** Profa. Dra. Irene Franciscato
Setembro e o próximo outubro nos lembrarão duas datas, a saber, neste 21, o Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência (Lei n.11.133 de 2005) e no mês seguinte, no dia 11, o Dia Nacional da Pessoa com Deficiência Física (Lei n.2795 de 1981), oportunas para que mais uma vez, coloquemos em evidência os direitos da pessoa com deficiência.
Conquistas como normas, decretos e leis tal como a Lei Brasileira da Inclusão (Lei n.13.146 de 2015), dispondo sobre cotas em concursos públicos e na colocação profissional no setor empresarial, acessibilidade a hotéis e afins; assentos preferenciais em locais públicos como cinemas, teatros; unidades habitacionais adaptáveis evidenciam avanços que confirmam à pessoa com deficiência a garantia de seus direitos na esfera pública e privada.


Ao tratarmos da deficiência, é necessário lembrar que a interseccionalidade de raça, classe, idade e gênero em sociedade desigual como a nossa também perpassa essa temática, criando assim múltiplas realidades, portanto muitos olhares. Contudo, aqui delimitaremos o gênero e uma especificidade: a física. Ou seja, trataremos de algumas questões que permeiam a vida feminina com deficiência física. Entende-se a vida feminina aquela que se subjetiva corporalmente, cuja identidade é construída social e historicamente em diferentes corpos. Entende-se deficiência física como alterações completas ou parciais de um ou mais segmentos desses corpos femininos, no plural, em todas as suas manifestações que, em graus diferentes, acarretam comprometimento da mobilidade, da coordenação motora e/ou da fala; tem múltiplas causas e pode ocorrer ao longo do desenvolvimento humano, desde o período gestacional, como as malformações congênitas ou partos traumáticos; na juventude, decorrentes de acidentes de trânsito; na maturidade, por doenças degenerativas neurológicas e no período de envelhecimento, por doenças graves que acarretam limitações e adaptações para a independência de ir e vir etc.

SOBRE O CORPO FEMININO E A DEFICIÊNCIA FÍSICA
Apesar dos avanços em relação aos corpos femininos, resquícios da sociedade patriarcal hierárquica e autoritária ainda se perpetuam em mentalidades conservadoras e estes, por sua vez, se refletem na lenta modificação de leis, haja vista a manutenção da que entre nós, aprova o aborto em circunstâncias bem específicas, apesar da sociedade estar a par dos inúmeros casos de morte em período reprodutivo que têm em sua origem o paradoxo dessa mesma lei.
Preceitos patriarcais presentes na sociedade capitalista interligam-se e ainda reforçam um modelo de corpo feminino subalterno, tornando-o um objeto hierarquizado em relação ao gênero e raça, haja vista a violência praticada contra corpos femininos brancos e negros, hetero ou trans. Ao mesmo tempo, como consumo, tornam-se um objeto erótico e estético, haja vista sua associação à sexualização do prazer e também associação a um modelo de corpo branco, magro e jovem, projetado principalmente pela grande mídia e alimentado por segmentos da área da saúde que valorizam tal estética em detrimento do lucro que dela possa ser obtido.
O que dizer das experiências de vida de corpos femininos que trazem diferenças decorrentes de uma limitação física, expostos e circunscritos a uma sociedade que por esse contexto, retrata o abismo existente em relação às igualdades e a garantia dos direitos humanos no campo feminino?

Alguns dados de organizações não governamentais (ONGs) apontam que mulheres com deficiência sofrem três vezes mais violência do que as mulheres sem deficiência, porém talvez ainda tenhamos dados insuficientes, já que foi apenas a partir de 2019, pela Lei n. 13.836, que informar sobre a condição de deficiência da vítima nos boletins de ocorrência de violência doméstica tornou-se obrigatório. Anteriormente à essa lei, em 2018 a Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (Ligue 180) – registrou que dos 46. 510 casos de violência contra a mulher (67,9%), a denúncia foi feita pela própria vítima e em se tratando de mulheres com deficiência vítimas de algum tipo de violência, o percentual era de 8,5% daquele total. Em relação às mulheres negras, dados de 2016 desse mesmo serviço indicavam que dos 68 mil atendimentos, 59,71% eram mulheres negras, vitimadas por violência como a física (de maior incidência), a psicológica, a moral, o cárcere privado, a sexual, a patrimonial e por última incidência, o tráfico de pessoas. Nenhuma das fontes acima indicou dados especificamente relativos às mulheres com deficiência física, mas aqui arriscamos supor que a ocorrência da violência contra o corpo feminino – branco e negro com deficiência física – esteja aí incluída.
Talvez na condição da deficiência física, quebrar o silêncio sobre a própria vitimização seja mais difícil se a pessoa for dependente doméstica ou economicamente de seus possíveis agressores. Justamente por essa razão, o cumprimento legal de cotas já citado, ainda precise avançar na inclusão da pessoa na condição de deficiência física no mundo do trabalho apoiado. Pela RAIS – Relação Anual de Informações Sociais (2020), das 530 mil pessoas com deficiência (1% da população brasileira), 44, 46% são de pessoas com deficiência física. Aqui também supomos estarem incluídos os corpos femininos com deficiência física já que não há indicação estatística que indique sua proporção. Nesse campo, há ainda desafios a serem superados como a mudança da cultura empresarial em níveis de alto gerenciamento, conhecimentos a serem apropriados por empregadores e equipes que sanem dificuldades da convivência cotidiana no trabalho, incentivo à convivência extratrabalho, assim como oportunidade de capacitação profissional para a pessoa com deficiência física.
Na tecitura dessa mentalidade hierárquica e consumista, há ainda de haver enfrentamento para que se avance nos direitos humanos em relação à deficiência física feminina, por exemplo, apontar as suas próprias contradições. É o caso do direito à expressão da sexualidade feminina que, se por um lado valorizada ao extremo a ponto de se tornar objeto de dominação e posse como apontado, quando se trata de corpos femininos com deficiência física, por não corresponderem ao padrão do corpo feminino ideal, paradoxalmente são vistos como naturalmente destituídos do componente erótico, portanto sem direito de expressarem e viverem sua sexualidade saudável enquanto direito humano.
Em especial quando se trata de direitos reprodutivos, a mentalidade hierárquica opera sobre os corpos femininos frente à maternidade/maternagem (gestada ou não) de modo autoritário. Sabe-se que esta, além do componente biológico, esta resulta de construções histórico-sociais, o que significa dizer que na história humana, apresenta-se singular nas diferentes culturas e que se transformou/se transforma ao longo dos tempos.
Resquícios dessa sociedade patriarcal ainda considera tal experiência apenas na sua interface biológica e naturalizada, a ponto de esperar que todos os corpos femininos a vivenciem sem exercício de escolha. Se a reação é geralmente de surpresa quando não se tem o desejo de ter a experiência da maternidade/maternagem, quando frente aos corpos femininos com deficiência física, essa mesma sociedade os considera antecipadamente impedidos de vivê-la, negando-lhe o direito de escolha. Ao invés da oferta de cuidados para uma maternidade/maternagem assistida como causa defendida pela sociedade e inserida nas políticas públicas que equiparam direitos mediante diferenças mediante serviços de saúde inclusivos, pela condição do corpo diferente, tenta-se antecipadamente negar ou até impedir a possibilidade de se ter essa experiência na vida adulta.
O capacitismo ainda enraizado em nossa sociedade frente ao corpo feminino com deficiência física, ainda que combativo na retirada da responsabilização da pessoa por sua deficiência e colocando tal responsabilidade nos braços das políticas públicas e da sociedade civil precisa continuar a ser enfrentado. Tal combate abarca todas as fases da vida, desde a infância – quando as primeiras experiências escolares bem ou mal sucedidas, bem ou mal amparadas, espelham imagem de sucesso ou fracasso para as meninas; na adolescência – quando estas experiências continuam e forjam a constituição de identidades e de autoestima; na vida adulta, em todas as suas interfaces, como a experiência da sexualidade, dos direitos reprodutivos e trabalho e por fim, chegando ao envelhecimento, quando a dignidade continua a existir.
Sabemos a necessidade de que recursos materiais diversos, serviços de saúde e sociais (como a assistência aos cuidados pessoais) estejam acessíveis em todas as fases de vida para que a deficiência física não impeça a independência e autonomia de todos os corpos femininos, inclusive equiparando aquelas desigualdades decorrentes das marcas de classe, raça e idade. É preciso tornar a causa dos corpos femininos com deficiência física ainda mais visível por suas próprias vozes, mas também com nosso apoio pela causa para que mentalidades ultrapassadas sejam desconstruídas e que políticas públicas nas esferas municipal, estadual e federal garantam seus direitos para que se vejam no espelho como corpos femininos dignos e respeitados.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
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PIERETTI, Flávia. Vozes de mulheres com deficiência e a violência de gênero: análise discursiva de narrativas de vida em Campo Grande. Dissertação de mestrado presentado ao Programa de Pós-Graduação em Letras, na UEMS – Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul.
PORTAL GELEDÉS. Pesquisa Mulheres Negras e Violência Doméstica: decodificando os números – e-Book. 2017. Disponível em https://www.geledes.org.br/pesquisa-mulheres-negras-e-violencia-domestica-decodificando-os-numeros-e-book/. Acesso em 05/09/2023.
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PORTAL GELEDÉS. Mulheres negras, deficiência e invisibilidade – Por: Jarid Arraes. 2013. Disponível em https://www.geledes.org.br/mulheres-negras-deficiencia-e-invisibilidade-por-jarid-arraes/. Acesso em 25 de agosto de 2023.

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