Título: Ocupar, Romper, Descolonizar: A Potência de um Corpo Político.

Por Victor Ayres Ferracini1

“[…]Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantêm vivos.[…]” 

(TENÓRIO, Jeferson. O Avesso da Pele, p. 61)

A consciência de nosso corpo nos é roubada desde o nosso nascimento, seja pelas concepções coletivas dentro dos ambientes familiares vividas pelos nossos genitores ou então pelo perpetuar dos padrões sociais que vivemos até os dias de hoje e que fundamentam a nossa sociedade.

Essa consciência de corpo, quanto um ato político, se torna real quando temos a oportunidade de encontrar outras pessoas que aprendem ao decorrer da vida que saber de si é um caminho extraordinário e que não tem volta; a gente quer continuar a aprender e replicar para que todos os outros consigam ter acesso a esta poderosa ferramenta de aprender saberes, sentir vivências e transmutar dores e alegrias para atingir os seus objetivos.

Eu sou um homem cisgênero que carrega com isso as características endemonizadas pela concepção religiosa europeia e intolerante. Às vezes a voz afina, às vezes o corpo “desmunheca”, e gosto dos meus cachos, horas desgrenhados e horas definidos. Nem sempre foi assim. Nos sonhos dos meus pais era para ser aqueles homens que gostam de mulheres e que estabilizam a vida: namorar, noivar, casar, ter estudo, bom emprego, filhos… De fato, não sou assim e entendemos que isto não é o sinônimo exclusivo e singular de “vida justa e íntegra”.

Hoje, aos trinta e três anos de idade, aprendi que a vida está para além dos projetos dos outros e que ela sorri à sua maneira para acreditar que todos os nossos universos soam em concordância com as batidas do nosso coração para permanecermos, sobretudo, vivos.

Nesses encontros de almas oportunizados pela vida, fui afortunado por ter meu caminho paralelo e cruzado com pessoas muito especiais. Entre elas, eu me lembro como se fosse ontem de uma noite, fim de dia letivo, estávamos na casa de minha amiga Aline, minha amiga Fernanda e eu, e discutimos sobre os enfrentamentos de vivermos uma educação na qual acreditamos e, numa concordância unânime, definimos: “para fazermos as mudanças que queremos é necessário ocuparmos os lugares que são nossos por direito”.

E ao longo desses 14 anos de exercício público dentro da educação do Estado de São Paulo, no encontro delas e de tantas outras potências, fui me consolidando e enfrentando os meus medos – medos estes que ainda enfrento – para garantir que todos os nossos estudantes tenham o acesso, nossa classe de professores e quaisquer cargos ocupados dentro das instituições públicas consigam viver em um lugar transformador, num lugar onde o exercício da cidadania seja fortalecido diariamente.

O mais belo em todo esse processo de construção da escola que acreditamos é que encontramos os que acreditam também. Ao olharmos para o lado vemos que não estamos sós e carregamos fortemente a nossa ancestralidade junto de nossos corpos, fomentando o confronto de maneira organizada e assertiva contra as caravelas epistêmicas  imposta a partir da produção de ciência do homem branco.

Muito para além do conhecer, verbalizar a prática no coletivo sustenta o grande sulear de uma educação antirracista e antifascista. A filosofia africana UBUNTU nos lembra da coletividade como forma de organização social e consequentemente política. 

Sou porque somos e não somos só por ser, somos um número incontável de corpos políticos que resistem se aquilombando e decolonizando narrativas, construções sociais e os estigmas que nos atravessam. 

A correlação de nossos saberes e vivências junto de nossos afetos é o que fomenta a nossa vida no aspecto político, social, emocional e econômico.

Uma das maiores questões nesse processo contínuo de descoberta quanto ser que dança, corpo político que atua de frente a uma educação TRANSformadora, que rompe estereótipos e estigmas fortalecendo o acolhimento de estudantes e familiares, é — e ainda são — as minhas incertezas, frutos das percepções de pessoas que eu amei e das vozes opressoras que me foram ditas por muita gente e em muito lugar: “isto não é pra você”, “quem é que vai querer isso aí?”, “eu não acho que seu cabelo está bonito assim”, “dançando de saia, você não tem vergonha não? Sua mãe é pastora!”. Cortar este cordão umbilical emocional foi diante da necessidade e da dor, dos meios das frustrações e com a força potente da linda rede de apoio que as deusas, em sua benevolência, me concederam para que eu me mantivesse vivo, como ainda estou.

Então, terá sim um corpo masculino com “trejeitos femininos” ou fora de um “padrão de beleza” lutando e se esforçando não só para acumular títulos e especializações, porque este mesmo corpo aprendeu que, para sobreviver, é preciso encher o peito e ir atrás dos sonhos e que o estudo é o caminho. Uma das verdades indubitáveis da vida é que o conhecimento é a fortuna que ninguém pode nos tirar, nunca!

Formado em Licenciatura Plena em História, Pedagogo, especialista em Educação Especial e Docência de Ensino Superior, especialista em Humanidades, docente em efetivo exercício na Secretaria de Educação do Estado de São Paulo e pertencente ao grupo de pesquisa de educação em Direitos Humanos, presente.

Este é o meu corpo com todos os meus sentimentos colocados no avesso da pele, que me nutrem para continuar existindo diante de avanços e retrocessos que tentam, todos os dias, contra tudo o que eu sou e contra todos que andam junto de mim.

  1. Victor Ayres Ferracini – pedagogo, com especializações em Educação para o Ensino Superior, Deficiência Intelectual e estudos em gênero e sexualidade pelo IFSP. Atua na educação básica com foco em práticas inclusivas e antidiscriminatórias. Integrante de um coletivo de maracatu em Pinheiros, vivencia e fortalece a ancestralidade afro-brasileira por meio da cultura popular.

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