A TRAJETÓRIA DO ESTUDANTE COM DEFICIÊNCIA EM ESCOLAS REGULARES: AVANÇOS E RETROCESSOS

* Célia Regina Gaião

A Educação Especial na perspectiva inclusiva não é apenas um atendimento extra para estudantes com deficiência, mas sim uma modalidade de ensino que integra a proposta pedagógica da escola regular, promovendo a inclusão de todos dentro de suas diversidades.

Exemplo de sala de Educação Especial e Inclusiva. Fonte: https://guiaderodas.com/qual-a-diferenca-entre-educacao-especial-e-educacao-inclusiva/. Acesso em 24/06/2025.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de nº 9.394/96 e, o Decreto nº 6.571/2008 estabelecem que a Educação Especial deve ser oferecida, PREFERENCIALMENTE, na rede regular de ensino, garantindo o acesso e a permanência de estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação.

A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI) visa promover a integração da Educação Especial na escola regular, com foco na formação de professores e na adaptação do currículo para atender às necessidades individuais dos estudantes.

Existem muitos fatores que precisam convergir entre si para, efetivamente, possibilitar a inclusão escolar, dentre eles: a reestruturação do espaço escolar e o acesso a este, por todos os estudantes; o preparo técnico e emocional de todos os profissionais pertencentes à escola e a existência de materiais adequados ao aprendizado pedagógico. É um desafio que precisa ser levado a sério pelos governantes, pelos órgãos responsáveis em criar políticas públicas educacionais, gestores, professores, famílias e comunidades. Além disso, a educação inclusiva deve ser preconizada a partir de princípios éticos, formação profissional de qualidade, e auto eficácia dos docentes.

Receber crianças com deficiência em escolas regulares, com o objetivo de desenvolver um trabalho pedagógico, parecia, até algum tempo atrás, uma tarefa impossível. Seriam tais crianças elegíveis para a escola? Estaria a escola preparada para recebê-las, afastando-se das práticas utilizadas nas clínicas psicológicas e terapêuticas em geral? Poderia a escola realizar seu papel educativo? (MENDES, 2006).  A inclusão de crianças com deficiência nas escolas regulares, sobretudo da rede pública tem sido motivo de discussão ao longo de vários anos, a qual se confunde com a própria história da Educação Especial no Brasil. A educação especificamente voltada para as pessoas com deficiência foi iniciada, institucionalmente, a partir da década de 1970, com a criação do Centro Nacional de Educação Especial (CENESP – Decreto Nº 72.425, de 3 de julho de 1973), que implantou setores de Educação Especial nas Secretarias Estaduais de Educação. A partir deste momento, as necessidades dos estudantes com deficiência passaram a ter lugar efetivo dentro das discussões da Educação em geral (FERREIRA e NUNES, 1997).  

No início do século XXI, estes estudantes começaram a ser considerados elegíveis para as escolas públicas, aqui no Brasil. Primeiramente em escolas especiais e, mais tarde, inseridas em escolas regulares, agrupadas nas chamadas classes especiais. Há bem poucos anos, teve início o processo de inclusão de tais crianças e adolescentes nas classes regulares.

Considerar estudantes com deficiência elegíveis para a escola é considerar que são capazes de aprender, desenvolverem-se, relacionarem-se com os demais, enfim, viver o dia a dia da escola. O desafio está para além de mantê-los nas salas de aula: ele consiste na qualidade de trabalho realizado.

A conduta externada por estas crianças merece destaque no que diz respeito à sua inserção em sala de aula, uma vez que “as diferenças, especialmente as incomuns, inesperadas e bizarras, sempre atraíram a atenção das pessoas, despertando, por vezes, temor e desconfiança” (OMOTE, 1996 p. 65). Conviver com tais diferenças e encontrar caminhos para realizar um trabalho legítimo e eficaz constitui-se a meta na ser alcançada por famílias e comunidades escolares.

No Brasil, o final do século XIX é considerado como o marco histórico da Educação Especial, no entanto, somente na década de 1960 é que teve início a fomentação de cursos de formação de profissionais para o ensino de pessoas com deficiência, devido ao crescimento de matrículas de estudantes em escolas especiais. Nessa época, estudantes com deficiências, ou mesmo aqueles que por algum motivo (privação de alimentos ou de saneamento básico, pobreza extrema, falta de estímulos familiares, entre outros), não se enquadravam no modelo de estudante pré-estabelecido pela sociedade, eram segregados nessas salas, que mesmo ocupando um mesmo espaço físico que as salas regulares, mantinham-se afastadas, com horários de entrada, merenda e saída, diferenciados, deixando-os à margem da educação de qualidade e do convívio com os seus pares e a diversidade (JANNUZZI, 2004).

No entanto, embora a educação pública e gratuita estivesse prevista desde a LDB de 1946, Silva (2012) avalia que antes da década de 1960, as classes especiais existentes eram predominantemente particulares e, por serem pagas, dificultavam o acesso de pessoas com deficiência pertencentes às classes populares. Quanto às classes especiais da rede pública, Ferreira (2006, p. 87) salienta que:

“além de serem poucas ainda […] acompanhavam, lentamente a expansão do ensino primário e de seus problemas, tal como o crescente fracasso escolar nas séries iniciais”.

A educação inclusiva, portanto, surge após muitas lutas encampadas por diversas organizações de apoio à pessoa com deficiência, passando a ter maior notoriedade, a partir da Constituição Federal de 1988, da Declaração de Salamanca, de 1994, e da LDB de 1996. Consequentemente, vivemos avanços importantes nas políticas de diretrizes educacionais, as quais impactaram na vida dessas pessoas, assim como em suas trajetórias educativas. Contudo, pensar sobre o papel da Educação Especial e seus processos de escolarização é importante para compreendermos como esta tem se constituído ao longo da sua história, e a partir das contradições e das disputas envolvendo diferentes atores sociais, interesses e projetos de educação.

Imagem representativa da Declaração de Salamanca (1994). Disponível em: https://www.blognegronicolau.com.br/2012/06/declaracao-de-salamanca-e-as-criancas-e.html. Acesso em 24/06/2025.

Até aqui parece ter ficado relativamente explicitado que ao longo dos tempos, a política de Educação Especial assumiu uma perspectiva inclusiva. Cabe perguntar, porém, no que ela consiste?

A primeira hipótese é a de que a perspectiva inclusiva não considera a possibilidade de atendimento educacional segregado, divulgado como aquele que ocorre exclusivamente em instituições não regulares em relação ao sistema educacional, mesmo porque, a grande maioria delas foi extinta. Contudo, tal perspectiva pressupõe um Atendimento Educacional Especializado (AEE), a ser realizado dentro das escolas regulares das redes de ensino, nas denominadas Salas de Recursos Multifuncionais (SRMs), com recursos e professores específicos. Tal dinâmica tem resultado em que os estudantes frequentem a escola de Educação Básica, em período regular e, frequente também, em contraturno, o espaço da SRM. Agrega-se ainda, à ideia de inclusão, a ideia de ser necessário respeitar as diferenças dos estudantes na escola de Educação Básica, por ser esta, uma escola de massas, e, portanto, ter como objetivo maior a convivência e sociabilidade entre os estudantes e não adotar como foco principal o trabalho com o conhecimento historicamente produzido e sistematizado na forma escolar.

Outra opção muito eficaz à inclusão e ao AEE, é o planejamento colaborativo, no qual professores das salas comuns e professores especializados trabalham juntos para flexibilizar o currículo e desenvolver práticas inclusivas. Essa colaboração promove a troca de conhecimentos e experiências, permitindo que as práticas pedagógicas sejam ajustadas às necessidades específicas de todos os estudantes, ao mesmo tempo que fortalece a confiança e o preparo dos docentes (CHRISTO e MENDES, 2019). Podemos verificar que, tanto no AEE contra turno, quanto no planejamento colaborativo, a utilização de tecnologias assistivas (ramo que visa eliminar barreiras para aumentar a participação, a inclusão social, a autonomia, a qualidade de vida e a independência das pessoas com deficiência) desempenham um papel crucial na promoção da inclusão. Ferramentas como tesouras adaptadas, engrossador de lápis, teclados e mouses adaptados, softwares de leitura, lupa eletrônica, leitor de tela, comunicadores e dispositivos que ampliam a acessibilidade ajudam estudantes com deficiência a acessar o conteúdo curricular e a participar mais ativamente das atividades escolares. Essas tecnologias permitem   maior   autonomia   e   ampliam   as   possibilidades   de aprendizagem em diferentes contextos (RIBEIRO et al, 2023).

É necessária, porém, uma mudança de perspectiva frente ao que se considera ensinar aos estudantes com deficiência. Mudança nas formas de pensar que parecem estar cristalizadas e que podem nos remeter a um modelo de Educação Especial pré-concebido, onde muitas vezes a ênfase está centrada nas limitações. Devemos, portanto, nos ater às possibilidades, alternativas e saídas criativas para que o ensino possa ser efetivado com êxito.

Identifica-se que a luta pela igualdade social da pessoa com deficiência vem sendo amplamente discutida, mas ainda existem controvérsias nos debates referentes aos seus direitos na atualidade. Neste sentido, evidencia-se que a escolarização de pessoas com deficiência continua sendo algo desafiador.

Observamos que, ainda hoje, muitos autores defendem este sistema de Ensino Especial paralelo, criado para educar as pessoas que apresentam alguma diferença, entretanto, esse sistema de ensino contribui, também, para que sejam segregados e excluídos da sociedade que os nega. Estes autores parecem que desconhecem a importância de se construir um processo de inclusão, gradativo, que é aconselhado por muitos.

Destacamos, também, alguns retrocessos legais, ao longo dos últimos anos, tendo como destaque o Decreto nº 10.502/2020, que diz respeito à Política Nacional de Educação Especial, que passou a estimular a segregação de estudantes com deficiência pelo incentivo à matrícula em escolas especiais. O que significou, na prática, que apesar da consolidação histórica de leis de incentivo à educação inclusiva ter registrado avanços, o que se tem no Decreto 10.502/2020 é uma nítida contradição em relação ao que é garantido pela Constituição Federal de 1988 e pela a LDB vigente. Tratava-se, portanto, de um Decreto visivelmente inconstitucional e que violava os direitos humanos das crianças e adolescentes com deficiência, pois previa a retirada desses estudantes do direito a igualdade de oportunidades que foram conquistados com muita luta e que objetiva promover uma sociedade mais justa e igualitária. Tal Decreto foi revogado, pelo Presidente Lula, em 1º de janeiro de 2023 e ficou conhecido como o Decreto da Exclusão!

Presidente Lula revoga Decreto 10.502/2020. Imagem: Sergio Lima. Disponível em: https://www.canalautismo.com.br/noticia/lula-revoga-politica-de-educacao-especial-de-2020/. Acesso em 24/06/2025.

Contudo, a publicação deste decreto, trouxe à tona, um retrocesso por parte da sociedade brasileira, no que se refere ao processo de inclusão escolar das pessoas com deficiência, numa nítida tentativa de silenciar a diversidade e os direitos dessas pessoas, de modo que buscou retomar a invisibilização de sujeitos historicamente excluídos, além de promover um processo de despolitização que tenta apagar a memória histórica e intimidar o pensamento crítico, agredir a identidade intercultural e atacar os direitos duramente conquistados. Fato que, deve ser compreendido como um alerta de que a história de luta por direitos e, principalmente por respeito às pessoas com deficiência, dentre elas, as crianças e jovens, é constante. SEGUIMOS NA RESISTÊNCIA!

REFERÊNCIAS

BRASIL. Decreto n° 10. 502, de 30 de setembro de 2020. Instituiu a Política Nacional de Educação Especial. 2020.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Inclusão: revista da educação especial, v. 4, n. 1, janeiro/junho 2008. Brasília: MEC/SEESP, 2008.

BRASIL. Assembléia Nacional Constituinte. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal / Secretaria Especial de Editorações e Publicações, 1988.

BRASIL. Declaração de Salamanca e linhas de ação sobre necessidades educativas especiais. Brasília: Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa com Deficiência (CORDE), 1994.

CHRISTO, Sandy Varela de e MENDES, Geovana Mendonça Lunardi. Ensino Colaborativo/Coensino/Bidocência para a educação inclusiva. Instrumento: Rev. Est. e Pesq. em Educação, Juiz de Fora, Minas Gerais. v. 21 n. 1, 2019.

FERREIRA, J. R. Educação especial, inclusão e política educacional: notas brasileiras. In: Inclusão e educação: doze olhares sobre a educação inclusiva. São Paulo: Summus, 2006.

FERREIRA, J.; NUNES, L. A Educação Especial na nova LDB. In: Múltiplas leituras na LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96). Rio de Janeiro: Qualitymark/Dunya, 1997.

JANUZZI, G. M. A educação do deficiente no Brasil: dos primórdios ao início do século XXI. Campinas:  Autores Associados, 2004.

MENDES. Enicéia Gonçalves. A radicalização do debate sobre inclusão escolar no Brasil. Revista Brasileira de Educação. v. 11 n. 33 set./dez. 2006.

OMOTE, Sadao. Estereótipos a respeito de pessoas deficientes. Didática, São Paulo, v. 22, p. 167-180, 1986.

RIBEIRO, Anna Beatriz et al. A Inclusão Educacional do Sujeito Surdo: Direito Garantido ou Reprimido? Revista Científica FESA. V.3, nº 11, 2023.

SILVA, A. M. da. Educação especial e inclusão escolar: história e fundamentos. Curitiba (PR): InterSaberes. UNESCO.

* Célia Regina Gaião é Mestre em Educação Especial com a temática Distúrbios do Desenvolvimento pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Graduada em Educação Física pela Universidade de Mogi das Cruzes e em Pedagogia pela Universidade Nove de Julho. É professora da sala de recursos multifuncional na Rede Municipal de Educação de São Paulo, atuando principalmente com as temáticas de inclusão, teste de associação implícita, preconceito e implícito/explícito e Educação em Direitos Humanos.

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