O CONHECIMENTO SOBRE INFÂNCIAS PARA SE GARANTIR DIREITOS

*Irene Franciscato

           “ …a criança não existe. Somente crianças existem; crianças em um contexto particular; crianças que são diferentes umas das outras; crianças com diferentes sensos” (MEAD, 1977,p.23).

Este texto tem o objetivo de discutir a concepção de criança e de infância. Entende-se aqui, criança tal como Mead (1977, p. 33) as descreve: de que criança – ou crianças , no plural -, é o ser humano concreto e em contexto e que infância é o período categórico criado pelas ciências para defini-la.

É consenso, na convergência das diferentes ciências que têm crianças como objeto de estudo, que estas são seres biopsicosociais, culturais e históricas. Por conta da biologia, esta define fases de desenvolvimento, desde a sustentação da cabeça, sentar-se sem apoio, engatinhar, andar, locomover-se com autonomia pelo espaço, correr etc.  Acompanhando e integrando-se à conquista dessas habilidades, outras, de natureza psicológica vão surgindo, como o gesto, a fala, o pensamento, as interações sociais com seus coetâneos, a imaginação, o simbolismo. São habilidades que podem ser consideradas universais pela psicologia do desenvolvimento, isto é, independente do meio social, mais cedo ou mais tarde, surgirão como comportamentos que podem ser observados em todas as crianças.

Contudo as marcas sociais e culturais já se fazem presente inclusive neste início da infância. Vejamos por exemplo, a aquisição da fala e a capacidade de simbolização da criança pequena. A fala ou linguagem oral que se interiorizará como pensamento será da ordem sociocultural pois a criança aprenderá a língua materna que vigore em seu entorno, assim por exemplo, a língua portuguesa brasileira ou qualquer outra língua estrangeira, conforme a região ou país em que viver. Assim também será com a aquisição da linguagem escrita nas sociedades que se valem desse meio de representação da língua: cada criança com sua língua escrita específica.

 Da mesma forma, o jogo simbólico infantil terá como formas de imitação pelas crianças os fazeres de adultos observados e simulados, variando estes conforme os grupos sociais a que pertençam. Assim, o jogo simbólico de crianças cujos pais são ribeirinhos com afazeres típicos desse modo de vida, terão, em suas manifestações das brincadeiras simbólicas, esta característica, diferente de uma criança com pais sulistas com afazeres eminentemente urbanos, portanto manifestando cada uma modos diversos de representação simbólica.

Em se tratando de nosso país, as infâncias são muitas e diversas. Assim, temos a infância das crianças do sertão, das crianças indígenas, das crianças ribeirinhas, crianças do movimento dos sem-terra, crianças do movimento dos sem teto nos grandes centros urbanos abandonados, crianças do meio rural, crianças dos centros urbanos periféricos e não periféricos, crianças quilombolas, crianças com alguma deficiência,  enfim, não há uma criança universal nem tampouco uma única infância mas muitas e diversas crianças e infâncias.

Diversidade de crianças. Fonte: Blog Xalingo: https://blog.xalingo.com.br/2021/10/como-falar-com-as-criancas-sobre-diversidade/. Acesso em 01/07/2025.
 

Como ressaltam Abramovicz, Levcovitz e Rodrigues (2009, p. 80) a “ideia de infância não está atrelada unicamente à faixa etária, à cronologia, a uma etapa psicológica ou a uma temporalidade linear, cumulativa e gradativa, mas sim ao acontecimento, à arte, ao inusitado, ao intempestivo”.

Ainda segundo essas autoras, há que se considerar a infância como um verdadeiro bolsão de sentidos que se sobrepõe a todas as crianças. O foco não deve se um desabrochar para a vida adulta, mas sim um viver já, em contextos reais cada criança com suas características e influências diversas. Haverá bilhões delas, de todos os jeitos e em todas as partes, vivendo diversas infâncias, em diversos tempos. Não há linearidade e não há universalidade para as diferentes culturas em que vivem as crianças.

Crianças alegres. Fonte: LegisBlog Inteligência Jurídica. Disponível em https://blog.legishub.com.br/criancas-podem-visitar-pais-em-hospitais/. Acesso em 01/07/2025.

Seguindo o mesmo pensamento das autoras em questão, educar crianças as coloca no espaço público e este, por sua vez, é diferente do espaço familiar, fraternal, doméstico. Tal espaço público permite experimentações múltiplas, diversas. Por excelência, é o espaço da criação, quando se exercitam diferentes formas de sociabilidade, ação e subjetividade, o que aliás, não é possível no espaço familiar.

 O espaço público expõe e possibilita às crianças outras interações, outros afetos…Assumindo essa perspectiva, a professora estará empenhada em entender o que as crianças falam, o que querem conhecer, enfim, o que há de interessante a se fazer ou se deixar de fazer, quais são as possibilidades de novas brincadeiras etc. Enfim, considerando-se as especificidades e diversidade das crianças e das infâncias, se estará garantindo os direitos humanos essenciais para que se realizem no aqui e agora, no presente, e não no vir a ser alguém, no vir a ser um adulto.

Estas considerações nos remetem à formação inicial dos professores, especialmente nos cursos de pedagogia ao estudarmos o currículo ao qual os futuros educadores têm acesso no processo formativo. Parece haver uma ênfase nos estudos psicológicos de tradição europeia que sem negar sua importância, contribuem com uma ideia de criança e de infância apartada do contexto social e histórico, enfatizando mais os aspectos biopsicológicos, enfim uma criança que evolui abstratamente, independente das condições concretas de sua existência.

Capa CONEDU – Inclusão, Direitos Humanos e Interculturalidade (Vol. 02). Disponível em https://mail.editorarealize.com.br/artigo/visualizar/105829. Aceso em 01/07/2025.

Ocorre que para dar conta da diversidade de crianças e das infâncias, esse currículo de base técnico-racionalista teria que ser amplamente discutido e incorporar sensivelmente os conhecimentos advindos de antropologia e da sociologia da infância visto que são essas áreas do conhecimento as que clareiam conceitos que ultrapassam um desenvolvimento infantil linear, cronológico e abstrato, apresentando-nos as infâncias em sua complexidade e diversidade. Repetindo-nos mais uma vez, será no reconhecimento dessa complexidade e diversidade que os direitos humanos das crianças poderão ser atendidos plenamente.

Para saber mais…

Abramovicz, Anete; Lercovitz, Diana; Rodrigues, Tatiane C. Infâncias em Educação Infantil. Rev. Pro-posições. 20 (3) Dez 2009. Unicamp, Faculdade de Educação.

* Irene Franciscato é psicóloga e pedagoga, doutora em Educação pela PUC São Paulo ( 2003), professora universitária aposentada no curso de Pedagogia  (Faculdades Oswaldo Cruz – São Paulo,  FASB – São Bernardo do Campo e Fundação Santo André – Santo André); atualmente é pesquisadora colaboradora no Grupo de Pesquisa da UFABC EDH,  colunista da Revista Contemporartes EDH também da UFABC e atua como psicóloga de grupo de convivência 60+.

Contato: irenefranciscato@gmail.com

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