Colônia Tereza Cristina (Théresèville): Ecos do Socialismo Utópico no Paraná

“Espero que nesta terra, onde a ambição se cala, o verdadeiro homem renasça na generosidade e na comunhão dos corações.” (Atribuído a Jean-Maurice Faivre em carta aos colonos, 1854)

No sertão verde e ondulado do interior paranaense, onde o rio Ivaí serpenteia como quem sonha, fincou raízes uma das experiências mais singulares da história do Brasil oitocentista: a Colônia Thereza Cristina (também mencionada como Teresèville). Seu nome evoca a imperatriz consorte do Brasil, mas sua alma nasceu nas montanhas do Jura, na França, de onde partiu o médico visionário Jean-Maurice Faivre, guiado por ideais humanistas e por uma dor profunda que desejava transmutar em criação coletiva. Embora efêmera, foi uma fascinante experiência de imigração francesa e um laboratório de socialismo utópico no interior do Paraná, situada hoje entre os distritos de Tereza Cristina e Prudentópolis, no município de Cândido de Abreu.

Tríplice fronteira dos municípios de C. de Abreu, Turvo, e Prudentópolis, encontro com o rio Ivaí. Fonte: OLIVEIRA, 2023.

Em 1846, o médico francês Jean-Maurice Faivre, inspirado por correntes utópicas de Charles Fourier, Saint-Simon, Robert Owen, no positivismo de Auguste Comte e no cristianismo primitivo, vendeu suas posses, recrutou cerca de 63 franceses em Antuérpia (Bélgica) e desembarcou em Antonina, no Paraná em fevereiro de 1847. De lá, enfrentaram – a pé e a cavalo – mais de 300 km pela Serra do Mar até as margens do rio Ivaí, onde fundaram a colônia com apoio simbólico da imperatriz Thereza Cristina.

Falanstério, proposto por Charles Fourier (1772-1837). Fonte: https://www.posterazzi.com/

O Falanstério, tal como idealizado pelo filósofo francês Charles Fourier, eram grandes construções comunais que refletiriam uma organização harmônica e descentralizada onde cada um trabalharia de acordo com suas paixões e vocações. Localizada fora da área urbana essa edificação seria dividida por funções, deixando as mais tranquilas no centro, uma ala para as oficinas ruidosas e outra ala para abrigar a hospedaria, além das funções comuns. Jardins fariam a ligação entre o centro e as alas, formando uma barreira para a vista do campo.

Baseados nessas ideias, os colonos implantaram o que seria um “falanstério tropical”: moradias de tijolos e telhas, trabalho cooperativo, e lavouras diversas: café, milho, trigo, algodão, baunilha, mandioca e cana‑de‑açúcar. O principal objetivo era cultivar a subsistência em comunidade, sem busca de lucro, praticando valores sociais e religiosos. Além de casas de tijolos, havia escola, enfermaria e até rudimentos de autogestão. A terra era distribuída por mérito e necessidade, mas sem direito à propriedade privada.

O modelo excluía a escravidão que era terminantemente proibida, e os escravos que chegassem eram automaticamente livres, 40 anos antes da Lei Áurea. Esta postura fez da colônia um dos primeiros territórios abolicionistas do país. Além dos franceses, brasileiros de diferentes origens foram integrados, compondo uma comunidade heterogênea e viva.

Festa na Colônia Tereza, década de 1950. Fonte: https://www.gazetadopovo.com.br/

Por volta de 1866, existiam cerca de 444 habitantes, entre franceses e brasileiros. Após a morte de Faivre em 1858, a colônia entrou em declínio. Outros fatores contribuíram para a falência do projeto: a Lei de Terras de 1850, mudanças na política de povoamento, abandono da estrada comercial com Guarapuava e pressão do latifúndio. Formalmente, a comunidade durou cerca de 11 anos , mas encerrou em definitivo suas atividades no final do século XIX.

A Colônia Tereza Cristina foi uma audaciosa semente plantada no cerrado paranaense por utopistas, consensualizando ideais franceses e brasileiros em um canavial de esperança. A vila agrícola floresceu por mais de uma década, deixando raízes no cooperativismo histórico nacional e encorajando a preservação da memória comunitária. Não apenas uma tentativa de ensaiar o socialismo rural no Brasil, foi também a manifestação de uma pedagogia social profundamente humanista, onde o trabalho era mediação de vida, não de lucro. Onde a terra era extensão da dignidade, e não da posse.

Retrato de Jean-Maurice Faivre – Fonte: https://www.anm.org.br/jean-maurice-faivre/

Sobre Jean-Maurice Faivre:

Origens e formação

  • Nascimento: 21 de setembro de 1795, em Combe Raillard, Jura, França.
  • Educação: Formou-se em Medicina pela Faculdade de Paris, especializado em ciências naturais, num ambiente pós-Revolução Francesa, permeado pelas ideias revolucionárias de liberdade, igualdade e fraternidade.

Chegada ao Brasil e trajetória na Corte

  • Chegada em 1826: Estabeleceu-se no Rio de Janeiro, onde integrou o Hospital Militar da Corte, ganhando rapidamente prestígio.
  • Faculdades médicas: Em junho de 1829, foi um dos fundadores da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro (hoje Academia Nacional de Medicina)
  • Médico da nobreza: Tornou-se médico de confiança da Imperatriz Tereza Cristina, do imperador Dom Pedro II e de figuras como José Bonifácio. Foi condecorado com as ordens da Rosa e de Cristo.

Tragédia pessoal e redirecionamento

  • Casou-se com Anne Taulois em 1840, prima do naturalista Gustave Rumbelsperger. Em 1841 morreu sua filha Marie recém-nascida, e 44 dias depois sua esposa, eventos que marcaram transformações profundas em Faivre.
  • Em busca de sentido e consolo, viajou pelas províncias brasileiras, inclusive explorando águas termais em Goiás para estudos sobre cura da lepra.

Liderança, fim e legado

  • Faivre tornou-se o diretor moral, médico e financeiro da colônia que começou a decair após sua morte em 30 de agosto de 1858, vítima de malária. O sepultamento ocorreu conforme seu desejo: junto a uma fonte sob árvore frondosa.
  • Gustave Rumbelsperger assumiu a liderança até cerca de 1870, mas a utopia definhou, muitas famílias saíram e a colônia terminou definitivamente em 1892.

Influência cultural e historiográfica

  • A experiência é considerada o primeiro experimento de cooperativismo rural do Brasil, marco de socialismo utópico nacional.
  • Pesquisa acadêmica: como a dissertação de Roberto Aparecido de Oliveira (Unespar) e o livro “Saga da Esperança” (Josué Correa Fernandes, 2006), que analisam o projeto em detalhes e profundidade.
  • A história inspirou o romance “Retrato no Entardecer de Agosto” (Luiz Manfredini, 2016).

Jean-Maurice Faivre foi uma síntese da transição entre ciência, espiritualidade e ideais comunitários, de médico da corte à sementeira de um novo mundo em meio à selva. Sua biografia é, sobretudo, uma odisseia humana: o médico que, diante da dor, transformou o luto em construção de uma colônia igualitária; o francês que plantou no Paraná uma utopia que germinou ideias de liberdade, cooperação e dignidade, antes mesmo de serem consolidadas como leis no país.

Um convite à memória ativa

Hoje, o distrito de Tereza Cristina, no município de Cândido de Abreu, guarda ruínas, nomes e histórias. Mas falta ainda reconhecimento amplo – patrimonial, educacional e cultural – do que ali se construiu. A Colônia Tereza Cristina poderia figurar entre os grandes capítulos do cooperativismo latino-americano, da luta antiescravagista, da história da medicina humanista e da educação emancipadora.

Ruínas de muro, resquício da Colônia Tereza Cristina. Fonte: httpsjornal.paranacentro.com.br/

O sonho de Faivre, como o de Fourier, é daqueles que mesmo desfeitos, deixam marcas no solo e no imaginário. Seu gesto fundador reaparece em iniciativas posteriores no Brasil e nas Américas, como nas colônias anarquistas e nos projetos comunitários do século XX. Revisitar essa história não é apenas um gesto de arqueologia social, é acender na paisagem brasileira do presente, o lume de uma utopia concreta: aquela que Faivre, com mãos de médico e alma de filósofo ousou plantar em terras distantes, como quem planta esperança em pleno sertão.

Vista de Tereza Cristina com a balsa, na atualidade. Fonte: OLIVEIRA, 2023

Referências:

FAIVRE, Jean Maurice. Registro na Academia Nacional de Medicina. Disponível em: https://www.anm.org.br/jean-maurice-faivre. Acesso em: 13 jul. 2025.

GAZETA DO POVO. Uma utopia socialista à beira do Ivaí. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/uma-utopia-socialista-a-beira-do-ivai. Acesso em: 13 jul. 2025.

OLIVEIRA, Roberto Aparecido. De Colônia Thereza à Freguesia de Therezina (1847-1871): a história de uma colônia às margens do Rio Ivaí na perspectiva da História Pública, 2023. Mestrado em História Pública – Universidade Estadual do Paraná, Campo Mourão, 2023.

SUCHECKI, Tiago André. A trajetória de Jean Maurice Faivre (1795–1858) e as representações da Colônia agrícola Thereza Cristina, sertões do Paraná. 2022. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual de Ponta Grossa, Programa de Pós‑Graduação em História, Ponta Grossa, 2022.

Izabel Liviski (Bel), professora e fotógrafa. Doutora em Sociologia pela UFPR. É coeditora da Revista ContemporArtes onde escreve a Coluna INcontros desde 2009, é também Editora do TAK! Agenda Cultural Polônia Brasil, em Curitiba/PR.

Contato: bel.photographia@gmail.com

2 comentários em “Colônia Tereza Cristina (Théresèville): Ecos do Socialismo Utópico no Paraná

  1. Enquanto continuar esta página complicada do WordExpress tenho que cumprimentar por aqui: Parabéns pela excelente oportunidade de recordar uma das mais belas páginas de nossa história.

    E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música. Friedrich Nietzsche PUCCI.’.

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