Babalorixá Dr. hc Eduardo de Xango[1]

“Não existe no Candomblé uma figura que pune, que maltrata, que te condena a eternidade do sofrimento, não existe isso”

Cecília de Oliveira Prado[1]

Ana Maria Dietrich[2]

Apresentação: Numa tarde ensolarada do dia 07 de maio de 2024 tivemos o prazer de receber para uma deliciosa conversa o Babalorixá Dr. hc. Eduardo d’Sango. Na oportunidade o líder religioso Babalorixá Eduardo veio conhecer o Laboratório Memória dos Paladares e nos presentear com seu livro “Educação de Axé: Regras de Convivência”. Num diálogo informal, relatou-nos acerca da intolerância religiosa que as casas de religiões de matriz africana têm sofrido. Conversamos sobre a importância de iniciados, adeptos e visitantes adotarem, dentro das casas religiosas, atitudes respeitosas para com a ancestralidade do espaço sagrado e abençoou o Laboratório Memória dos Paladares.

O Babalorixá Dr. hc Eduardo d’Sango 32 anos, nascido em janeiro de 1992, na cidade de São Bernardo do Campo, estado de São Paulo, se formou em gestão ambiental (2011) e, posteriormente, em gestão de processos gerenciais com ênfase em trânsito (2022), pós graduado em gestão, educação e segurança no trânsito(2023). Foi iniciado aos 20 anos de idade a pedido de Orixá pelas mãos abençoadas de Iya Graça de Oyá (mojubá), fundando seu Ilê Asé Onã Idajó (Casa de Axé Caminho da Justiça), na cidade de Santo André/SP. Doutor honoris causa pela Faculdade de Capelania de São Paulo. Integrante do Fórum do Diálogo Religioso de São Bernardo do Campo e tem ações em diversas frentes de luta pelo fim da intolerância religiosa, da qual muitas vezes já foi vítima. Integrou o movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos de SBC, a Associação de Diabetes de SBC (ADISBEC), participou e foi idealizador de diversas ações sociais ligadas a cultura e a saúde, atuando como colaborador voluntário em instituições como Afoxé Omo Aiye Selé e a Associação Brasileira de Portadores de Hepatite.

Ilustração 1:  Babalorixá Dr. hc Eduardo de Xango com sua obra “Educação de Axé”. Acervo pessoal da autora. 

Contemporartes – Conte-nos um pouco da sua trajetória dentroda religiosidade de matriz africana. Há quanto tempo você se dedica a ela?

Babalorixá Eduardo – O Candomblé, a Umbanda, religiões de matriz africana, me são bastante familiar. Geralmente a pessoa tem alguém da família que frequenta, e aí te traz para esse universo. Comigo, desde muito pequeno, desde as minhas primeiras memórias, não é possível recordar bem, mas sempre estive inserindo dentro do contexto da Umbanda. Meu pai já era da religião, o meu tio era da religião. Então a tínhamos esse contato dentro de casa, os rituais, as dinâmicas religiosas, aconteciam dentro de casa. E eu sempre desde muito pequeno, me interessei muito por isso. O meu primeiro o contato foi com o universo religioso dentro da Umbanda. Quando eu tinha 11 anos, fui visitar uma casa, era uma gira, uma gira tocada na Umbanda, mas a casa era de Candomblé. Fui uma vez, mais uma vez, fui gostando, e desde então, só parei quando eu comecei a fazer faculdade. A gente tem que dar aquela espaços de faculdade, né? Quando eu entrei fui direto no Candomblé, depois disso, foi só esse momento de parada mesmo [da faculdade], e continuo ia até hoje. Com ansiedade da juventude, eu queria iniciar, no Orixá, fazer as minhas obrigações, fazer tudo, mas isso só aconteceu aos meus 20 anos. Aos 20 anos eu iniciei no Candomblé e hoje eu sou sacerdote.

Abri uma casa em Santo André. Geralmente, começa dentro desse contexto, ou familiar, ou porque um amigo seu ou alguém que muito próximo a você, te conhece, e convida a participar. E quando a gente vai, não adianta, se a gente procurou um lugar certo, um lugar adequado, a gente se apaixona e não sai mais. É uma energia. Eu costumo dizer que para compreender melhor o Orixá, os guias, precisa sentir. Então, qualquer coisa que eu fale sobre um Orixá, sobre uma guia, ou uma entidade, é difícil de a pessoa conseguir pegar a essência. É preciso sentir aquilo. Às vezes, a gente visita uma casa, ou até mesmo dentro da própria casa, e vê as pessoas chegando, às vezes, na primeira vez elas se emocionam, começam a chorar. Acho que tem essa energia gostosa que é o que traz de pessoas para lá. Mas tudo geralmente começa dentro desse contexto.

Contemporartes: Ultimamente temos ouvido muito a respeito do racismo religioso frente as religiões de origem africana que são comumente relacionadas ao demônio. O que você diria as pessoas que relacionam o Candomblé como uma religião do diabo.

Babalorixá Eduardo – Eu acho que isso é uma ignorância. É um pré-conceito. É um pré-conceito por quê? Porque, dentro da religião de matriz africana, nós não temos essa figura do demônio. Dentro da matriz africana não temos essa figura do diabo. Não existe para a gente essa figura. Existe é uma energia, chamada Elenini. Essa energia seria uma coisa que se aproxima muito mais dessa figura, que a igreja tem que é o diabo, o demônio, tudo mais. A gente chama que ela de Orixá do infortúnio. Mas mesmo esse Orixá do infortúnio, traz coisas positivas para a gente. É aquele Orixá que ele pode vir trazendo algum problema na sua vida, mas sem essa problemática você não cresce. Como seria sua vida sem nenhum problema? Como seria sua vida sem nenhum infortúnio? Será que você aprenderia alguma coisa? Será que você prepararia para alguma situação? Se a minha vida está em paz, é um sossego, eu não tenho mais para onde crescer. mentalmente, fisicamente, não há mais o que crescer. Não tenho que fazer mais. Então, sempre vai acontecer alguma movimentação, algum infortúnio, que é para você dizer “não, para aí, eu tenho que resolver isso aqui. Como eu vou fazer?” Então, até mesmo, a nossa divindade do infortúnio, ela tem esse objetivo de fazer a gente se movimentar. De nos tirar da estagnação. Então, não existe no Candomblé uma figura que pune, que maltrata, que te condena a eternidade do sofrimento, não existe isso.

Uma coisa que eu sempre costumo falar, é que essa ideia, muito falada de inferno, que você vai para o inferno, que é uma religião que não é de Deus, dirigida a quem se identifica como de matriz africana, é uma ideia do outro. Isso é muito relativo. É muito relativo. O que é o inferno? Será que aquilo que me machuca, é a mesma coisa que machuca você? Será que aquilo que é ruim para mim, é a mesma coisa que é ruim, é para outra pessoa? Então, por exemplo, o bem o mal, eu costumo falar bastante sobre isso, será que o que é bom para mim é bom para o outro também, tem o mesmo peso? Usei um exemplo com o meu filho de santo esses dias atrás, de coisas que incomodam. Para exemplificar: uma coisa que me incomoda, pessoalmente me incomoda bastante é panela com óleo dentro do fogão. Me incomoda muito, eu não gosto, eu prefiro que a pessoa tire a panela, lave a panela e guarde a panela no lugar certo, mas não fique juntando a panela com óleo dentro do fogão. Daqui a pouco tem uma, tem duas, tem três. Aí você vai pegar, a panela vira dentro do fogão e você tem que limpar tudo aquilo. É uma coisa simples, mas me incomoda profundamente. E o meu filho de santo disse: “Por quê? Como assim. Não tem nada a ver”. E eu disse, então, justamente, aquilo que me incomoda, pode ser que não incomode você. Então, o que é o bem no mal? Às vezes, um bem para mim, é o seu mal. E às vezes o seu mal, é o meu bem, ou vice-versa, percebe, isso é relativo.

Tem uma outra vertente que eu estudo que fala justamente isso. O inferno, essa questão do bem no mal, é pessoal. Não dá para a gente entender que o mesmo inferno que eu entendo, que eu julgo ali, é o seu. Também, já ouvi dizer que a pessoa vive na treva, precisa de luz, precisa de conhecer Jesus, essas coisas. Mas o que são as minhas trevas? O que é essa treva de que as pessoas falam? No meu conceito o mundo é dual, é o universo é dual, todos nós temos positividade, negatividade, todos nós temos coisas boas, coisas ruins, defeitos de qualidade. Eu por exemplo, entendo como treva, aquela parte de mim que eu não conheço, geralmente, renego. Então, eu tenho bondade e ruindade dentro de mim, eu não sou 100% bom, e eu não sou bom para todo mundo. Acho que ninguém é bom para todo mundo. Em algum momento, você vai ter discordância com alguém. Então, as trevas, para mim, é aquela parte dentro de mim, que eu até sei que eu tenho, mas eu prefiro negar, dizendo que eu sou uma pessoa boa. E eu preciso olhar para essa parte, eu preciso compreender essa parte, eu preciso melhorar essa parte, eu preciso entender. Na hora da raiva, o que eu sou capaz de fazer? Será que sou capaz de falar algo que machuca alguém? Será que sou capaz de uma agressão? Olhar para esse seu lado que você tenta esconder, tenta disfarçar, é uma coisa positiva, não é uma coisa negativa a meu ver. E infelizmente, as pessoas têm essa coisa de trevas, inferno, bem e mal, muito ligado ao cristianismo, muito ligado a essa figura do demônio, do diabo, uma coisa negativa, mas, eu como falei no começo, isso é uma ignorância, pra mim, é uma ignorância.

Eu estava conversando com uma pessoa esses dias sobre crise financeira, dificuldades que andamos tendo nos últimos tempos, então um amigo meu falou assim: o desespero do rico é nossa salvação. E é verdade, às vezes a pessoa tem uma ótima condição financeira e está desesperado com a situação que está passando, quando a gente olha e fala: cara, eu não sei se eu estivesse na situação que ele tem, onde ele está, eu estava feito, eu estava livre. Então tem essas diferenças que acho que poucas pessoas prestam atenção. Na sociedade, dentro desse comparativo do Candomblé e outras religiões de neopentecostais isso é bem complicado, porque eles têm uma visão, e consideram a visão deles como a única correta, a única certa, e é algo que não faria diferença alguma na vida deles. Se eu estou praticando a minha fé, em que isso impacta na sua vida? Da mesma forma que eles, se eles estão praticando a fé deles, o que isso impacta na minha vida?

Ilustração 2 – Babalorixá Dr. hc Eduardo de Xango em visita ao Laboratório Memória dos Paladares, concedendo-nos entrevista. Acervo pessoal da autora. 

ContemporartesHá quanto tempo você tem a casa em Santo André?

Babalorixá Eduardo – É recente ainda, ela foi fundada em 16 de outubro de 2022, é vai fazer agora dois anos de casa aberta. A gente está atrás de um espaço maior, porque a casa vai crescendo, como eu falei, partimos de um contexto familiar. Então a maior parte das pessoas que estão na minha casa são sobrinho, a minha mãe, irmão, cunhada. Mas já começam a chegar outras pessoas, outras pessoas estão se agregando. Por exemplo, só essa semana eu já conheci mais dois filhos. Então a gente vai crescendo e precisando cada vez de um espaço um pouco maior. Só que esse espaço maior acaba tendo que ser um pouco mais afastado do centro.

Contemporartes E esse espaço que vocês têm hoje, já sofreu discriminação?

Babalorixá Eduardo – Sim, e como. Eu estou com um processo aberto: judicial, criminal e de danos morais. Porque um vizinho resolveu ir à porta da minha casa com uma faca e me ameaçar. Eu estava iniciando um culto, nem estava fazendo uso de atabaque, nada disso, eu estava iniciando umas rezas, por volta de 21/21h30, fazíamos umas rezas e a já ia encerrar, era só o começo. Então um vizinho foi à frente da minha casa, com faca na mão, dizendo que a gente não ia fazer, que não ia isso, que não ia aquilo, que lá não era terreiro, que não sei o que, não sei o que mais. Então, mesmo que fosse um culto particular, ele se achou no direito de ir lá. Eu tenho direito a um culto, mas ele se achou no direito de ir lá é me ameaçar. Chamamos a polícia, a polícia foi até lá, ele permanecia com a faca na mão ainda, mas não foi preso, mesmo tendo ameaçado. Ele só não veio para cima de mim porque a filha dele ficou se colocando entre a gente. Isso acontece muito.

Aqui em Santo André mesmo, no próximo dia 19, vai ter um evento, vai ter um encontro, na Rua Bom Pastor, que vai falar justamente de um outro caso parecido com esse. Só que nesse caso, as pessoas estão usando a máquina pública para perseguição. Então, qual que é o problema? Nós temos ao direito ao culto. O Supremo Tribunal já falou da questão da imolação dos animais, são questões que já foram resolvidas. Mas, o que que tem acontecido mais recentemente, é que eles têm usado a questão da lei do silêncio. Então, por exemplo, não pode tocar porque incomoda, porque faz barulho. Sobre esse caso, acho a situação do pai Renato. Ele já foi multado três vezes pela SEMASA [Serviço Municipal de Saneamento Ambiental de Santo André – autarquia pública em Santo André], por perturbação do sossego. Então eu pergunto: qual é a igreja de bairro que tem isolamento acústico? Eu não conheço nenhuma. Ele já tomou três notificações, e a SEMASA falou que na próxima vão lacrar o terreiro dele.

Contemporartes Um sino de uma catedral que soa em alto som também não é perturbação do sossego?

Babalorixá Eduardo – É perturbação do sossego. Então, qual é a diferença desse sino que parece faz um barulho ensurdecedor, do microfone que você mal consegue ouvir a sua televisão dentro da sua casa?

Tenho uma amiga que morava em cima de uma igreja que tinha uma aparelhagem musical muito boa, e ela relatava toda hora, via internet, que ela estava com muita raiva, que seus móveis tremiam na casa. Então ela teve que mudar de casa. Ela mudou de casa, não a igreja. Mas quando é conosco não é assim, nós temos que mudar, não as pessoas que estão incomodadas.

Teve um outro caso recente, que está em curso ainda, uma irmã de santo, em Riacho Grande, em São Bernardo, uma região de chácaras, em que o vizinho aparentemente não gosta muito, e aí ela tem recebido certas visitas bem inconvenientes. Ela recebeu dois investigadores da polícia civil na casa dela. Sem nenhum inquérito aberto, eles não estão investigando nenhum inquérito. Mas foram dois, inclusive com o carro da polícia civil. Só que ela errou, porque ela não pegou o nome deles e não pegou a placa da viatura. Mesmo assim ela foi na delegacia, se dois investigadores foram na casa dela, supostamente ela estava sendo investigada por alguma coisa. Na delegacia ela conversou e foi informada de que não está acontecendo nada. Não tem denuncia, não tem boletim de ocorrência, não tem nada. Então, o que justifica, dois investigadores da polícia civil baterem na porta de um terreiro sem nenhuma investigação em curso? Eles no mínimo deveriam estar ocupados com crimes maiores do que perturbação do sossego. Uma tentativa de intimidação.

A gente vê isso acontecendo muito ainda, infelizmente muito. São coisas que realmente não vão mudar absolutamente nada na vida da pessoa. Mas o racismo, o preconceito, está tão inserido, que é difícil delas se segurarem. Não é possível que, por exemplo, essa pessoa que foi com uma faca na porta da minha casa, e que segundo a irmã dele, minha amiga, “Ele nunca foi assim, ele nunca foi de fazer essas coisas”. Então o que trouxe isso à tona, o que colocou isso para fora, a não ser a própria ignorância, a falta de respeito.

A pessoa se incomoda com a vida da galinha que vai ser morta, imolada, mas para a alimentação. É comida. E não se incomoda de ameaçar um ser humano com a faca. Então para ele proteger a galinha é, não que não seja importante, mas é menos, é mais importante do que proteger a vida de outro ser humano. E está tudo bem ameaçar o outro ser humano. Eles param de pensar e o raciocínio se torna um pouco mais lento.

Contemporartes A tua casa tem crianças?

Babalorixá Eduardo – Tem. Acho que tem uma 6 ou 7 crianças.

ContemporartesE elas já sofreram algum tipo de preconceito?

Babalorixá Eduardo – Também recentemente. Quatro deles são meus sobrinhos. Das sete, quatro são meus sobrinhos. E duas das minhas sobrinhas vão com fios para a escola, fios de conta que não ficam a mostra, ficam por baixo da camisa. E elas estavam participando de uma atividade na escola. E durante a atividade cada um tinha que falar alguma coisa. No meio da atividade, um aluno virou e falou para a professora na frente de todo mundo “Ah professora você sabia que nós temos duas meninas aqui que são macumbeiras?”. A atitude que a escola teve foi muito respeitosa. A professora, interrompeu e falou: “Olha, aqui cada um pode ter a crença que quiser. Cada um pode ter o direito a não ter crença alguma se não quiser”. E a partir daí, eles começaram a fazer um trabalho sobre isso na escola. Mas isso é uma coisa muito difícil de se ver. É raro, de se ver. Então, eu acho que até por ser raro, tem até mais valor. E ela fez esse trabalho, as minhas sobrinhas e meus sobrinhos, que são de salas diferentes, fizeram uma apresentação de cunho religioso. Para tentar trazer a luz um pouco mais de conhecimento sobre o tema. Foi bem interessante, isso ajudou bastante eles, apesar de terem passado por essa situação, eles não têm preconceito. Eles não têm preconceito. Eles não têm vergonha.

Contemporartes Nós temos conhecimento de que há casas que com o intuito de evitar discriminações, orientam as crianças a não portarem símbolos do Candomblé na escola. Sabemos que isso não é uma regra. Na sua casa qual orientação é dada às crianças?

Babalorixá Eduardo – Eu sempre falo sobre educação, como se portar em certar situações e eu sempre falo que não tem por que esconder a nossa fé, nós temos direitos, como todo mundo tem. Mas óbvio, procurar ignorar, procurar relatar a um superior o que está acontecendo, mas não um enfrentamento e nem partir para a violência. Mas, quando isso acontece, é difícil toda hora você ser perseguido, toda a você ser pisado, é uma coisa muito complicada. Mas eu sempre falo assim, fala com eles a respeito, relate para os superiores de escola sobre o que está acontecendo. Se precisar ir à escola, a gente vai até escola para conversar. Mas não tem uma proibição.

As crianças da minha casa sentem orgulho de ser da religião. Eles gostam de estar lá. Tanto é que apesar de eu não estar lá, eles montaram uma peça, sobre Orixás para apresentar na escola. Eles montaram por eles, eles nem chegaram a me dizer, perguntar se podiam fazer. Eles montaram e fizeram. Então eu achei isso muito bonito deles. Eles não têm vergonha mesmo.

Essa era uma vergonha que eu tinha. Será que os outros vão descobrir que eu sou da Umbanda e que sou de terreiro? Eu vejo que isso eles não tem, vejo como uma evolução. A gente já se esconde demais.

Grande parte dos terreiros estão procurando migrar para regiões mais afastadas do centro da cidade, cada vez mais afastadas, por conta dessa perseguição velada que a gente sofre. Então enquanto as vezes nós adultos estamos com essas preocupações, essas crianças não têm medo de se mostrar. É preciso que isso seja tão normal quanto um aluno evangélico ou adventista. Se uma professora pode ir para a escola com o símbolo da cruz. Se a diretora pode ir para a escola com o símbolo da cruz. Um aluno qualquer pode ir para a escola com o símbolo da cruz. Por que a gente não pode ir com o fio? Isso não vai mudar absolutamente nada na vida de ninguém.

E é óbvio que eu também entendo que a culpa não é dessas crianças. A culpa não é delas. Essa falta de informação, elas passam para frente porque elas receberam. Então acho que o trabalho que a escola fez foi fundamental para ajudar a diminuir isso, diminuir as agressões. Depois dessa situação de abertura que a escola deu, outros alunos começaram a falar, eu também sofro. Eu não frequento o Candomblé, mas eu frequento tal religião, sou espírita etc. então começou a abrir para as pessoas falarem que fazem parte de um determinado segmento que também sofre preconceito. Então acho que isso foi muito valioso. Mas cada terreiro tem a sua prática, de acordo com as vivencias que tiveram, então acho importante, respeitar.

Contemporartes A adolescência é uma fase de grandes mudanças e uma de suas características marcantes é a necessidade de pertencimento no grupo de mesma faixa etária. Vocês identificam dificuldade com as garotas e garotos dessa faixa etária em expor sua religiosidade?

Babalorixá Eduardo – A adolescência tem essa questão de toda a necessidade de participar de certas “panelas”. Há uma necessidade muito grande de ser aceito, de estar junto ali com uma comunidade. E isso pode até ser interessante, mas eu acho um pouco perigoso, porque dependendo dessa comunidade em que ele acha que ele tem que ser inserido isso traz certos problemas. Então, às vezes, se envolve uma comunidade que está ligada ao uso de entorpecentes, ou coisas mais pesadas, e não falo que eu sou contra, tenho a mente aberta para essas coisas, acho que cada um faz a sua vida do jeito que achar melhor, mas dependendo ali do entorpecente, a pessoa acaba caindo em uma complicação bem grande.

Tem ainda as posições extremistas, como o machismo e posições políticas de cunho nazifascistas. É importante ver o que acontece na adolescência. Veja o caso dos meus sobrinhos, eu estava conversando com essa minha irmã que sofreu preconceitos sobre isso. E ela disse que se meus sobrinhos querem ir para casa todo final de semana [os sobrinhos querem ir todo final de semana] e lá ficam perguntando se tem algo para fazer, como podem ajudar. Eles estão chegando nessa fase da adolescência, e ela disse que se eles querem participar, permita, é uma forma de não deixar eles se perderem para outros caminhos.

Em casa, uma discussão que eu tenho é sobre a questão do machismo, o respeito aos mais velho. O Candomblé trás isso muito forte, o respeito ao mais velho. Lá, eles sabem que tudo que eles forem fazer, é pela entidade. Então, vai tomar banho, é o mais velho primeiro. Vai comer, é o mais velho primeiro. Qualquer atividade que tiver que fazer, é o mais velho primeiro. Se vai sentar e tem três cadeiras e quatro pessoas, os três mais velhos, sentam-se. A gente trabalha essas questões com eles. Sobre o machismo, a intolerância, “ah, mas fulano…”

Eles têm um amigo que tem algumas práticas indígenas. Então, ele conversa com eles, algumas coisas que não estão inseridas dentro da nossa cultura, do Candomblé. E aí, eles estavam conversando sobre isso, e me perguntaram, se isso era certo. Expliquei que na cultura dele é. Então, aprende que na cultura dele é. Da mesma forma que algumas pessoas não entendem a nossa cultura, nós não vamos entender muitas vezes a cultura do outro. Mas, o que eu explico para eles: se você quiser aprender uma cultura diferente, você tem que se despir da sua. Se você não pode ir para uma cultura, usando as vestimentas que são da sua cultura, usando conhecimento que você tem da sua cultura. senão automaticamente, você usa a sua cultura como base, para entender a outra, então você vai acabar tendo prejulgamentos sobre aquilo.

Se eu quero conhecer, por exemplo, eu fui conhecer a Mundial do Poder de Deus, eu fui conhecer a Universal, eu fui conhecer a Adventista do Sétimo Dia, e eu fui conhecer a Testemunha de Jeová. O meu conhecimento, de tradição africana, ficou na porta, porque eu queria conhecer aquela cultura, o que eles acreditam, o que eles pregam? Como é? Se eu entro lá, já com o entendimento de que o que eu sei é o certo, então, a hora que vou entrar lá, eu só vou ver coisas erradas, grande parte das coisas como coisas erradas, e é o entendimento que eles têm do correto. O inverso não acontece, ou raramente acontece. Raramente você vai ter um pastor ou um padre, já vi, mas é bem raro de acontecer, que vá até o terreiro fazer essa observação, se despir de seus conhecimentos, se despir de seus preconceitos, isso é difícil de acontecer.

Então, eu passei, geralmente eu passo esse ensinamento, porque eles são a mesma coisa, a mesma situação. É a cultura deles, a cultura dos outros não questionamos, a gente respeita. Então, aí eles começaram a entender melhor o colega e passaram-se preocupar mais com as coisas que ele achava, que ele falava, passaram a ouvir um pouco mais. E isso é muito importante.

Ilustração 3 – Babalorixá Dr. hc Eduardo de Xango concedendo-nos entrevista. Acervo pessoal da autora. 

Contemporartes O seu livro Educação de Axé: regras de convivência, trata também dessa temática, não? Conte-nos um pouco a história dele. Por que sentiu de necessidade de escrevê-lo?

Babalorixá Eduardo – Eu não sou muito rígido com as regras do Candomblé, mas é preciso entender que as vezes as pessoas passam pela nossa vida, passam pela nossa casa e vão para outras. Então a minha ideia era justamente que a pessoa que passasse pela minha casa, tivesse uma ideia geral, de como a educação funciona dentro dos terreiros, no geral. Então, eu comecei a postar no grupo da minha casa algumas dessas regras. Vamos nos atentar a isso aqui, isso aqui, isso aqui, isso aqui. Há coisas eu não cobro, mas tem algumas coisas que são importante que demos uma certa atenção. Por exemplo, o respeito aos mais velhos, e a gente foi falando sobre isso. Então uma filha de santo minha me desafiou a fazer um PDF sobre isso, um livro de como se portar. “Assim, vai ficar mais fácil de a gente pegar”. Vou tentar. Então ela já tinha começado. “Peguei, copiei, colei aqui, e arrumei ali. Dei uma montadinha, veja o que o senhor acha, e complementa”.

 Aí eu montei… montei com umas três, quatro páginas, das regras gerais, e postei no grupo. Aí eu falei quer saber, acho que eu vou fazer isso um pouquinho maior, com um pouco mais de detalhes. Mas eu queria ao mesmo tempo que fosse uma coisa objetiva. Não uma coisa que a pessoa tivesse que ler 300 páginas, e saísse de lá sem entender o que leu na primeira. Queria uma coisa fácil de ler.

Quando eu vou entrar no terreiro, o que eu posso fazer? Se uma pessoa de uma outra tradição vai no nosso terreiro, como é que ela vai chegar? Com que roupa ir? Qual seria a roupa mais adequada? O que não fazer? O que fazer quando chegar ao terreiro? Quais são os cuidados que você tem que ter quando chegar neste local sagrado? Então, a ideia passou a ser essa.

Eu fiz uma parte, uma parte do livro dedicada aos adeptos, as pessoas que querem aumentar o seu conhecimento. Também coloquei nesse livro uma parte da pessoa que está visitando, que está apenas conhecendo. O que fazer, como chegar, como cumprimentar as pessoas. Por exemplo, o Islã tem aquela coisa do homem não cumprimentar a mulher tocando. Você não cumprimenta uma mulher do Islã, beijando-a no rosto ou apertando a mão, é desrespeitoso, ainda mais se estiver próxima ao marido. Então, quando você vai cumprimentar uma mulher do Islã, você coloca a mão do que peito e faz uma reverência.

No Candomblé a gente não tem isso, tem muitas casas que mantêm a tradição da troca de benção, de beijar a mão da pessoa. Há uma ordem, o mais velho sempre toma a benção primeiro. Na hora do Ajeum, que é a hora da comida, quem vai comer primeiro? Como funciona? Eu participei de uma festa, uma vez, e a pessoa dizia eu não como isso, eu não como aquilo, eu não gosto disso aqui, fazendo comentários a respeito da comida. Quando você está sendo recebido na casa de uma pessoa, que abriu as suas portas, que serviu o alimento, se você não gosta daquilo, então tudo bem, mas não precisa fazer comentários, na mesa. Acho que isso não é nem uma questão de tradição africana, a tradição de educação mesmo. Pega mal, fica chato para a pessoas, ela está te oferecendo o que tinha, e se ela está oferecendo só o que ela tinha, é muito. Agradeça, “Ah, não estou com fome”, não coma, toma só um copo de refrigerante.

Uma vez eu estava na mesa, e as pessoas estavam falando mal da dona da casa, eu fiquei extremamente constrangido, era minha amiga. Aí falei gente, esse é o tipo de coisa que a gente não faz, que a gente não pode fazer, né? Não se faz na casa dos outros. Se a gente quer comer bem, a gente faz em casa, a gente fica em casa, as pessoas estão dando o que elas têm a dar, então isso é sagrado.

Daí começou o livro, fui criando, aumentando um pouquinho mais, colocando alguns detalhes, explicando alguns conceitos, fiz um glossário, porque as pessoas não sabem o que é um Idó, que é um banheiro ou uma Apoti, que é um banquinho, e são termos que a gente utiliza nosso dia a dia, no Candomblé. Então a pessoa fica perdida. Mas o que que é isso, o que que é aquilo? Ah, pega o Oberó, que é um alguidar [vasilhame de barro], então criei um glossário, para as palavras que a gente mais utiliza nosso dia a dia.

Quando saiu a lei Paulo Gustavo eu estava quase terminando, de editar e resolvi colocar no edital. Não imaginei que fosse passar, mas deu certo. O livro foi financiado pela lei Paulo Gustavo. Eu só podia participar em um edital, houveram foram vários editais, mas eu só podia participar no primeiro edital, consegui. Então eles deram, 10 mil, para confecção do livro (800 cópias), tinha que fazer 10% de acessibilidade, a gente fez isso. Na última página, tem um link em que a pessoa consegue acessar o ebook e o audiobook para baixar, ambos gratuitos.

O livro ia chamar Rumbê, que significa Educação de Axé, regras de conduta, só que já tinha um livro chamado Rumbê, e o tema é o mesmo, e aí como eu ia registrar ele na Biblioteca Nacional, não podia dar plágio, então eu preferi tirar o termo Rumbê, pra colocar Educação de Axé, e depois, no texto, explicar, qual que era a ideia desse Rumbê, nesse contexto.

O recurso saiu em janeiro desse ano, e começarmos a divulgar ele agora.

Em casa tem uma regra, eu sempre falo para os filhos de santo que estão indo na minha casa e para a pessoa está conhecendo a casa: Quando você chegou aqui, você encontrou a porta como? Ela estava aberta, quando sair deixa aberta, a gente não sabe do dia de amanhã, pode ser que um dia, a minha casa você não se torne a melhor casa pra você, pode ser que um dia você encontra uma outra casa melhor, mas, eu ofereci e da mesma forma que você entrou com a porta aberta e conversou, dialogou, porque às vezes o problema pode ser resolvido com diálogo, saia, mas mantenha a porta aberta de novo, porque lá na frente, se você precisa, eu não vou ter o que falar, eu não vou ter que falar que eu não quero a pessoa na minha casa, porque essa pessoa já me traiu, já me enganou, falou de mim, etc. Não, você foi respeitoso quando entrou, e está sendo respeitoso na hora de sair.

Eu não obrigo ninguém a ficar na minha casa, porque às vezes tem alguém é um pouco mais rígido, a pessoa saiu da minha casa, perdeu a amizade, acabou de tudo, eu não tenho isso, mas o respeito é muito importante, eu falo que poucas coisas me incomodam, mas a falta de respeito é uma delas e assim, é raramente, eu vou esquecer uma falta de respeito, então, mantenha a porta aberta. Existem muitas formas de se fazer a mesma coisa, então se você viu aqui uma coisa diferente, essa coisa pode ser que não esteja errada, é uma forma diferente de fazer aquilo, ou se você saiu daqui.

Tem uma parte do livro que é dirigida aos adeptos visitando uma outra casa. Então você é da religião e está visitando uma outra casa, é preciso compreender que aquela casa é do outro, não é a sua, que as coisas que se fazem lá, podem ser que não seja mesmo que a sua. Nem todas as regras que estão aqui, todas as casas de Candomblé seguem.

O livro é um apanhado geral dessas regras, de que é preciso ao chegar na casa do outro prestar a atenção, aqui eles fazem diferente, lá a gente faz assim, ali eles fazem assado, e é preciso se enquadrar. Enquanto você estiver lá, você tem que enquadrar a essas regras, a do outro, da casa do outro, você chegou lá e viu uma coisa que você sabe fazer, sendo feita de forma diferente, não julgue como uma coisa errada, julgue como uma outra maneira de fazer.

Por exemplo, o acaçá. O acaçá é uma comida que a gente usa para todos os Orixás, a comida é enrolada numa folha de bananeira. Você pega a folha de bananeira, tem que aquecer para ela ficar maleável, aí você vai enrolar. O acaçá que é uma massa tipo um mingau endurece, ela geralmente tem um formato de pirâmide e a gente usa para várias coisas. Eu sabia três formas de enrolar a acaçá. Tenho 12 anos iniciado, tenho 32 anos de idade e frequento o Candomblé desde os meus 11 anos, eu sabia três formas diferentes de enrolar esse acaçá. Há duas semanas eu aprendi uma quarta forma. Eu achei que eu sabia enrolar a acaçá e eu aprendi uma outra forma de fazer. E eu vou dizer que três dessas formas estão erradas, que só a que eu me identifico mais que está certa? Não é assim que funciona, respeitar o outro, principalmente a casa do outro, é muito importante, a gente trabalha isso no dia a dia, porque faz uma diferença gigante.

Já aconteceu, com a tradição de se beijar a mão. Segundo alguns relatos essa tradição não vem diretamente da cultura africana, ela é uma herança do período da escravidão, quando o negro tinha que beijar o anel do padre. Então a gente pegou essa coisa de trocar a benção, beijando a mão. Há algumas casas, que por conta disso, aboliram essa prática de beijar a mão, mas eu acho uma prática, interessante, é um carinho, a gente demonstra um carinho, o respeito pelo outro pessoa. E aí, há alguns sacerdotes, com muitos anos de iniciados, que não trocam essa benção. É uma decisão que eles tomam, então você beija a mão do sacerdote, e fica por isso mesmo. Eu não sou a favor dessa prática, mas como eu falei, cada um faz, na forma que aprendeu e são pessoas que estão muito velhos de santo, a gente respeita.

A minha Orixá, por exemplo, ela tem 62 anos de iniciada. É muito tempo dedicado ao sagrado, é muito tempo dedicado a Orixá. A gente respeita esse tempo que ela tem. Ela foi na minha casa, esse tempo atrás, e se juntássemos todas as pessoas da casa, contássemos os tempos de iniciado dessas pessoas da casa, não dava o tempo dela. Então, provavelmente ela ouviu coisas que eu não ouvi.

Certa vez eu participei de uma festa onde beijar a mão do outro não era uma prática da mãe de santo, a pessoa só beijava a dela, pedia a benção e ficava isso mesmo. É como fazíamos com nossos avós, nossas bisavós, você iria lá e pedia benção. Não pedia a benção para você, é você que pedia a ele. E essa mãe de santo tinha essa prática. Um irmão de santo meu, novo na religião, foi trocar a benção com ela. Quando ela beijou a mão dele, ele fez assim. [fez um gesto ofertando a mão] para oferecer para beijar, ela pegou a mão dele abaixou. Na frente de todo mundo que estava. Ele ficou muito envergonhado com isso. Mas por que isso? Porque ele não tinha esse conhecimento. Ele não sabia dessa prática, né? Ele não tinha sido preparado, avisado para essa situação.

Então, é justamente essa ideia, no livro também eu falo sobre isso. Preste a atenção às práticas as casas dos outros. Entenda que enquanto você estiver na casa do outro, não chega se oferecendo, não chega entrando. Observe como se faz. Principalmente, observe seus iguais.

Nós temos cargos no Candomblé. Nós temos o Abian, que é a pessoa recém iniciada, temos o Ebomim, que é a pessoa que tem mais de sete anos de iniciada, temos os Orixás, e temos vários outros cargos auxiliares de Babalorixás. Se temos dois iniciados numa mesa e estão conversando, é a mesma coisa que acontecia com nossas avós lá atrás. Você ficava perto de seu avô e sua avó quando eles estavam conversando com a visita? A minha mãe não deixava. A minha mãe só fazia assim. [olhava] E eu era o atrevido. Eu era aquela pessoa que queria sentar-se na mesa e participar da conversa. Até que uma vez ela deu uma baixa tão grande. Se tem duas pessoas mais velhas conversando, às vezes estão conversando sobre coisas que só dizem respeito aos mais velhos. Segredos. Trocam informações, uma reza, uma cantiga… Nossa cultura é oral. Então, a gente aprende muito conversando.

 Ontem eu estava me organizando no computador, com minha irmã, em um projeto que a gente está montando, e a minha irmã de santo ligou, Eduardo, tem um Ebó que é muito bom anota aí que você pode fazer. Essa troca de informações de conhecimento acontece muito. Então, para que o mais novo chegue e se sente, tem que ser convidado. Tem que ser convidado a sentar, ah fulano senta aqui comigo. Olha aqui, vamos conversar aqui.

A forma como os nossos antepassados, antes se tratavam, ainda é mantido muito no Candomblé. Então, você tem que ser convidado a participar de uma conversa entre os mais velhos. Já aconteceu de uma pessoa chegar enquanto duas mães de santos muito antigas conversando, a pessoa chega e se senta. As vezes a pessoa não é da religião, e não entende e aí as mães de santa ficam quietas, param de conversar, param de falar. São coisas que são simples. Às vezes, as coisas mais simples tem uma regrinha de conduta que você deve se atentar. Pedir certas informações,

Uma casa tem diversos fundamentos, diversos segredos. Orixás que cuidam de algumas situações. E aí a pessoa chega e pergunta o que que é isso? O que que é aquilo? Para que se usa isso aqui? São perguntas que não se faz. O dono da casa, se se sentir confortável para falar, vai te falar.

Vamos o supor que a senhora vai visitar a minha casa, a senhora não é da religião, então eu vou falar. Esse aqui é Orixá de Exú, esse aqui é Orixá de Ogum, Orixá de Exú é o Orixá do movimento, Ogum é da tecnologia, Ogum, antes do ser um grande guerreiro, era o Orixá da agricultura. A gente não pergunta, espera pessoas falarem. Em uma determinada conversa você vai me dizer, que não é da tradição. Então, eu vou falar. Eu vou falar, olha isso aqui, isso aqui, isso aqui. Mas tem segredos que são da comunidade, tem coisas ali que são da comunidade. Ah, mas como que monta, Orixá? Como que faz isso? Como que faz aquilo? São coisas que pertencem a quem é da tradição.

Eu estava numa reunião uns tempos atrás, e eu vi uma proposta, que não tinha entendido por que eu cheguei na metade da reunião. Mas, me soou de que para combater intolerância, nós poderíamos fazer nossos rituais sem a atabaque. Eu peguei a coisa já andando e eu falei para a pessoa, toma cuidado com essa proposta, porque é assim tem pessoas mais velhas, que eu já ouvi quase fazer um barraco por causa uma recomendação como é essa.

O atabaque para a gente é o Orixá. O atabaque para a gente é um instrumento sagrado. Tanto é que, da mesma forma que um iniciado, passa por obrigações, passa por diversos rituais, seu atabaque também passa. Então, é muito importante a utilização deles no culto africano. Depois, que a pessoa foi me explicar, eu pensei estou te dando um toque, porque eu gosto de você e não quero que você leve bronca na frente dos outros. Mas a pessoa precisou me explicar a ideia, que era fazer um teste, fazer uma gira sem o atabaque para ver se teria reclamação, se mesmo sem ataque seriam criticados. Ela queria provar que não era o barulho do atabaque que incomodava, era o culto. Aí eu falei, gostei da ideia, entendi melhor a ideia, mas eu já vi com uma pessoa propor isso. Numa reunião, uma pessoa que não era da tradição propôs isso, e uma mãe santo lá, um pouco mais rígida, lançou um “Mas quem você pensa que é, para dar uma sugestão como essa?”. E assim, na frente de todo mundo, e eu disse como eu gosto de você, fui dar esse toque. Ela me explicou melhor. Então, assim, é preciso conhecer e tomar cuidado com algumas informações do culto.

ContemporartesEntão, essa questão da Educação do Axé é justamente para orientar. Quem está dentro, quem está entrando e quem não é da religião e está só visitando?

Babalorixá Eduardo – Exatamente, eu cheguei, estou na religião. Estou frequentando. Aí você vê lá, 300 páginas para você ler para ver o que você tem que fazer. E tudo mais, não. Vou para o Candomblé hoje. Vestimentas, está aqui. O que pode, e o que pode. Vou na casa de não sei quem. O que é? O que eu tenho que fazer? Ah, saudação. Como eu tenho que saudar? Uma coisa bem simples. Branco. Roupa branca. Você nunca vai errar se você for de roupa branca. Nunca.

Ah, mas eu vou numa gira de Exú. Gira de Exú é que geralmente tem casa de Candomblé e também de acontecer em casa que cultua a Umbanda, pode acontecer. E eu vou de branco. De branco você não vai errar. Agora, por exemplo, eu já vi acontecer com adeptos da religião numa Festa de Oxalá. O Oxalá é conhecido no Candomblé como o rei do branco. Tudo de Oxalá é branco, tudo. A pessoa que é de Oxalá não pode usar preto, ele não pode usar vermelho para o resto da vida. E eu fui ao Candomblé uma vez, Festa do Oxalá, chegaram alguns adeptos, um estava de laranja e um estava de roxo, que não combina com aquele momento. Se fosse qualquer outra festa, de qualquer outro Orixá, tudo bem. Mas com o Oxalá, tem que ser tudo branco. Então, se eu vou visitar a sua casa e eu sei que a pessoa é de Oxalá, eu, automaticamente tenho que saber que a vestimenta é branca. Só que a pessoa que não é da religião não sabe disso. Quem não está na tradição não sabe disso, como vai saber?

Já aconteceu, de estar visitando alguém, e ser chamado para ir ao Candomblé. Vamos, vamos levando. Porque é assim, a pessoa vai na sua casa, chama um amigo, para conhecer, e tudo mais, e a gente vai se recebendo. Aí eu chego na sua casa, percebo que é Festa de Oxalá. E eu estou de preto, ou estou de vermelho. Se eu sou o adepto da religião, eu me retiro. Olha não posso ficar, vou deixar para lá, esperar vocês lá fora. Porque eu sou da religião, e eu preciso ter essa noção de que não é o correto ficar ali, é um desrespeito. É um desrespeito.

Quando isso aconteceu, as duas pessoas viraram o comentário da festa. Porque elas ficaram, quiserem participar ativamente. Isso demonstra uma falta de conhecimento ou uma falta de respeito, o que seria um problema. As duas coisas seriam um problema, mas a falta de respeito, mas eu eu vejo, como eu sou muito ligado a questão do respeito, para mim pesaria mais. Então, se eu cheguei lá, eu presenciei isso, eu me retiro. Eu falei assim, olha, eu vou precisar passar em casa, trocar de roupa, vai, troca de roupa e volta.

Então, o que eu falo, de branco você nunca erra. Use uma roupa branca ou a mais clara que tiver. Nunca vai dar errado. Então, essas informações de detalhes é que são importantes, e as pessoas não têm.

Eu fui a uma festa, esse final de semana, tinha uma menina de vestido preto, na hora que eu vi, eu olhei, pensei que falta de respeito Então, assim, não se usa isso, não se usa roupa preta e vermelha para ir a uma casa de Candomblé, ainda mais visitando. A mulher, por exemplo, se é do Candomblé, e vai visitar uma casa, no mínimo, no mínimo, pano da costa, pano de cabeça.

ContemporartesComo é um pano de costa?

Babalorixá Eduardo – Um pano de costa é um pano que se enrola na altura dos seios, você passa e prende do lado. E o pano de cabeça. É um mínimo. À não ser que a mãe de santo seja muito sua amiga, e seja uma visita informal. E se sou homem e vou numa casa de Candomblé, se eu vou visitar não a pessoa da mãe de Santo, mas eu estou indo visitar o terreiro dela, o mínimo que eu tenho que ir a de camisa e calça. Não estou visitando, não estou indo na praia, estou indo visitar um tempo religioso, um templo sagrado. Então, eu tenho de demonstrar esse respeito pela pessoa. Na casa dos outros, você tem que demonstrar essa educação a esse respeito pela pessoa. Então, isso faz uma diferença grande. Grande mesmo, mas talvez a pessoa não queira te receber. A pessoa não sinta confortável para convidar. É, é muito importante.

Ilustração 4 – Babalorixá Dr. hc Eduardo de Xango e Cecília de Oliveira Prado na porta do Laboratório Memória dos Paladares trocando produções literárias. Acervo pessoal da autora. 

ContemporartesNão fui criada em religião de matriz africana e aprendi muito com essa conversa e certamente vou ler o seu livro para aprender essas noções básicas. Gostaria demais de agradecer seu empenho em auxiliar adeptos iniciantes, iniciados e visitantes a se portar em ambientes sagrados e pedir uma benção para o nosso Laboratório Memória dos Paladares.

Babalorixá Eduardo – Tem uma reza que a gente faz, ela fala sobre nossos ancestrais [entoou a reza] a gente fala que esse é o hino do Candomblé ele significa que a única coisa que nós queremos é cultuar a nossa ancestralidade, os nossos Orixás, honrar nossos ancestrais em paz. Só isso, cultuar a nossa ancestralidade em paz. E que tudo dê certo para vocês aqui, que Exú traga um movimento que vocês precisam, que traga as prosperidades que vocês precisam, que ele permita a vocês continuarem nessa local, nesse momento, nesse espaço, e cada vez crescendo mais, crescendo mais.

ContemporartesMuito obrigado, foi um prazer imenso conversar com você.

Babalorixá Eduardo – Igualmente, precisando, estou aí.


[1] Doutora em Ensino e História das Ciências e da Matemática /UFABC. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Educação em Direitos Humanos /UFABC. Professora formadora da Pós-graduação do curso de Educação em Direitos Humanos/UFABC. Possui graduação em Pedagogia pelo Instituto Metodista de Ensino Superior (1987), mestrado em Educação: História e Filosofia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1996) e especialização em Gestão Educacional pela Fundação de Apoio à Faculdade de Educação da USP, FAFE/SP. E-mail:cecilia.prado@ufabc.edu.br .

[2] Professora associada do Bacharelado de Ciências e Humanidades e de Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC. Pós-doutorada pelo Departamento de Sociologia do IFCH da Unicamp. Doutora em História Social pela USP. Graduada em História / Universidade de São Paulo, Graduação em Jornalismo /Universidade Metodista de São Paulo e Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo. Coordenou a Pós-graduação Lato sensu Educação em Direitos Humanos (EDH-UFABC). Coordena a Rede Africanidades/ UFABC, curso de formação continuada de professores, redes virtuais e fomento de ações culturais de empoderamento da cultura e ciência negra. E-mail: ana.dietrich@ufabc.edu.br


[1] O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior –Brasil (CAPES) –Código de Financiamento 001

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