Autorretrato e a construção social do eu: uma perspectiva histórica-sociológica

Nesta postagem trago um resumo da palestra por mim proferida no dia 28 de agosto, no institutoicasaadeartecultura (ICASAA) em Curitiba, no evento “Quinta tem Café”, uma série idealizada pela presidente do Instituto, Vera Itajaí. Essa iniciativa faz parte do Movimento Cultural & Conexões Empreendedoras, onde, a cada quinta-feira, um(a) convidado(a) compartilha sua vivência e trajetória de vida, sua “jornada de herói(na)” e principalmente a sua expertise profissional, em duas horas de comunicação e debate com um público interessado em temas pulsantes e inovadores.

“Desde os primeiros registros da presença humana, o gesto de deixar marcas de si mesmo revela uma tensão entre intimidade, visibilidade e memória social. As mãos carimbadas nas paredes de cavernas como em Lascaux na França ou na Cueva de las manos na Argentina, não são meras inscrições, são sinais de existência e pertencimento. Um diálogo silencioso com a comunidade e o tempo, antecipando o que Norbert Elias (1987) chamaria de “configurações sociais”, redes de relações em que a presença individual é reconhecida e registrada.

Arte Rupestre da Pré-História: Gruta com Vestígios de Mãos. Período Neolítico, Cueva de las Manos, Argentina, Santa Cruz. Fonte: https://www.meisterdrucke.uk/

Na Antiguidade, retratos egípcios, gregos e romanos incorporam elementos de status, gênero e função social, enquanto a prática do autorretrato, ainda que discreta, surge como sinal de reconhecimento da própria agência dentro do tecido social. O busto de Nefertiti ou os retratos romanos expressam mais do que fisionomia: comunicam poder simbólico e perpetuação da memória em contextos rituais e coletivos (Bourdieu, 1998). Aqui, a sociologia da arte revela que a imagem de si é inseparável de relações de prestígio e de estruturas de poder.

Busto de Nefertiti descoberto em 1912 no Egito. Atualmente exposta no Neues Museum em Berlim, Alemanha. Fonte: https://www.smb.museum/en/museums-institutions/archaeologisches-zentrum/home/

Na Idade Média, especialmente nos manuscritos iluminados (Iluminuras) surgem autorretratos de escribas e iluminadores, como Eadwine no Eadwine Psalter ou Claricia, que se inscrevem nas letras capitulares. Tais práticas articulam identidade pessoal e função social, revelando o “eu” dentro de redes hierárquicas e religiosas. A marca do artista não apenas afirma presença, mas também legitima o trabalho dentro da comunidade, dialogando com a teoria de Moscovici (2003) sobre representações sociais e circulação de significados compartilhados.

Detalhe de letra capitular realizada por Claricia, iluminadora do século XIII, onde ela se representa “balançando” na letra. Fonte: https://textessurlesartsplastiques2.blog/

O Renascimento consolida o autorretrato como expressão de individualidade, autonomia e virtuosismo técnico. Obras como o de Albrecht Dürer ou Leonardo da Vinci sinalizam a emergência de um sujeito reconhecível, cuja visibilidade transcende o âmbito familiar ou local, inscrevendo-se na esfera simbólica mais ampla da corte, do mecenas e do público culto. Para Bourdieu, tais práticas refletem a construção do capital cultural e simbólico, em que a legitimidade estética se entrelaça com a posição social do artista (Bourdieu, 1998).

Albrecht Dürer, “Autorretrato com casaco de pele”, 1500. Fonte: https://sammlung.staedelmuseum.de/en/person/duerer-albrecht

No início do século XIX, o autorretrato ganha contornos não apenas de reconhecimento pessoal, mas de inscrição simbólica em narrativas coletivas e históricas. O pintor Eugène Delacroix, em “A Liberdade guiando o povo” exemplifica esse entrelaçamento: acredita-se que o artista tenha incluído sua própria figura entre os combatentes, numa espécie de “autorretrato encoberto”. Aqui, o gesto de se representar transcende a esfera íntima, torna-se afirmação de presença na história e participação ativa em movimentos sociais e políticos. Tal inserção sugere que o autorretrato, mesmo quando sutil ou camuflado, articula identidade, agência e capital simbólico, dialogando com as redes sociais de reconhecimento do seu tempo, de modo que a construção do eu se faz tanto individual quanto coletiva (Bourdieu, 1998; Moscovici, 2003).

“Liberdade guiando o Povo”, Eugène Delacroix, 1830, exposto no Museu do Louvre, Paris, França. Fonte: https://www.louvre.fr/

Com a Idade Moderna e o advento da fotografia, a democratização do autorretrato se acelera. O daguerreótipo e o retrato fotográfico permitem que amplos setores da população participem da construção da própria imagem, ainda que mediados por convenções estéticas e sociais. Susan Sontag (1977) e Roland Barthes (1980) destacam que a fotografia transforma o eu em objeto de observação, tensionando autenticidade, memória e performatividade, enquanto Walter Benjamin (1936/2008) observa que a reprodução técnica altera a experiência da aura, multiplicando a presença do indivíduo no espaço social.

Space Writing” (self-portrait), impressão fotográfica dadaísta criada por Man Ray em 1935. Fonte: https://www.arthistoryproject.com/artists/man-ray/

Basquiat expõe um “eu” atravessado por dor, violência e resistência. O autorretrato aqui não é um espelho fiel ou apenas experimentação, mas um campo de batalha simbólico, onde corpo e rosto se dissolvem em linhas, cicatrizes e códigos gráficos. A figura humana se converte em mapa de tensões sociais e raciais, um testemunho crítico que ultrapassa a individualidade para falar de coletividade e de memória histórica. Assim, esta imagem o projeta como sujeito insurgente, capaz de transformar sua própria identidade em linguagem estética e ato político. Como observa Fred Hoffman (1996), a obra de Basquiat é menos um espelho individual que um campo de inscrição simbólica de tensões sociais, raciais e históricas.

Jean-Michel Basquiat, “Autorretrato”, 1984.

No século XXI, o autorretrato digital e as selfies articulam identidade, redes e espetáculo. Inseridos em plataformas conectivas, os sujeitos constroem e negociam múltiplas versões de si mesmos, combinando intimidade e visibilidade em uma coreografia simbólica. Cada imagem é tanto uma afirmação de existência quanto um instrumento de circulação de capital social, conformando-se às dinâmicas de prestígio, pertencimento e reconhecimento na esfera digital (Moscovici, 2003; Bourdieu, 1998). Nesse contexto, a sociologia da imagem evidencia que o autorretrato contemporâneo não é apenas registro, mas prática social complexa, mediadora de relações e de poder simbólico.”

Série Somewear 2014 – Foto: Lucia Fainzilbers* – Fonte: https://unicamp.br/unicamp/

*Trecho do comentário da autora: “Somewear é uma série de autorretratos, que brigam com a ideia de identidade. Colocar meu corpo na frente da câmera tem sido uma maneira de me olhar de outra maneira, tentando responder a todas essas perguntas sobre quem realmente somos. A sociedade, a família e a geração em que vivemos tornam essa jornada ainda mais difícil. Nos camuflamos (…) para sobreviver. É a nossa maneira de estar dentro de um sistema.”

Pesquisa e Texto: Bel Liviski

Referências

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. São Paulo: Brasiliense, 2008. (Original publicado em 1936)

BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp, 1998.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.

MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigações em psicologia social. Rio de Janeiro: Vozes, 2003.

SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Rio de Janeiro: Rocco, 1977.

BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

HOFFMAN, Fred. The Art of Jean-Michel Basquiat. New York: Enrico Navarra Gallery, 1996.

Grupo de professores, participantes e amigos do “Quinta tem Café”. Foto: Estela Zardo

CALENDARIO ANUAL – “Quinta tem Café”
Curadoria de Vera Itajaí
Contato/Whats/Texto:
(41) 99973-3337
Rua: Presidente Carlos Cavalcanti, 624 –
Bairro: São Francisco – Centro – Curitiba/PR
Horário: Das 19:30 às 22:00
Aberto ao Público.
Evento Gratuito.

Izabel Liviski (Bel) é articulista e coeditora da Revista ContemporArtes desde 2009. É também editora do TAK! Agenda Cultural Polônia Brasil. Mestre e doutora em Sociologia pela UFPR.

Contato: bel.photographia@gmail.com

4 comentários em “Autorretrato e a construção social do eu: uma perspectiva histórica-sociológica

  1. Como o wordpress nunca me aceita, envio com autorização de divulgação: O retrato, retractus, além de fazer uma cópia também significa retirar e puxar. Talvez por isso os indígenas temiam tanto ser retratados. Sociologicamente instigante que em nossa época signifique tanto “incluir” quanto “exibir”, como de forma perspicaz a autora do texto acentue. Como faz bem ler um texto inteligente. Parabéns!

    E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música. Friedrich Nietzsche PUCCI.’.

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  2. Belo texto! E na atual fase virtual das conexões pessoais e interpessoais, como as expressões de si se manifestam cada vez mais de forma individual, como busca de afirmação de si mesmo. Perfeita a referência a Bourdieu em sua “A distinção: …”

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