O PAI PUTATIVO

O PAI PUTATIVO

Meu nome é Zé. E pra mode não me confundir com tantos outros zés, passaram a me chamar de Zé das Quantas. Quantas aventuras, quantas estripulias, quantas histórias pra contar… Pois que sou um sujeito centrado no diverso, no jogo da bola eu brinco nas onze. Sou pau pra toda obra, camarada cumpridor: enquanto os outros vêm com o milho, eu já tô voltando com o fubá; não é pra me gabar, mas comigo é ali: cada enxadada uma minhoca, onde eu boto a mão Deus põe a benção. Não sou de farra, mas de alforria: namoro só até o cachorro da casa acostumar comigo. Sigo vida afora que nem a correnteza dos causos que vou contando. Só travessias, palavra muito do gosto de um certo Riobaldo, que contou um livro grosso de romance e cavalaria, dizem que muito do meu jeito de ser e de falar. Me engracei com o nome: rio, quem é que não sabe, a água vertente onde ninguém entra duas vezes; mas, baldo? Balde não pode ser, um balde não pode com um rio. Baldio, terreno sem serventia? Não combina com o Riobaldo que produziu tanta palavra criadeira de sentido. Só se for bardo, cantador e violeiro, igual que nem o poeta Elomar lá da Casa dos Carneiros, cujo conheço de verso e de fama.  Só se for… A diferença é que Riobaldo só existiu nas letras do livro, personagem inventado por escritor. O caso é que, cutucado pelo somenos de uma questão de tanta maior abertura, fui mexer na subiteza de um vespeiro.  Feito abestado, pedi o parecer do meu vizinho Godofredo, levantei a bola pra ele chutar. E o que foi que o estrupício respondeu? “Ora, Zé, preocupado com nome dos outros? E o seu? Zé das Quantas? Cadê seu sobrenome cristão? Por acaso o Nerso da Horta lhe negou o seu, por causa de que vancê é apenasmente uma personagem e ele é seu pai putativo?” Ah, pra quê! Nessa hora o sangue galopou cordoveias arriba com tanto rompante que fiquei até cego e nem vi o caboco fugir, quando puxei a curvelana da bainha já era tarde. Arre! Chamar seu pai de putativo? Antes de partir de açoite no rastro do fujão, escutei o anjo da guarda e rezei sete vezes a salve-rainha, de cambulhada com o crendeuspadre. Seja do jeito que Deus é servido, pensei. Mas agora tinha uma outra espora, mais afiada, assovelando meus flancos. Apenasmente personagem? Isso não me desacorçoa tanto assim, pois quem é que tem personalidade maior que a de nascença? Quem supera a própria figura de pessoa cuspida e escarrada nos moldes de Deus? Mas vamos e venhamos: personagem sendo um filho   de “putativo”? Pra mode tirar isso a limpo, carreei minhas dúvidas até o professor Sô Crate, homem de preenchida sabença. Repeti pra ele toda a maledicência do Godofredo, palavra por palavra, remedando até o abusado de sua entoação. Sô Crate escutou e quando ele falou “Sua valença tá no dicionário” eu levei a mão na curvelana. Ele segurou minha mão: “Calma, dicionário não é pai de burro nenhum, é pra uso dos chamados e usufruto dos escolhidos”. E foi me mostrando lá.

Putativo: que está no lugar, considerado, tido em alta conta. Pai putativo: o que está no lugar do pai biológico. Exemplo: São José, pai putativo de Jesus. Suspirei aliviado. Tirei arrobas de peso da cacunda. Apenas falei: “De onde tiraram essa palavra, meu Deus?” E o professor: “Putativo vem de puto, putatum, putare”… Já fui buscando de novo a faca na bainha: “O quê?!!!”. O professor berrou: “Isso é Latim!”. E eu: “Tá chamando meu pai de cachorro?”. Às custas de muito cuspe, Sô Crate esgoelou todo latim da terra pra me botar na cabeça o mundo de sentido que tá amoitado no desconforme de uma palavra. E, antes que eu pegasse o trilho da roça, desafogado, agradecido,  o professor emendou: “E não se preocupe com as outras palavras do Godofredo! Todos nós somos apenas personagens criadas”.

Mas… de onde não se espera é que vem. Só depois de sonhar com aquilo tudo e acordar assustado, é que uma outra pulga pegou a me espicaçar o corpo todo; uma pulga que tirava sustança do que o Sô Crate disse por último e do que o Godofredo falou por primeiro. Aí então garrei a matutar: se o Nerso da Horta é meu pai de criação, se ninguém passa de personagem criada, onde está, abaixo de Deus, quem inventou a gente todo mundo aqui nesse desterro? E se, de repente, algum mofado livro escrito numa língua esquecida, perdido na biblioteca do professor, estivesse escondendo de nós que nossa sina é a de outros Riobaldos, sonhados debalde por algum impossível autor?

Afonso Guerra-Baião

(Escrevi este monólogo, a partir do conto “Famigerado” de Guimarães Rosa, para o Zé das Quantas, personagem criado por Nelson Horta, que o interpretou no CEFET / CURVELO, no evento “Riobaldia”).

4 comentários em “O PAI PUTATIVO

  1. Conto delicioso. Uma explosão de criatividade.

    E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música. Friedrich Nietzsche PUCCI.’.

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