“Nem todo viandante anda estradas”: Percursos pela 36ª Bienal de São Paulo

“A descolonização não é uma máquina, nem um ente, nem um ser, mas um processo em andamento, feito de ritmos, de respirações e de recomeços.” (Frantz Fanon)

A 36ª Bienal de São Paulo se abre ao público como um livro vivo, escrito em estuários de sentidos. O título, emprestado de Conceição Evaristo¹ já anuncia um convite ao deslocamento interior, à possibilidade de um caminhar que não se mede em metros, mas em ressonâncias. Logo na entrada, o visitante é acolhido por uma montanha coberta de vegetação utópica, obra de Precious Okoyomon, que mistura plantas do Cerrado, um pequeno lago e trilhas de terra. Esse morro vegetal, que parece respirar, cria a atmosfera de um rito inaugural: antes de olhar as obras, o público é convidado a aterrar-se, a sentir o corpo como parte da paisagem.

O gesto de abrir a exposição com um terreno fértil e arborizado não é ingênuo: lembra que a terra não é apenas recurso, mas lar, identidade, ancestralidade. Em textos críticos já publicados sobre a Bienal, registrou-se inclusive a tensão em torno da obra de Precious Okoyomon, que alguns chegaram a ler como risco de uma ‘tutela estética’ por vir de fora do Brasil. A própria Bienal, no entanto, parece responder de modo sutil: não se trata de definir identidades ou ensinar quem somos, mas de colocar em relação, pela arte, múltiplas vozes que constroem o pertencimento.

A exposição, organizada sob a curadoria de Bonaventure Soh Bejeng Ndikung e equipe internacional, aposta nesse jogo de alteridades, de humanidades em fluxo. A mostra conseguiu reunir 125 artistas e coletivos de mais de 40 países, distribuídos pelos 30 mil metros quadrados do icônico Pavilhão Ciccillo Matarazzo. Ao percorrer o espaço, o visitante se depara com um mosaico de linguagens: instalações, esculturas, performances, vídeos e paisagens sonoras que atravessam temas como descolonização, ancestralidade, ecologia, identidade e tecnologia.

Esta edição da Bienal de Artes de São Paulo, posiciona artistas africanos e afrodescendentes no centro da narrativa, reconhecendo sua contribuição essencial para a reconfiguração do imaginário contemporâneo. Por meio de trabalhos que atravessam memória, resistência e ancestralidade, artistas como Adama Delphine Fawundu, Firelei Báez, Otobong Nkanga e os coletivos Sertão Negro e Vilanias, entre outros, oferecem uma visão da humanidade que dialoga com o presente e convoca a reflexão sobre histórias esquecidas ou silenciadas.

No térreo, o primeiro capítulo do “livro expositivo” intitula-se Frequências de chegadas e pertencimentos. Ali, obras de artistas como Gê Viana levantam muros de caixas de som com colagens que evocam reggae, história negra e memórias maranhenses. O que poderia ser apenas um fragmento de rua se transforma em dispositivo estético-político, celebrando a mistura como condição vital do Brasil. Ao lado, o coletivo Sertão Negro amplia essa pulsação de vozes, como quem planta na fissura das paredes sementes de permanência.

Cada andar da Bienal se desdobra como capítulo independente, mas conectado, como se fosse um livro folheado pelo vento. Há uma cadência que alterna silêncio e barulho, densidade e leveza, materiais ritualísticos e gestos cotidianos. Esculturas de bronze, vídeo-botânicos, jardins internos e instalações sonoras compõem um percurso que não se limita à contemplação visual: a Bienal faz vibrar a pele, o ouvido, o passo. Trata-se de uma experiência que busca, mais do que mostrar, fazer sentir a ideia de humanidade como prática viva e múltipla.

Nesse sentido, a Bienal se afasta de qualquer linearidade eurocêntrica e se aproxima do que Fanon já intuíra: a descolonização não é um evento fixo, mas uma pulsação que se reinventa em cada encontro. Os estuários propostos pela curadoria, entre rios que convergem, se enfrentam e se misturam, são metáforas da própria condição humana. Somos feitos de passagens, não de portos finais.

Assim, ao atravessar as exposições plenas de ressonâncias, o visitante percebe que a arquitetura modernista de Niemeyer não é mero contêiner: ela se converte em corpo atravessado por vozes, cores e ritmos. É como se o espaço se deixasse habitar pela pluralidade insurgente de artistas indígenas, africanos, queer, feministas e diaspóricos. O resultado é uma cacofonia meditativa, onde beleza e resistência não são opostos, mas irmãs inseparáveis.

A Bienal, gratuita e aberta até janeiro de 2026 no Parque Ibirapuera, em São Paulo, não se limita a expor arte: ela propõe um outro modo de convivência, em que a estética não é ornamento, mas ferramenta de sobrevivência simbólica. Ao fim do percurso, o viandante entende que não precisa de estradas para caminhar. Basta estar disponível ao gesto de se deixar atravessar.

¹ “Nem todo viandante anda estradas” – Da humanidade como prática, inspirado no poema Da calma e do silêncio da poeta afro-brasileira Conceição Evaristo.

Texto: Bel Liviski

Fotos: Renata Cilene da Silva

Referências

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Tradução de José Laurênio de Melo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

36ª BIENAL DE SÃO PAULO. Not All Travellers Walk Roads – Of Humanity as Practice. Disponível em: https://36.bienal.org.br/. Acesso em: 09 set. 2025.

Izabel Liviski (Bel), articulista e coeditora da Revista ContemporArtes desde 2009, é editora também do TAK! Agenda Cultural Polônia Brasil, em Curitiba/PR. Professora e fotojornalista, é mestre e doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná.

Contato: bel.photographia@gmail.com

Nota: A autora participou como convidada da pré-abertura da 36ª Bienal de São Paulo, representando a Revista ContemporArtes (Universidade Federal do ABC/SP).

Agradecimentos: Profa. Dra. Ana Maria Dietrich (Editora da ContemporArtes e Coordenadora do Projeto de Ensino, Pesquisa e Extensão Africanidades por elas); Renata Cilene da Silva (Pesquisadora) e Nathália Vaccani (Coordenadora Administrativa).

4 comentários em ““Nem todo viandante anda estradas”: Percursos pela 36ª Bienal de São Paulo

  1. A Izabel resumiu seu artigo num termo que poderia ser um novo conceito sociológico: aterrar-se. Resumiu para mim a exposição e o conceito que eu procurava para entender a razão das mazelas pelas quais passa a humanidade de hoje. Falta à humanidade “aterrar-se”. Parabéns!

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