** Profa. Dra. Rute Rodrigues dos Reis
É possível identificar que, com o passar do tempo, houve avanço no debate sobre gênero no espaço da escola e, mesmo apesar do recrudescimento nos últimos anos, houve resistência em prol de uma proposição de educação libertadora e que se propõe ao enfrentamento das desigualdades.
No entanto, o foco que se coloca como central na análise deste texto são as questões femininas, postura decorrente da estrutura de opressão das mulheres nas sociedades contemporâneas. O fato é, e sobre a masculinidade? É algo sugestivamente resolvido? Ao afirmarmos, no nosso cotidiano escolar, que os meninos pretos são majoritariamente os que compõem a massa dos fracassos, esta afirmação traduz um dado natural apenas para constatação? Eis o diálogo que aqui proponho.

O gênero é uma forma de ordenamento de prática social. Os processos de gênero – ou a vida cotidiana – estão organizados em torno do cenário reprodutivo, definido pelas estruturas corporais e pelos processos de reprodução humana. O cenário inclui o despertar sexual e a relação sexual, o cuidado com as crianças e as diferenças e similitudes sexuais corporais. O gênero é uma prática social que constantemente se refere aos corpos e ao que os corpos fazem, porém não à prática sexual reduzida ao corpo.

O gênero existe precisamente na medida em que a biologia não determina o social e marca um desses pontos de transição em que o processo histórico substitui a evolução biológica como forma de mudança.
A prática social é criadora e inventiva, porém não autônoma. Responde a situações particulares e se generaliza dentro das estruturas definidas de relações sociais. As relações de gênero e aquelas entre pessoas e grupos organizados no cenário produtivo formam uma das estruturas principais de todas as sociedades documentadas. As ações se configuram em unidades maiores, e quando falamos de masculinidade e feminilidade estamos designando configurações e práticas e gênero.
Uma visão dinâmica da organização da prática expressa compreensão de masculinidade e de feminilidade como projetos de gênero. Estes são processos de configuração da prática através do tempo, que transformam seus pontos de partida em estruturas de gênero. Encontramos a configuração genérica da prática em qualquer forma que dividamos o mundo social, e em qualquer unidade de análise que selecionamos. A mais conhecida é a vida individual, base das noções de sentido comum de masculinidade e feminilidade. O gênero se organiza em práticas simbólicas que podem permanecer por mais tempo que a vida individual.
Desde os anos 70 do século passado, tem ficado explícito que gênero é uma estrutura internamente complexa e, sobrepõem várias lógicas diferentes. Este é um fato de grande importância para a análise tanto das masculinidades quanto das feminilidades.
Podemos identificar três grandes eixos, apresentados por Badinter (2005), através dos quais a desigualdade de gênero se estrutura. O primeiro são as relações de poder. A principal expressão de poder no sistema de gênero contemporâneo é a subordinação geral das mulheres à dominação dos homens, estrutura denominada como patriarcado. Ele persiste, apesar da resistência que o feminismo articula, impondo contínuas dificuldades para o poder patriarcal. Elas definem um problema de legitimidade, que tem grande importância para a política da masculinidade.
As relações de produção, através das divisões genéricas do trabalho e na forma de atribuição de tarefas, compreendem, muitas vezes, detalhes extremamente sutis, o que dificulta nossa percepção da desigualdade. Deve-se dar igual atenção às consequências econômicas da divisão do trabalho e ao dividendo acumulado para os homens, resultante da partilha desigual dos produtos do trabalho social. Isso se discute mais frequentemente nos termos da discriminação salarial. Porém, deve-se considerar também o caráter de gênero do capital e como, a partir daí, se perpetuam as relações de dominação. Dessa forma é parte da construção social da masculinidade, que sejam homens e não mulheres quem controlam as principais corporações e as grandes fortunas privadas.
A pergunta que devemos nos fazer a partir do espaço da escola é, em que medida, a estrutura escolar e as práticas tem se proposto a construir outras formas de existências de masculinidades diversas, para além de legitimar uma masculinidade hegemônica que só existe no ideário de uma falsa percepção da realidade periférica?
É na análise de Bourdieu (2007) que encontramos o entendimento dos mecanismos nos quais a dominação masculina se consolida. Segundo ele, a divisão entre os sexos parece estar “na ordem das coisas”, entendida como algo natural, normal e inevitável. Está presente, ao mesmo tempo, em estado objetivado nas coisas (na casa, por exemplo, cujas partes são todas “sexuadas”), em todo o mundo social e, em estado incorporado, nos corpos e nos hábitos dos agentes, funcionando como sistemas de esquemas de percepção, de pensamento e de ação (p. 17).
A ordem simbólica funciona como uma imensa máquina que tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça. Esse processo se estrutura a partir da divisão social do trabalho, desde as atividades atribuídas ao sexo aos instrumentos mobilizados por cada um. Essa divisão refere-se e é percebida através dos espaços, em que o lugar do coletivo, da decisão e da rua é reservado aos homens e a casa, às mulheres. O espaço da casa também será o reflexo dessa divisão. Para Bourdieu, mais do que expressar uma dinâmica mecânica de atribuições, esse processo inscreve uma estrutura de tempo, de jornada de ciclo da vida. São esquemas de pensamento que associam elementos tanto ao masculino quanto ao feminino. O mundo social constrói o corpo como realidade sexuada e como depositário de princípios de visão e de divisão sexualizantes, como nos explica Bourdieu (2007, p.16):
Esses esquemas de pensamento, de aplicação universal, registram como que diferenças de natureza, inscritas na objetividade, das variações e dos traços distintivos (por exemplo, em matéria corporal) que eles contribuem para fazer existir, ao mesmo tempo que as “naturalizam”, inscrevendo-as em um sistema de diferenças, todas igualmente naturais em aparência; de modo que as previsões que elas engendram são incessantemente confirmadas pelo curso do mundo, sobretudo por todos os ciclos biológicos e cósmico.
Essa percepção incorpora todas as coisas do mundo e, antes de tudo, o próprio corpo. Em sua realidade biológica, é ele que constrói a diferença entre os sexos biológicos, conformando-as aos princípios de uma visão mítica do mundo, enraizada na relação arbitrária de dominação dos homens sobre as mulheres, ela mesma inscrita, com a divisão do trabalho, na realidade da ordem social. A diferença entre o corpo masculino e o feminino e, especificamente, a diferença anatômica entre os órgãos sexuais é vista como justificativa natural da diferença socialmente construída entre os gêneros e, principalmente, da divisão social do trabalho.
A escola historicamente foi um laboratório da divisão social do trabalho na formação dos sujeitos, não se trata de apenas corrigir lugares de assimetria desses sujeitos, trata-se da destruição de uma construção objetiva e simbólica de existências. Assim a tarefa da escola é muito mais profunda do que se revela.
Referências bibliográficas:
BADINTER, E. Rumo equivocado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
COSTA, J. Violência e Psicanálise. Rio de Janeiro. Graal. 1986.
HALL, S. Modernidade Tardia ou Pós Modernidade. Rio de Janeiro. DP&A, 2006.
OLIVEIRA, P. P. A construção Social da Masculinidade. Ed. UFMG, IUPERJ, 2004.
SAFFIOTI, H. I. B. O poder do macho, São Paulo, Ed. Moderna, 1987.

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1998) e mestrado em Educação: História, Política, Sociedade pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2006). Doutora em Ciências Sociais pela mesma Universidade concluído em 2011. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em sociologia da educação, metodologia científica, relações étnico racial e de gênero e política educacional. Participou do projeto de pesquisa intitulado Homens nas margens: idade, etnicidade, orientação sexual e trajetórias profissionais na construção de masculinidades não hegemônicas, coordenado pela Dra. Sofia Aboim do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, no período de 2010 a 2013, com financiamento da Fundação para Ciência e Tecnologia (Portugal). Participou da pesquisa O Multiculturalismo Contemporâneo nas Escolas: reconhecimento e afirmação de Histórias e Culturas Urbanas Negadas, como Pós Doutoranda pela Faculdade de Educação da USP. Gestora na Rede Municipal de São Paulo.
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