Em 2018 foi lançado o filme Maria Madalena (título original Mary Magdalene), com direção de Garth Davis, roteiro de Philippa Goslett e Helen Edmundson, trazendo um excelente elenco: Rooney Mara, Joaquim Phoenix, Chiwetel Ejiofor, entre outros. A narrativa apresenta-nos com destaque a figura de Jesus acompanhado de Pedro, Judas, e especialmente Madalena. Identifiquei-me com a personalidade de Maria neste roteiro baseado em seu evangelho apócrifo, pela sua confrontação com a condição social feminina de sua época, mas, essencialmente, pela compreensão da Boa Nova do Cristo, diferentemente da visão de Pedro, que iria sustentar (Pedro, a pedra da Igreja) os caminhos cristãos no decorrer do tempo.

Helena Barbas, em sua obra (minha leitura atual, finalmente cheguei nela), Madalena – História e Mito, afirma que “a figura de Madalena [preenche] as necessidades psicológicas típicas de um mito”; historicamente registram-se diversas tentativas de atribuir uma consistência física e real a um personagem que, segundo esta mesma autora…
“O mito, feito a partir da história, desembaraça-se dela. Sobrevive e alimenta-se da capacidade de significação infinita dos símbolos profundos a que recorre para se manifestar. Quando se procura explicá-lo, ou circunscrevê-lo a eventos concretos, está-se a cortar-lhe as asas, a reduzi-lo – a forçá-lo a regressar à tal história da qual se libertou…” (Barbas, 2008)
Ao percorrermos pelas artes plásticas, literatura e imagens, observamos que a construção do mito Madalena, no tempo histórico da nossa sociedade cristã ocidental, se deu ao arriscar-se atribuir a ela um corpo, uma identidade, personalidade, emoções, sentimentos, aspectos psicológicos e religiosos, uma relação familiar concreta, uma descendência…, o que permitiu a Barbas estabelecer como objetivo de sua pesquisa
“… não é explicar quem foi de facto Maria Madalena há dois mil anos, mas tentar perceber e mostrar como, durante dois mil anos, um nome de uma figura que nem sequer se sabe se existiu foi, sucessivamente, atraindo a si acontecimentos e narrativas que levaram à criação, primeiro de uma lenda, depois de uma biografia imaginária.” (Barbas, 2008)

Peter Burke ao tratar da História do Corpo, campo inserido na Nova História Cultural, escreveu que
“…no início da década de 1980 em diante, uma corrente cada vez maior de estudos concentrou-se nos corpos masculinos e feminino, no corpo como experiência e como símbolo, nos corpos desmembrados, anoréxicos, atléticos, dissecados e nos corpos dos santos e pecadores.” (Burke, 2008)
As expressões da arte na compreensão da corporeidade humana, permitem que o corpo seja também possível de ser “lido” em imagens, traduzindo-se como objeto de representações e imaginários. “Através do corpo, o homem apropria-se da substância de sua vida [e da vida do outro, mesmo que seja a vida de um mito] traduzindo-a para os outros, servindo-se dos sistemas simbólicos que compartilha com os membros da comunidade.” (Breton, 2006)

Tal condição é reforçada pela relação do homem com as imagens, ao transitar da irrealidade da representação a sua existência na percepção, “com tinturas de real” (Barthes, 2008); o que se ampliou com o advento da fotografia.
Barbas afirma que “a qualificação que quase nunca a abandona – a prostituta;” representatividade com tintas, em determinados momentos da história, repleta de uma visão preconceituosa, por “ser” mulher obsediada e possuída por demônios, o que se traduzia na sua “infeliz” condição de prostituta, o que não mudou mesmo na sua “salvação e cura” perante Cristo, encontrando similaridade com a mulher que devia ser apedrejada por ser adultera, pois, pouco valor foi dado a vida das duas, no pós-cura.
Desde sempre somos consumidores de imagens e construímos nossa visão de mundo e crenças, obviamente muito mais na atualidade, pela imensa produção e profusão do que se apresenta ao nosso olhar; “hoje em dia, as imagens são mais vivas que as pessoas.” (Barthes, 2008) E quando retratamos pessoas, individualidades, construímos historicamente mitos através das artes onde corpos são concebidos, percorrendo o tempo, atualizados ou reforçados no imaginário cultural de uma sociedade.
A partir de todas estas contribuições [das diversas artes] torna-se possível delinear uma «biografia imaginária» de Maria Madalena, conjugando todos os episódios e todas as cenas que os séculos lhe foram atribuindo, já que o próprio das lendas é absorver em si todos os esforços – tanto os de acrescentamento quanto os de rasura – engordar e enriquecer-se à conta deles. Destas caracterizações exteriores e psicologizantes começa a delinear-se uma identidade, e uma individualidade para a personagem.
Maria de Magdala é uma figura do nosso património coletivo, exibe as marcas das mudanças e evolução dos modos de pensamento e filosofias, da história psicológica do Ocidente, pertence ao campo da História das Ideias, exige uma abordagem Comparatista. Enquanto mito, desempenha uma função no mínimo terapêutica, e não deverá ser tratada de ânimo leve. Diz-nos Jung que, quando há coincidência em testemunhos vindos de origens diversas, quando o tema renasce após séculos de aparente desgaste, é prova que se pode estar em presença de um Arquétipo. Assim, o tema de Madalena pertencerá ao depósito das imagens proto-arcaicas do inconsciente coletivo cuja manifestação, e leitura, relevam da ordem da linguagem do sonho e/ou do sagrado. (Barbas, 2008)
E é por isso que Madalena tornou-se a imagem de todos nós.
Referencia:
BARBAS, Helena. Madalena. História e Mito. Ésquilo edições e multimédia ltda. Lisboa/Portugual. 1ª Edição, 2008.
BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Editora Nova Fronteira. Rio de Janeiro/RJ. 12ª Edição, 2008.
BRETON, David Le. A Sociologia do Corpo. Editora Vozes, 4ª Edição. Petrópolis/RJ, 2006.
BURKE. Peter. O que é a História Cultural? Jorge Zahar Editor Ltda. Rio de Janeiro/RJ. 2ª Edição, 2008.

Realmente, Madalena é bem atual, representa todos nós que buscamos a renovação, a superação de preconceitos, muitas vezes criticados por uma sociedade que não conhece a fundo e não enxerga nossas lutas íntimas.
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Ficamos felizes que tenha gostado!
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Parabéns pelo belo texto, confeccionado de forma leve e prazeroso para o leitor.
Dando enfoque aos principais aspectos da obra, de forma simples, clara, fato que o torna interessante e maravilhoso de se ler.
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Agradecemos pelo feedback positivo! Que bom que gostou!
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Obrigado por seu comentário, aproveite os outros artigos da revista, são todos excelentes.
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Excelente reflexão. Este tema é muito interessante e instigante!
Gostei muito da perspectiva de nos trazer informações sobre Magdalena… E ainda fontes para pesquisas outras!
Parabéns pelas colocações.
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Ficamos muito felizes que tenha gostado!
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Adorei o texto por completo e toda a bibliografia escolhida! Acaba que, realmente, Madalena nos representa de forma espiritual! Todos aqueles que nunca a conheceremos, mas que nos identificamos com suas características (arquetipicamente construídas ou não): arrependidos, pecadores, etc. Parabéns!
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Que bom que gostou!
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Excelente texto, mergulhado numa análise profunda sobre a intimidade espiritual dessa imagem feminina . Muito boas reflexões!
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MARIA DE MAGDALA E AO MESMO
TEMPO,SIMPLES E COMPLEXA
CONVIDANDO – NOS A REFLETIR SOMBRE A QUESTAO MAIS IMPORTANTE É ABRANGENTE QUE É ” SABER AMAR”.
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