Os imaginários da cidade e a concepção de lugar a partir das obras de Arlindo Cruz

**Marlyane Rogério da Conceição

RESUMO

O presente artigo analisa os imaginários da cidade e a concepção de lugar presente nas obras de Arlindo Cruz. Nascido em Madureira, bairro tradicional do subúrbio do Rio de Janeiro, traz em suas músicas a poesia e a identidade desse lugar. O texto destaca a importância de considerar a subjetividade e a interação social na criação do espaço geográfico, discute-se também os conceitos lugar, memória, temporalidade e espaço.

Palavras-chave: Imaginários,  Cidade, Lugar, Identidade e Memória.

INTRODUÇÃO

Arlindo Domingos da Cruz Filho, mais conhecido como Arlindo Cruz, renomado cantor e compositor carioca, iniciou sua carreira na década de 1970 como integrante do grupo Fundo de Quintal, é responsável por inúmeros sucessos  e clássicos do samba, tendo canções gravadas por diversos artistas. Nascido no bairro de Madureira, bairro tradicional da zona norte, que é reconhecido como o “berço do samba”, Arlindo traz em suas obras a “poiesis” do bairro

O espaço geográfico é algo que é criado e reinventado pelos seres humanos. É uma expressão da subjetividade e da interação social. Por isso, é importante que a geografia se aprofunde no diálogo com o mundo poético do pensamento e da criação. A poesia é uma ferramenta poderosa da literatura para abordar a realidade, especialmente o cotidiano, que é onde a reflexão poética acontece de forma mais intensa. É através desse diálogo cotidiano com as paisagens reinventadas que compreendemos as formas e conteúdos do mundo (FLÁVIO, 2019).

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A palavra poiesis, pode ser utilizada para definir a forma poética, subjetiva e coletiva do imaginário do lugar, um termo de origem grega que se refere à criação, à produção artística e capacidade de expressar a realidade de forma poética.

O termo “imaginário” possui diversos significados, dependendo do contexto em que é utilizado. O imaginário, em geral, está relacionado à dimensão simbólica e subjetiva da experiência humana, representações de imaginário são significados atribuídos à imaginação, conceitos ou fenômenos. Existem também representações coletivas às crenças, mitos, símbolos e narrativas.

Quando tratamos dos imaginários em torno da cidade, estamos nos referindo à construção social resultante das interações e vivências compartilhadas pelas pessoas que habitam ou frequentam um determinado “lugar”. O compartilhamento de memórias, experiências, histórias, práticas e tradições. As manifestações culturais são uma forma de refletir e comunicar através de interpretações simbólicas, também constroem uma identidade e sentimento de pertencimento com o lugar.

O presente artigo tem como objetivo contribuir com o campo de estudos sobre geografia urbana, cultura e música, fornecendo uma análise interdisciplinar dos imaginários da cidade e da concepção de lugar a partir das obras de Arlindo Cruz, identificando os elementos simbólicos, culturais e históricos presentes nas suas obras, que influenciam a percepção e o significado dos espaços.

O MEU, O SEU, O NOSSO LUGAR

O lugar não é apenas o espaço geográfico, em um contexto amplo, engloba as variáveis presentes daquilo que é percebido como local.O lugar é uma porção que adquire significados e atribuições culturais por meio das relações humanas estabelecidas, nele estão incorporados elementos subjetivos (DE AZEVEDO, 2018).

Arlindo, em sua música O Meu Lugar[1] retrata a identidade de Madureira a partir de sua memória. A centralidade do autor descreve seu lugar como um espaço vivido, cheio de memórias afetivas e experiências pessoais subjetivas,  assim ele é o  elemento essencial na relação entre espaço, memória e conhecimento do mundo. Ora, quando é feito referências à espiritualidade e religiosidade, a descrição que a música traz é feita a partir da fé do autor, o que não significa que todas as pessoas moradores de Madureira tenham a mesma religião. Na interação entre espaço e memória, o corpo desempenha um papel fundamental: é através do corpo no espaço que adquirimos uma compreensão do mundo. O corpo ocupa uma posição central nessa dinâmica, sendo o veículo por meio do qual exploramos e vivenciamos o lugar (ALVARENGA, 2018).

Na música Meu Nome é Favela[2], é detalhada a relação social estabelecida pelos moradores da favela a informalidade e relações sociais estabelecidas entre seus moradores, seja na fila do pão ou na mesa de bar, interações que ocorrem fisicamente no espaço. Nas músicas citadas o lugar é vivido e sentido pelos seus sujeitos, e a coletividade desses sentimentos traz identidade para o local.

QUAL O MEU LUGAR NO MUNDO?

Um dos pontos que chamam atenção nas músicas de Arlindo é que ele caracteriza geograficamente e insere Madureira no espaço geográfico.

Com os versos: “Suburbano nato/ Com muito orgulho mostro no sorriso/ Nosso clima de subúrbio”, podemos conceituar  subúrbio: uma área intermediária entre o urbano e o rural, em transição para se tornar urbano, mas ainda em desenvolvimento. Diferente de periferia, que é uma região marcada pela pobreza em contraste com a concentração de riqueza e poder no centro. No Brasil, o termo “periferia” substituiu o uso de “subúrbio” a partir dos anos 1960, sendo usado para descrever áreas com altas desigualdades sociais e econômicas (SOTO, 2008).

Madureira é considerada a “capital do subúrbio da central”[3], devido à sua visibilidade social e características típicas de um bairro subúrbio. Possui elementos como a presença de trem, uma classe média e pobre, possui um centro comercial movimentado e importante, concentra os serviços da região e é conhecido por sua relação com a cultura (DE CASTRO, 2015).

Em “O meu Lugar” encontramos elementos que localizam Madureira geograficamente citando os bairros vizinhos: Osvaldo Cruz, Cascadura, Vaz Lobo e Irajá, também é citado o Mercadão que é o ponto central do subúrbio. Os conceitos de espacialidade e territorialidade são importantes para entender a complexidade, as relações que ocorrem e os movimentos e dinâmicas envolvidos. Esses conceitos não devem ser vistos como fragmentos isolados, mas sim como parte de um todo interconectado. Para uma leitura crítica e precisa, é necessário compreender as singularidades dentro de um contexto de interdependência e relações sociais e históricas que são questionadas pelos indivíduos (COLUCCI, 2011).

PASSADO E FUTURO, O TEMPO E O LUGAR

Em “Amor à favela”[4] Arlindo demonstra as mudanças pelas quais Madureira passou ao longo do tempo. Essa conexão entre passado e futuro nas músicas permite que os ouvintes reflitam sobre as transformações ocorridas ao longo do tempo e sobre as possibilidades e desafios que o futuro apresenta. Essa abordagem temporal pode despertar a consciência histórica e a percepção de que o presente e o futuro são influenciados pelas experiências do passado.

Nas músicas a juventude nessas localidades no passado participava de atividades recreativas, brincadeiras tradicionais e tinham o costume de brincar de maneiras mais livres, no entanto, o tráfico de drogas trouxe mudanças significativas para a juventude da favela. A música sugere que houve perda de valores, controle e orientação, resultando em uma mocidade perdida.

A música retrata a relação entre subúrbio, pobreza, vulnerabilidade e violência ao abordar a realidade das favelas. Os barracos de alvenaria e a referência à vida nas vielas indicam a condição de pobreza e vulnerabilidade vivida por muitos moradores do subúrbio. A presença do medo, do abandono e da disputa pelo controle do morro evidenciam a violência que permeia essas áreas. A música também menciona injustiça e dor, retratando a realidade de desigualdade e dificuldades enfrentadas pelas comunidades carentes.

O conceito de temporalidade está ligado à compreensão de que o espaço urbano não é fixo, mas sim resultado de transformações históricas e em constante movimento. As formas urbanas são vistas como conteúdos que são influenciados por diferentes períodos e processos históricos. É importante reconhecer a diversidade de tempos no espaço urbano e entender a relação dinâmica entre a dimensão histórica (verticalidade) e os eventos e temporalidades singulares para obter uma melhor compreensão dos processos que moldam as estruturas urbanas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio de suas músicas Arlindo Cruz revelou a importância da relação entre espaço, memória e identidade. Suas obras ressaltaram a vivência e a subjetividade do lugar, evidenciando a conexão entre passado, presente e futuro. As canções abordam a realidade das favelas e do subúrbio, retratando a pobreza, a vulnerabilidade e a violência presente nessas comunidades. Este artigo contribui para uma análise interdisciplinar sobre geografia urbana, cultura e música, ampliando o nosso entendimento sobre a relação entre espaço sociedade e identidade nas cidades.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVARENGA, A. L. de. Lugar e memória: cenários. GEOgraphia, v. 19, n. 41, p. 110-122, jan. 2018. Disponível em: <link>. Acesso em: 14 jul. 2023.

COLUCCI, D. G.; SOUTO, M. M. M. Espacialidades e territorialidades: conceituação e exemplificações. Revista Geografias, v. 7, n. 1, p. 114-127, 2011. DOI: 10.35699/2237-549X.13312. Disponível em: <link>. Acesso em: 14 jul. 2023.

DE AZEVEDO, M. O.; OLANDA, E. R. O ensino do lugar: reflexões sobre o conceito de lugar na Geografia. Ateliê Geográfico, v. 12, n. 3, p. 136-156, 2018. DOI: 10.5216/ag.v12i3.57540. Disponível em: <link>. Acesso em: 14 jul. 2023.

DE CASTRO, A. C. B. A construção carioca da categoria subúrbio e o bairro de Madureira. In: 39° Encontro Anual da ANPOCS, 2015, Caxambu. Anais do 39° Encontro Anual da ANPOCS – GT09 de Cidades a Cidade do Brasil – Tempos e/ou espaço. Caxambu: ANPOCS, 2015. Disponível em: <link>. Acesso em: 14 jul. 2023.

FLÁVIO, L. C. Por uma geografia com poesia. Revista GeoUECE, v. 8, n. 15, p. 8-22, 2020. Disponível em: <link>. Acesso em: 14 jul. 2023.

PALLONE, Simone. Diferenciando subúrbio de periferia. Ciência e Cultura, v. 57, n. 2, p. 11, jul. 2005. Disponível em: <link>. Acesso em: 14 jul. 2023.

SOTO, William Héctor Gómez. Subúrbio, periferia e vida cotidiana. Estudos Sociedade e Agricultura, v. 16, n. 1, p. 109-131, 2008. Disponível em: <link>. Acesso em: 14 jul. 2023.

CRUZ, Arlindo. Meu Lugar. In: Samba Perfeito. Arlindo Cruz. Rio de Janeiro: DeckDisc, 2007. CD (3:49 min).

CRUZ, Arlindo. Mtv Ao Vivo Arlindo Cruz – Vol. 2. Arlindo Cruz. Rio de Janeiro: DeckDisc, 2009. CD (2:20 min).

CRUZ, Arlindo. Batuques e Romances. Arlindo Cruz. Rio de Janeiro: Sony Music Entertainment, Inc., 2011. CD (3:48 min).

GRES UNIÃO DE VAZ LOBO. Samba-Enredo 1972 – Madureira, Capital do Samba. Rio de Janeiro.


[1] Primeira faixa do disco “Sambista Perfeito”, de 2007,  de Arlindo Cruz, escrito em parceria com Mauro Diniz.

[2] Álbum “Batuques e Romances”, de 2011, escrita por  Rafael Delgado.

[3] Madureira, eterna capital do samba. Samba enredo da Escola de Samba União de Vaz Lobo, 1972.

[4] Compositores: Roger Jose Cury / Arlindo Cruz.

[**] Marlyane Rogério da Conceição – Assistente Social, especialista em Políticas Públicas (FAVENI), conselheira municipal do Conselho Municipal de Direitos da Mulher (COMDIM), mestranda em Desenvolvimento Regional, Ambiente e Políticas Públicas (UFF). Atuou como Assistente Social na Subsecretaria de Igualdade Racial e Direitos Humanos (PMCG). Mulher preta, feminista, ativista antiracista e escritora independente.

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