Já dizia o inesquecível Machado de Assis: “O país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco”.

O conceito foucaultiano de biopoder*** se manifesta aqui na gestão diferencial das vidas: algumas são educadas para liderar e outras para obedecer, algumas são protegidas e outras são expostas à precarização e à violência. Assim, a escola pública brasileira, especialmente nas periferias, torna-se um espaço ambivalente: promessa de cidadania e, simultaneamente, locus de reprodução das desigualdades.

A resistência a esse estado de coisas não é inexistente. Movimentos sociais, professores comprometidos e práticas pedagógicas críticas tensionam o modelo hegemônico e lutam pela efetivação de uma educação que seja, de fato, um direito e não um privilégio. Contudo, essas ações encontram-se frequentemente fragilizadas diante de um Estado que ora se omite, ora reprime, infelizmente.

A escolha das palavras, das expressões e das narrativas que se impõem no debate público sobre Educação em Direitos Humanos é parte fundamental da economia simbólica que define quem tem direito a falar e ser ouvido. Como Bourdieu (2022) nos lembra, “o poder de nomear é também o poder de criar realidades, de legitimar saberes e de excluir outros tantos”.

Não se trata apenas de denunciar a violência simbólica e a estigmatização, mas de propor uma reconfiguração radical da Educação como prática de liberdade, nos termos de Paulo Freire (1996). Tal reconfiguração implica uma pedagogia que reconheça a pluralidade de saberes, que valorize as culturas marginalizadas e que repudie toda forma de discriminação.

O desafio é monumental, sobretudo em um cenário político caótico, em que retrocessos institucionais ameaçam conquistas históricas e a ideia mesma de Direitos Humanos e, também da Educação em Direitos Humanos é frequentemente vilipendiada. A ascensão de discursos autoritários e anticientíficos reforça práticas educativas conservadoras, que priorizam o controle sobre a autonomia, a obediência sobre a crítica.

Charge sobre o discurso anticiência.
Fonte: Post Brumm, na rede social X, em 16/04/2020.
Disponível em https://x.com/Brummmmm/status/1250748667574788104.
Acesso em 05/10/2025.

Diante desse panorama, a metáfora da régua que mede assume um caráter ainda mais inquietante: quem define a medida? Quais critérios são utilizados? E, sobretudo, quem é autorizado a medir? Compreender essas questões é fundamental para construir uma Educação que não seja instrumento de dominação, mas espaço de emancipação e de afirmação da dignidade humana.

Em suma, pensar a Educação em Direitos Humanos no Brasil exige não apenas o reconhecimento das múltiplas formas de poder e de estigmatização que operam na sociedade, mas também o compromisso ético e político de transformar essas estruturas. Como nos ensina Foucault (2015), onde há poder, há resistência — e é nesse espaço tensionado que se deve forjar uma pedagogia comprometida com a equidade, com a justiça e com a humanização.

*Ideia originalmente concebida a partir de conversas acerca do tema com a professora Bianca Oliveira da Silva, graduada em Pedagogia pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e mestranda em Educação pela UNIFESP (campus Guarulhos). Pesquisadora do EDUCINEP, pela mesma universidade.

*** Conceito trabalhado, sobretudo em História da sexualidade (volume I).

Referências

ASSIS, Machado de. O país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco. In: Revista Prosa, Verso e Arte, de 25/05/2017. Disponível em https://www.revistaprosaversoearte.com/o-pais-real-esse-e-bom-revela-os-melhores-instintos-mas-o-pais-oficial-esse-e-caricato-e-burlesco-machado-de-assis/#goog_rewarded. Acesso em 04/06/2025.

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer. 2ª ed.– prefácio de Sérgio Miceli. Tradução de Sérgio Miceli, Mary Amazonas Leite de Barros, Afrânio Catani, Denice Barbara Catani, Paula Montero e José Carlos Durand. – São Paulo: EDUSP, 2022. (Clássicos 4).

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. – tradução de Fernando Tomaz (português de Portugal). 14ª ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. – tradução de Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes. – 4ª ed. – Rio de Janeiro: LTC, 2022.

ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Paris: 1948.

** Prof. Leonardo Vinicius de Souza Tavares é Professor efetivo de Língua Portuguesa na Prefeitura de São Paulo. Doutor em Língua Portuguesa pela PUC-SP. Pesquisador efetivo da PUC-SP e da FEUSP. Pesquisador colaborador na ECA-USP (estágio pós-doutoral) em Etnomusicologia e Retórica na música caipira. Contato: leonardovitavares@yahoo.com.br.

3 comentários em “A RÉGUA QUE ME MEDE SÓ REFLETE SUA PERSONALIDADE: DIVAGAÇÕES BREVES SOBRE EDUCAÇÃO E EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS*

  1. Agradeço sinceramente pelo convite para ter meu texto publicado neste mês dedicado aos professores. Receber essa consideração é, simbolicamente, de um valor inestimável: na lógica de Bourdieu, não se trata de algo que possa ser medido ou comprado, mas de um reconhecimento que transcende o econômico, pois afirma-se nos campos simbólicos da Educação, da Educação em Direitos Humanos e da Cultura. Saber que minhas reflexões poderão dialogar com leitores e colegas neste momento de homenagem à docência é, para mim, uma honra que reforça o compromisso com a valorização do ofício de ensinar e com a circulação de ideias que enriquecem nosso campo. Muito obrigado, professora Silmar!

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  2. Parabéns pela excelente abordagem de um tema tão fundamental. Infelizmente pensar soluções para temas estruturais sem esperança de mudança dessas estruturas é desesperador. Mas há que pensá-las!

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