África é o berço da humanidade e foi lá que o ser humano inventou a Matemática, o fogo, a escrita, a Astronomia, o calendário, a Engenharia, a Medicina, a Filosofia, entre diversos outros ramos da ciência e do conhecimento humano. Também é o continente que mais contribuiu para a formação social e cultural do Brasil; sendo assim, o segundo país de maior população negra do mundo (consequentemente, a maioria de nossa população, aproximadamente 56%, é preta), atrás somente da Nigéria.
Estes são alguns motivos pelos quais precisamos estudar a história do continente africano, contemplando assim, a Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003), que insere a História da África e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos de ensino público e particular. Em 2025, esta lei completa 22 anos de existência. Apesar do avanço com sua promulgação, resultado das lutas do Movimento Negro durante décadas, infelizmente, identificamos que ela ainda não é aplicada nas unidades educacionais como deveria. Muitos profissionais ainda não a conhecem, e poucos realizam práticas pedagógicas realmente eficazes durante o ano letivo, ou seja, indo além das comemorações do Dia da Consciência Negra, no mês de novembro.
O presente artigo tem, portanto, o objetivo de contribuir na luta rumo à educação decolonial, cumprindo o papel de descolonizar o currículo e aplicar a Lei 10.639/03, mostrando uma das maiores contribuições – talvez até a maior −, que a África trouxe para toda a humanidade: a Matemática. Além de desmistificar o racismo científico oriundo há séculos, prova que os povos africanos são produtores de conhecimento desde o início da humanidade e que a África é território da invenção e de uma grandiosa evolução na Matemática e nas Ciências.
A Matemática é tão antiga quanto o tempo do ser humano no mundo. Pode-se dizer que, desde o início da humanidade, já se usavam conceitos matemáticos, que contribuíram para o desenvolvimento durante todo o período da História. Estudos científicos apontam que o ser humano teve sua origem na África, provavelmente na região conhecida como Vale da Grande Fenda ou Grande Vale do Rifte, que abrange os territórios de Etiópia, Quênia, Tanzânia e Uganda. De acordo com a síntese da coleção “História Geral da África”, o humano é um mamífero da família Hominidae que surgiu há cerca de 30 milhões de anos e o último gênero desse grupo foram os Australopithecus. D’Ambrosio (2020, p. 35) diz que os Australopithecus utilizavam instrumentos de pedra lascada para descarnar os animais, permitindo raspar os ossos, aproveitando todos os pedaços e nutrientes:
Na hora que esse australopiteco escolheu e lascou um pedaço de pedra, com o objetivo de descarnar um osso, a sua mente matemática se revelou. Para selecionar a pedra, é necessário avaliar suas dimensões, e, para lascá-la o necessário e o suficiente para cumprir os objetivos a que ela se destina, é preciso avaliar e comparar dimensões. Avaliar e comparar dimensões é uma das manifestações mais elementares do pensamento matemático.
Asante (2022, p. 39) diz que “os africanos foram os primeiros cientistas no sentido de que toda ciência tem raízes em técnicas, artesanato e artes”. Ronan (1987, p. 18) defende a ideia de que talvez a Astronomia tenha sido o primeiro estudo distinto a obter aplicação da Matemática: “para se usar o céu como relógio ou calendário, necessita-se de números. E medir a distância entre a Lua e as estrelas e o horizonte também implica o emprego de números”. Com o decorrer do tempo, os humanos começaram a cultivar a terra e criar animais, abandonando a vida de nômade e construindo moradias fixas; assim, formando as primeiras aldeias, tornando necessária a contagem de pessoas da própria comunidade e de comunidades inimigas, bem como a passagem do tempo.
Existem alguns objetos descobertos por arqueólogos, que comprovam a prática da Matemática por diversos povos da Antiguidade, principalmente no continente africano. Descoberto na Caverna da Fronteira, nos Montes Libombos (ou Montanhas Lebombo), entre a África do Sul e Essuatíni, o Osso de Lebombo é considerado por muitos cientistas como o objeto matemático mais antigo da história humana (TODÃO, 2024, p. 57), datado aproximadamente de 35 mil anos a.e.c.**, no Paleolítico Inferior.
**Estamos mudando a forma colonial “antes de Cristo” (a.C.) para “antes da era comum” (a.e.c.).
O osso, ou uma fíbula de babuíno, tem 7,7 centímetros, com 29 entalhes. Assemelha-se aos bastões calendário utilizados antigamente e ainda hoje pelo povo San, um dos povos mais antigos do planeta Terra, encontrados na África do Sul, Angola, Botsuana e Namíbia.
Acredita-se que o Osso de Lebombo era usado para calcular números e medir a passagem do tempo, os ciclos lunares e o controle do ciclo menstrual, já que um mês no calendário lunar dura aproximadamente 29 dias e 12 horas (em alguns lugares, contam- se 29 dias, em um mês, e, no outro, conta-se 30 dias), havendo no Osso de Lebombo, 29 entalhes. Assim, acredita-se que as mulheres do continente africano foram as primeiras matemáticas da história, já que calculavam o ciclo menstrual por meio do calendário lunar.
Apesar de o Osso de Lebombo ser muito mais antigo, grande parte dos historiadores e cientistas só consideram o Osso de Ishango ou Bastão de Ishango como o objeto mais antigo da Matemática, por ter uma aritmética concreta, e, com isso, é estudado com profundidade. O osso, provavelmente, é de 20 mil anos a.e.c., no Paleolítico Superior. Ele é proveniente do vilarejo de Ishango, que se localiza no nordeste da República Democrática do Congo, na divisa com Uganda e foi encontrado às margens do Lago Eduardo.
O Osso de Ishango é um pequeno osso petrificado, com apenas 10 cm de comprimento, e contém um cristal de quartzo em uma extremidade (provavelmente para gravar), com três séries de entalhes agrupados. Alguns arqueólogos dizem que os cálculos são referentes a um jogo aritmético; já outros dizem ser referente ao calendário lunar (TODÃO, 2024, p. 63).
O Bastão de Ishango está dividido em três colunas, em que foram encontrados cálculos com números primos, números dobrados (ou pela metade) e alguns sistemas de numeração. As somas dos entalhes em cada coluna são referentes ao calendário lunar. Como as somas das três colunas do bastão são números múltiplos de 12, e como outros povos africanos antigos misturavam as bases 10 e 12 com seus múltiplos e submúltiplos, há grandes indícios de que esses povos foram influentes nos sistemas de numeração decimal e sexagesimal, utilizados nas primeiras civilizações da humanidade, que foram na Mesopotâmia com os sumérios, e em Kemet (atual Egito).
No decorrer dos tempos, formaram-se novas estruturas e, na época conhecida como Revolução Agrícola (iniciando por volta de 11 mil anos), apareceram as cidades, que se transformaram em civilizações, surgindo a agricultura e o comércio, havendo a necessidade do uso da escrita e do número.
Em África, Kemet (Terra Preta ou Povo Preto), foi uma das primeiras civilizações e a mais importante da história, sendo conhecida por nós, como Egito (nome imposto pelos gregos).
Nascimento (2008, p. 62), ao descrever Kemet, diz que “além de dar à luz a humanidade, a África foi também o palco da primeira revolução tecnológica da história: a passagem da colheita de frutos silvestres à agricultura”.
Corroborando com as informações sobre a relevância histórica do Egito, Silvério, Rocha e Barbosa (2012, p.175), descrevem que:
O Egito faraônico nos deixou valiosa herança nos campos da física, química, zoologia, geologia, medicina, farmacologia, geometria e matemática aplicada. De fato, legou à humanidade uma grande reserva de experiências em cada um desses domínios, alguns dos quais foram combinados de modo a possibilitar a realização de objetivos específicos.
As diversas formas de cálculos numéricos, assim como os diversos textos de diversas áreas do conhecimento, estão registradas nos papiros, os antecessores do papel, feitos pela planta de mesmo nome. Por volta de 2.600 a.e.c., o Egito transformou-se no grande exportador do papiro.
Existem documentos que comprovam a Matemática feita em Kemet (Egito) ao longo dos tempos (TODÃO, 2024, p. 102), dentre eles:
– Um cetro real, de 3.100 a.e.c., que contém números na ordem de centenas de milhares e milhões;
– As tábuas de madeira de Akhmin, de 2.000 a.e.c., que dão origem às frações egípcias;
– O instrumento astronômico mais antigo da humanidade, de 1.850 a.e.c.;
– O relógio de sol mais antigo da humanidade, de 1650 a.e.c.;
– Um rolo de couro, de 1.650 a.e.c., que contém 26 somas efetuadas por meio de frações unitárias e alguns problemas com medidas de comprimento;
– Diversos papiros, como o Reisner (1.880 a.e.c.), Moscou (1.850 a.e.c.), Kahun (1.825 a.e.c.), Ahmes (1.650 a.e.c.), Rollin (1.350 a.e.c.), Berlim (1.350 a.e.c.), Harris (1.167 a.e.c.) e Cairo (300 a.e.c.), além do Documento de Edfu (150 a.e.c.).
Esses papiros possuem diversos cálculos matemáticos com sistemas de medidas, áreas e volumes diversos, equações de 1º e 2º graus, progressão aritmética e geométrica, operações fundamentais da Matemática (adição, subtração, multiplicação, divisão, potenciação e radiciação), divisão proporcional, frações, geometria, cálculos diversos e inclusive o Teorema do Triângulo Retângulo, conhecido hoje como Teorema de Pitágoras.
Os egípcios da Antiguidade tinham sofisticada capacidade matemática, a qual viria a ser a base da ciência ocidental, que ainda estava longe de surgir. Eles empregaram os conceitos de distância, área, peso, volume e tempo. Também inventaram unidades, métodos e normas de medição. E criaram a geometria, a trigonometria, a álgebra e muitas outras técnicas matemáticas (MACHADO; Loras, 2017, p. 38).
Considerações finais
Trabalhar com a verdadeira história da Matemática é muito mais do que contribuir com a Lei 10.639/03, é mostrar às nossas crianças, adolescentes e pessoas adultas que a África possui muito conhecimento científico desde os primórdios da humanidade.
Predomina na consciência ocidental um estereótipo da África como continente escuro e obscuro, abrigando tribos primitivas, imóveis no tempo e no espaço, com suas culturas arcaicas e estáticas […] A realidade histórica é o contrário desse estereótipo. Desde seus primórdios, a África tem sido o palco de intensas movimentações, migrações, trocas comerciais e culturais. Trata-se de um fenômeno ocorrido não apenas no território continental como também no exterior. Com efeito, o africano e sua cultura se fizeram presentes em todos os cantos do mundo antigo (NASCIMENTO, 2008, p. 80).
Complementando a frase acima, os conhecimentos dos povos africanos estão presentes em todos os cantos do mundo até hoje, e a Matemática é um deles. Podemos afirmar que somos descendentes de rainhas, reis, grandes reinos e impérios, assim como nossos ancestrais criaram e desenvolveram a Matemática, Astronomia, Medicina, entre diversos outros ramos do conhecimento humano de forma fantástica.
Devemos mostrar essa verdadeira história para as nossas crianças, trazendo a representatividade, elevando sua autoestima e fazendo perceberem o quanto são capazes de produzir Matemática também (TODÃO, 2024, p. 168).
A história da Matemática e as contribuições dos povos africanos nas Ciências não se esgotam por aqui, mas por este artigo, percebemos que o apagamento histórico, assim como o racismo científico, é um grande projeto de poder eurocêntrico ao qual precisamos enfrentar, cotidianamente, por meio de uma educação decolonial.
Referências
ASANTE, M. K. Os filósofos egípcios: vozes ancestrais africanas de Imhotep à Akhenaten. São Paulo: Ed. Ananse, 2022.
BRASIL. Lei nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003. Institui a inclusão no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 140, n. 8, p. 1, 10 jan. 2003. Disponível em: https://pesquisa.in.gov.br/ imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=1&data=10/01/2003&totalArquivos=56. Acesso em: 5 jul. 2023.
D’AMBROSIO, U. Etnomatemática: elo entre as tradições e a modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
MACHADO, C. E. D.; LORAS, A. B. Gênios da humanidade: tecnologia e inovação africana e afrodescendente. São Paulo: DBA Artes Gráficas, 2017.
NASCIMENTO, E. L. A matriz africana no mundo. São Paulo: Selo Negro, 2008.
RONAN, C. A. História ilustrada da Ciência I: das origens à Grécia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987.
SILVÉRIO, V. R.; ROCHA, M. C.; BARBOSA, M. S. Síntese da coleção história geral da África: pré-história ao século XVI. Brasília, DF: UNESCO, MEC: Ed. UFSCar, 2012.
TODÃO, Jefferson dos Santos. A Origem Africana da Matemática. São Paulo: Editora Ananse, 2024.
*Jefferson dos Santos Todão é professor de Matemática da Rede Municipal de Ensino de São Paulo. Mestrando em Ensino de Ciências e Matemática pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, com a pesquisa sobre a História da Matemática como instrumento na formação docente afrocentrada. É especialista em História da África e Diáspora Atlântica pelo Instituto Pretos Novos, além das especializações em Educação à Distância, Finanças e Psicopedagogia. Licenciaturas em Matemática, Pedagogia e Ciências Biológicas. Pesquisador em Matemática, História da Matemática no continente africano, Afroetnomatemática, Etnomatemática, jogos matemáticos africanos, letramento matemático, história e contemporaneidade dos países africanos. Coleciona camisas de seleção de futebol e cédulas (dinheiro) dos países do continente africano. Contato: jefferson.matematica@hotmail.com
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E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música. Friedrich Nietzsche PUCCI.’.
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Olá Francisco,
Acreditamos que tenha tido alguma instabilidade no site. Veja se consegue encaminhar mensagens agora.
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