Cláudia Aparecida Cesar Rezende
Ana Maria Dietrich
Resumo
Este artigo apresenta um relato analítico da participação na 5ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CONAPIR), realizada em Brasília em setembro de 2025, articulando vivências pessoais, debates coletivos e desdobramentos acadêmicos. Considerando o hiato de sete anos desde a última edição, a 5ª CONAPIR representou um marco histórico ao reunir delegações de todo o país e aprovar a criação do 18º Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS), dedicado à igualdade étnico racial. O texto descreve a experiência como delegada eleita a partir das etapas regionais, destacando o protagonismo dos movimentos sociais, a pluralidade das representações e a potência dos diálogos estabelecidos. Analisa-se a conferência como espaço de formação política e pedagógica, organizada em três eixos ( Democracia/Justiça Racial/ Reparação), coloco ênfase no diálogo entre igualdade racial, justiça socioambiental e educação antirracista. Por fim, reflete-se sobre a relevância das trocas realizadas com quilombolas, lideranças acadêmicas e representantes de diferentes estados, ressaltando como tais experiências impactam e enriquecem a pesquisa de mestrado em andamento, voltada para a construção de uma educação ambiental crítica e antirracista.
Palavras-chave: Igualdade racial; Justiça socioambiental; Educação; Racismo ambiental; Conferências nacionais; ODS 18.
Introdução
As conferências nacionais realizadas no Brasil constituem importantes instrumentos de participação social e de construção coletiva de políticas públicas. Entre elas, a Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CONAPIR) se destaca por constituir-se como um dos espaços mais significativos de construção democrática, por possibilitar o encontro de diferentes sujeitos políticos e por promover o debate sobre estratégias de combate ao racismo estrutural. Em 2025, após um intervalo de sete anos desde sua última edição, a 5ª CONAPIR foi realizada em Brasília, mobilizando milhares de pessoas de todo o país em torno da defesa da igualdade racial.

A CONAPIR está articulada ao Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (SINAPIR), criado pela Lei 12288/2010 – o Estatuto da Igualdade Racial, é um mecanismo de articulação federativa e de integração entre União, estados, municípios e sociedade civil, voltado para a implementação de políticas desenvolvidos para a superação das desigualdades raciais. Desta forma a CONAPIR, é mais do que um espaço de diálogo, trata-se de uma engrenagem mais abrangente que dá sustentação e institucionalidade à política de igualdade racial no Brasil.


Este artigo tem por objetivo relatar e analisar a experiência de participação na 5ª CONAPIR, articulando três dimensões: (1) a vivência como delegada eleita na etapa regional; (2) os debates e marcos políticos estabelecidos na conferência; e (3) a relação entre essa experiência e minha pesquisa de mestrado, centrada no enfrentamento ao racismo ambiental e na construção de atitudes individuais sociais impregnada de educação ambiental múltipla e crítica.

A 5ª CONAPIR: organização e vivências
A 5ª CONAPIR reuniu milhares de delegados (as) eleitos(as) em conferências estaduais e municipais, além de convidados(as) representantes de instituições públicas, da sociedade civil e expositores selecionados com base em análise de currículo. O espaço de recepção e credenciamento já evidenciava a diversidade de vozes e de corpos presentes, compondo um mosaico de identidades e lutas.
Essa etapa nacional, foi marcada pela grandeza de um encontro que não se resume ao ato político, mas se configurou como ritual coletivo de memória, reconhecimento e projeção ao futuro.
Durante os dias de atividades, foram realizadas mesas de abertura, grupos de trabalho (GTs), plenárias e apresentações culturais. Cada delegação estadual apresentou sua marca política. As manifestações das delegações do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina foram especialmente significativas, expressando um belo movimento de afirmação e pertencimento, um grito de resistência em territórios historicamente marcados pela hegemonia da branquitude. Essas delegações denunciaram as múltiplas formas de exclusão e apagamento que afetam populações negras, indígenas e quilombolas. Nesse sentido, como afirma Sueli Carneiro, “a luta contra o racismo é também a luta pelo direito de existir, de ser sujeito e não objeto, de ser visível e não invisível, de ser pleno e, nossa humanidade” (CARNEIRO,2011, p.51)
Percebi, assim que algumas pautas coletivas se perdiam e se individualizavam. Em um dos Grupos de Trabalho (GT) de justiça racial, por exemplo, a discussão inicial centrava-se em políticas públicas voltadas à capoeira. Embora de extrema relevância, a proposta carecia de uma perspectiva mais ampla capaz de contemplar outras expressões culturais igualmente fundamentais para a afirmação e a resistência da população negra, como o Maracatu, por exemplo. Uma pauta coletiva, ao ser reduzida a uma reivindicação isolada, corre o risco de afastar do horizonte mais amplo, a transformação social pretendida.
Neste sentido, experiências formativas como o curso de extensão Africanidades podem desempenhar papel crucial para a sensibilização e a conscientização na formação política. Tais espaços contribuem para que a militância, ao reconhecer a importância de cada expressão cultural, também consiga articular pautas mais abrangentes e interligadas fortalecendo o sentido coletivo da luta.
A experiência de participar como delegada teve início nas etapas regionais, quando proferi a palestra magna e fui eleita para representar a região na etapa estadual. Esse percurso fortaleceu meu compromisso com a construção coletiva de propostas e permitiu vivenciar, na prática, o caráter democrático das conferências. Estar em Brasília como expositora/observadora e representante da Universidade Federal do ABC (UFABC) foi, ao mesmo tempo, motivo de orgulho e de responsabilidade.
Outro aspecto significativo foi a presença marcante de diferentes povos e comunidades tradicionais. Quilombolas, indígenas, ciganos e povos tradicionais de matriz africana compartilharam relatos de luta e resistência, evidenciando como a questão racial está intrinsicamente ligada ao direito ao território e à preservação das formas de vida.

Um ponto de destaque emergente nos debates foi a proposta de criação de um ministério quilombola. Essa iniciativa de forte valor simbólico e político sinaliza para a necessidade de reconhecimento institucional das demandas específicas das comunidades quilombolas -7666 comunidades de acordo com o IBGE[1]– garantindo-lhes centralidade na formulação de políticas públicas. A criação desse ministério representaria um avanço no enfrentamento da dívida histórica com os quilombos e na consolidação de direitos territoriais, sociais e culturais.
Testemunhar estes momentos, trouxeram à tona o conceito de racismo ambiental, tema central de minha pesquisa, que reafirmaram a urgência de pensar políticas públicas que articulem igualdade racial e justiça socioambiental.
Debates, propostas e marcos políticos
A metodologia da 5ª CONAPIR priorizou o trabalho em grupos temáticos, que discutiram os eixos previamente definidos, consolidando propostas que posteriormente foram debatidas em plenária. Esse processo coletivo reafirmou o papel das conferências como instrumentos de deliberação democrática.

Entre os marcos políticos mais relevantes, destacam-se a defesa do fortalecimento do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (SINAPIR), o reconhecimento das Casas da Igualdade Racial e a reiteração da Marcha Zumbi e Dandara como símbolo de luta. Entretanto, o momento mais relevante, histórico foi a assinatura, pela Exma srª Ministra Anielle Franco e outras autoridades, do 18º Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS), dedicado à Igualdade Étnico-Racial.

A criação do ODS, anunciado em 2023 representou não apenas uma vitória simbólica, mas também a inserção definitiva da pauta racial no campo das políticas globais de desenvolvimento sustentável.
Ao longo da conferência, também se evidenciou a potência do feminismo negro, construído a partir do acolhimento, do cuidado e do incentivo mútuo entre mulheres. Muitas falas empíricas trouxeram à tona o conceito de interseccionalidade, revelando como as opressões de gênero, raça, classe e território se sobrepõem na vida das mulheres negras.
O engajamento no movimento de liberação das mulheres, provocou reações contraditórias. Nos encontros e congressos feministas brancos, mulheres negras eram frequentemente consideradas “agressivas” ou “não feministas” por conta de sua insistência em que o racismo precisava ser parte da luta feminista, já que, assim como o sexismo, era igualmente uma forma estrutural de opressão e exploração. (Gonzalez, 2020, p.164)


Fotos: Organização das mulheres para a marcha que ocorrerá em novembro e Assinatura 18ºODS pela Exma srª Ministra Anielle Franco (Fonte: Acervo pessoal)
Essa dimensão pedagógica da conferência tornou-se um grande aprendizado coletivo, demonstrando que a luta pela igualdade racial passa, necessariamente, pelo fortalecimento das mulheres negras.

Articulação com a pesquisa de mestrado
A vivência na 5ª CONAPIR trouxe contribuições diretas para minha pesquisa de mestrado, voltada à desconstrução da cultura conservacionista da educação ambiental e à elaboração de um manual para coexistência e preservação ambiental sob uma perspectiva antirracista.
Durante o evento, tive a oportunidade de dialogar com quilombolas e representantes de delegações de estados como Roraima e Mato Grosso. Essas trocas ampliaram minha compreensão sobre as múltiplas faces do racismo ambiental e sobre as resistências locais frente às ameaças de devastação e exclusão. Entre esses encontros, destaco a aproximação com o conselheiro e o secretário do Meio Ambiente do Mato Grosso, com os quais se desenrolou uma longa conversa sobre a permanente luta para participar das pautas que discutem sobre si mesmos, mas que são preteridos desses debates e decisões. Com essas pessoas estabeleci contato para futuras interlocuções acadêmicas e institucionais.
Esse desejo de mundo sempre esteve presente na humanidade, caracterizou, inclusive, toda a colonização dos continentes. Acontece que, quando ele vem associado a uma lógica ocidental, carrega a ideia de cultura em oposição à de natureza. (Krenak, 2022, p.84)

Outro momento de grande importância ocorreu em um encontro, após o almoço, com mulheres da Bahia, do Rio de Janeiro, do Maranhão e de Roraima. Uma conversa que trouxe reflexões fundamentais sobre o cuidado que a academia deve ter ao tratar dos saberes tradicionais.
Por que a academia usa a palavra ecologia e não agricultura quilombola? Por que não usa roça indígena? As universidades são fábricas de transformar os saberes em mercadoria e a agricultura quilombola não é mercadoria.(Santos, 2023, p.100)
A transferência destes saberes ocorre principalmente pela oralidade. Esse meio de propagação, que atravessa gerações e resiste ao apagamento colonial, mostrou-se central para compreender como a educação ambiental crítica pode dialogar com epistemologias ancestrais. Ao ouvi-las recordei-me de uma aula na disciplina de Formação de professores: Tendências investigativas em que discutíamos sobre os obstáculos enfrentados pelos professores(as), o quanto o conhecimento dos professores (as) deve ser equilibrado e articulado.
Os saberes referentes ao conteúdo, à experiência e à cultura são essenciais no exercício da atividade docente, mas “tomá-los como exclusivos é mais uma vez contribuir para manter o ensino na ignorância” (Gauthier, 1998, p. 25) e reforçar a perpetuação de um ofício sem saberes.
Outra preocupação externada por essas mulheres é o cuidado com a permanência dentro da cultura, com as metodologias ancestrais., posicionamentos conversados ali em conexão com o que Krenak afirma em seu livro.
(…)Espalham quase que o mesmo modelo de progresso que somos incentivados a entender como bem-estar no mundo todo.(…) Enquanto isso a humanidade vai sendo descolada de uma maneira tão absoluta desse organismo que é a terra. Os únicos núcleos que ainda consideram que precisam ficar agarrados nessa terra (…) São os caiçaras , índios, quilombolas, aborígenes (…).(Krenak, 2020, p.21)

A 5ª CONAPIR também proporcionou encontros marcantes com referências históricas, do movimento negro e da pesquisa acadêmica, como Ieda Leal e Wanderson Flor. Suas trajetórias e reflexões trouxeram densidade teórica e inspiração política, reafirmando a importância da articulação entre militância e produção acadêmica.



Fotos: Quilombola Carlene Printes homenageada e representante do Quilombo mais antigo do Brasil; Ieda Leal Ativista ativa do Movimento Negro e do Movimento Sindical e atualmente exerce o cargo de Secretária de Combate ao Racismo da CNTE, Secretaria de Comunicação da CUT/GO, Conselheira do Conselho Estadual de Educação de Goiás/CEE-GO, Coordenadora do Centro de Referência Negra Lélia.Gonzáles; Wanderson Flor Professor de Filosofia e Direitos Humanos . Pesquisa Filosofias Africanas, Relações Raciais e Ensino de Filosofia pela UNB Fonte: Acervo pessoal
Essas experiências evidenciam que a conferência não apenas fortalece as políticas públicas, mas também atua como um espaço de formação e aprendizagem política que dialoga diretamente com a produção acadêmica crítica e transformadora.
Considerações finais
A 5ª CONAPIR confirma a centralidade da igualdade racial como condição para a democracia e para a sustentabilidade no Brasil. Mais do que um evento, constituiu-se como um espaço pedagógico de resistência, cuidado e construção coletiva, no qual as experiências compartilhadas se tornaram insumos para a formulação de políticas e para a produção de conhecimento.
Entre os pontos mais significativos, destaca-se a criação do 18º ODS – Igualdade Étnico Racial, que representa a institucionalização da pauta racial no cenário internacional do desenvolvimento sustentável. Para mim, testemunhar esse nascimento foi uma experiência histórica e profundamente emocionante, pois sustenta que não pode haver justiça socioambiental sem igualdade racial.
A conferência também deixou como legado a certeza de que a pesquisa acadêmica precisa buscar compreensões que estão enraizadas nas experiências e nos saberes dos povos e comunidades que resistem cotidianamente ao racismo. Assim, a 5ª CONAPIR não apenas inspirou, mas também consolidou caminhos para a continuidade de minha pesquisa de mestrado, voltada para a construção de uma educação ambiental crítica, antirracista e comprometida com a transformação social.




Referências
ALMEIDA, Patrícia Cristina Albieri de; BIAJONE, Jefferson. Saberes docentes e formação inicial de professores: implicações e desafios para as propostas de formação. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 2, p. 275-288, maio/ago. 2011.
BRASIL. Ministério da Igualdade Racial. Documentos oficiais da 5ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CONAPIR). Brasília: Ministério da Igualdade Racial, 2025.
CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 50. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2021.
GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afrolatino-americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
KRENAK, Ailton. Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
SANTOS, Antônio Bispo dos. A terra dá, a terra quer. Brasília: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), 2015.
SANTOS, Maria E. V. Moniz dos. Ciência como cultura: paradigmas e implicações epistemológicas na educação científica escolar. Química Nova, v. 32, n. 2, p. 530-537, 2009.
Cláudia Aparecida Cesar Rezende

Mestranda do programa de Pós-graduação em Ensino e História das Ciências e da Matemática pela UFABC, Pesquisadora das linhas: Educação em Direitos Humanos e Africanidades, mulheres e Educação Antirracista nas infâncias. Pedagoga, atuante na rede municipal de São Paulo.
Especialista em Educação em Direitos Humanos pela UFABC, Letramento e Literatura Infantil, Sociologia e Educação Étnico-raciais e Práxis antirracista. Possuo extensão em Direito e Questões Raciais pela Escola Paulista de Magistratura. Coautora do livro: O que pode a escola vazia e autora do projeto de intervenção: Palavra aberta com mulheres. Colaboradora de documentos oficiais como o Currículo da Cidade – Educação Infantil/ Orientação Normativa de Registros na Educação Infantil/ e Leitura Literária na Educação Infantil: Inter-relações Humanizadoras. Eleita delegada nas Conferências Estaduais por Igualdade Racial, articula sua atuação acadêmica, política e cultural. Integra ainda grupo de cultura popular de Maracatu em São Paulo, onde atua como professora de dança, promovendo apresentações e diálogos formativos em escolas e espaços públicos.
[1] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou, em 19/07/2024, o levantamento inédito apontando a existência de 8.441 localidades quilombolas no território brasileiro, associadas a 7.666 comunidades quilombolas declaradas pelos informantes do Censo Demográfico de 2022. Segundo o levantamento, a Região Nordeste possui o maior quantitativo de localidades identificadas, com 5.386 ocorrências, sendo o Estado do Maranhão o que possui a maior quantidade de localidades, com 2.025.

Excelente artigo. Parabéns pela participação em tão importante evento.
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