Gravuras de Paul Garfunkel na Aliança Francesa de Curitiba

“O flâneur é aquele que vai ao mercado como poeta.” (Livre adaptação de Walter Benjamin, 1994)

Na data nacional francesa, 14 de julho, alusão à queda da Bastilha em 1789, a Aliança Francesa de Curitiba abriu a mostra de 40 gravuras e aquarelas de Paul Garfunkel (1900-1981), muitas delas raras, extraídas dos álbuns de viagem ilustrados e de cadernos inéditos, obras que lhe garantiram o apelido de “o Debret do século XX”. Além das gravuras de Paul, há também uma mostra paralela de Karlos Rischbieter no Café Louis Philippe, bem como homenagens a Madame Hélène Garfunkel, referência da cultura franco-curitibana.

“Ao longo do Cais” (Santos/SP, 1958)

Em tempos de ruído e saturação visual, a exposição de gravuras de Garfunkel, nos propõe um retorno ao essencial: ver, registrar, escutar. Suas obras são cartografias do olhar paciente, um desenho que sussurra. Entre ruas e personagens, revela-se um mundo observado com afeto e precisão. Cada gravura é uma pausa… um convite à contemplação. Ao transitar por seus desenhos, o visitante percorre as ruas de um passado delicado, mas também se espelha nos gestos, expressões e arquiteturas que atravessam o tempo e ainda nos tocam, como se em cada traço repousasse a lembrança de uma humanidade comum.

“Loucuras de Carnaval” (Santos/SP, 1958)

Os textos manuscritos de Garfunkel como encontrados na série virtual “40 postais” são verdadeiros aforismos visuais que resgatam não apenas o lugar e o tempo, mas a afinação sensível de Garfunkel. Cada postal é legenda e figura, o gesto e a palavra em harmonia: a ponte entre ver e narrar. São notas breves que, mais do que explicar convidam o leitor a escutar o que o artista ouviu: o rumor de uma feira, o eco de um coreto, os sons do Carnaval. Esses fragmentos poéticos reforçam que para Garfunkel, desenhar é também nomear, uma forma de cuidado com o mundo visível.

“Namorados na Praça da República” (Rio de Janeiro/RJ, 1958)

Paul Garfunkel, atuou na primeira metade do século XX como um cronista silencioso das paisagens urbanas, dos gestos cotidianos e das relações humanas. Há em seu traço algo da escola francesa da delicadeza: o espírito de um Henri Rivière, a contenção de um Vuillard, a ternura de um Bonnard. Em Curitiba, sua obra se desdobra como um gesto de acolhimento à cidade que o recebeu, um gesto que vê antes de interpretar, que registra antes de intervir.

“As Lavadeiras” (Recife/PE, 1962)

Como Debret, que no século XIX percorreu o Brasil registrando seus costumes e personagens com atenção etnográfica e olhar pictórico, Garfunkel traçou uma cartografia visual de cidades brasileiras no século XX. Se em Debret vemos o Brasil imperial em formação, em Garfunkel vislumbramos as cidades modernas em transformação: suas ruas, feiras, bondes e fachadas. Ambos, à sua maneira, ofereceram não apenas imagens, mas narrativas gráficas de um tempo e de lugares do nosso país.

“Noturno” (Paranaguá/PR,1958)

Nesta mostra, as imagens expostas nos reconectam com a potência do traço manual e com a ética de um olhar dedicado às pequenas cenas do cotidiano. São registros de cidades brasileiras – Curitiba entre elas – captadas em sua vibração silenciosa e em sua materialidade sensível. Garfunkel nos entrega não apenas paisagens urbanas, mas modos de estar no mundo.

“Os Ipês de Curitiba” (Curitiba/PR, 1958)

Paul Garfunkel nasceu em Fontainebleau, na França, formou-se engenheiro pela prestigiada École Polytechnique e chegou ao Brasil nos anos 1920 com espírito de empreendimento. Mas foi outro tipo de construção que o consagrou: a do olhar. Desviou-se de seu métier original para dedicar-se a um ofício mais sutil, captar o cotidiano com precisão de traços e alma de flâneur.

“Esperando a Maré”, (Paranaguá/PR, 1958)

Instalado em Curitiba, a partir dos nos anos 1950 fez efetivamente do Brasil seu campo de observação poética. Publicou dois álbuns raros, Images du Brésil (1958) e Nouvelles Images du Brésil (1962), impressos em técnicas diversas como litografia, serigrafia, aquarela e grafite. As cenas que registrou – uma lavadeira, um vendedor, um coreto de praça – são reveladas com extrema elegância de composição. Como Debret, Garfunkel desenhou o social sem cristalizá-lo.

“São Paulo dos bondes estridentes” (São Paulo/SP, 1958)

Impossível não mencionar neste cenário, Hélène Garfunkel, presença intelectual e afetiva na história da Aliança Francesa e da vida cultural curitibana. Ao lado de Paul, ela construiu um espaço onde arte, educação e acolhimento se entrelaçaram. A exposição homenageia também sua trajetória essencial, um legado de mediação cultural e criação de pontes simbólicas entre mundos.

“Há 300 anos” (São Luiz/MA, 1962)

Entre os muitos modos de se caminhar por uma cidade, poucos são tão silenciosamente potentes quanto o do artista que observa com demora. Garfunkel percorreu o Brasil como quem coleciona instantes à margem: entre feiras, ruas, lavadeiras, operários, músicos e pessoas comuns. Sua atitude se aproxima daquela figura que Walter Benjamin descreveu no século XIX, o flâneur, que “vai ao mercado como poeta”. Não é o olhar superficial do turista, mas é o olhar que perscruta a realidade para ir além, do artista que recolhe fragmentos de mundo como quem decanta sentidos no papel.

“Torres d’água e velhas marquises” (Belém/PA, 1962)

Há algo profundamente atual na obra de Garfunkel, embora suas imagens pertençam a um Brasil de outras décadas. Talvez porque ele tenha desenhado não apenas o visível, mas o que vibra por baixo da superfície. Para apreciar convenientemente, essas gravuras exigem lentidão, quase silêncio. Em seu trabalho reunido na exposição da Aliança Francesa, não há o heroísmo das grandes narrativas. Há antes o apreço pelo que se move à margem: gestos, expressões, momentos de pausa.

“O Bebedouro” (Curitiba/PR, 1958)

Ao caminhar pelos painéis, o visitante reencontra um Brasil cotidiano, e é justamente aí que o extraordinário se manifesta. Esse Brasil filtrado pelo olhar estrangeiro nos devolve outra imagem de nós mesmos. Como escreveu Adalice Araújo: “o que nos emociona são as manchas rápidas, em que nos transmite a impressão primeira das coisas.” E é essa primeira impressão: luminosa, imperfeita, viva, que a exposição nos oferece como presente.

“Recife pousada sobre as marés”, (Recife/PE, 1962)

Nesta mostra, as imagens expostas nos reconectam com a potência do traço manual e com a ética de um olhar devotado às pequenas cenas do cotidiano. Cada gravura é uma pausa… um convite à contemplação e à escuta. Ao transitar por seus desenhos, o visitante percorre as ruas de um passado delicado, mas também se espelha nos gestos, expressões e arquiteturas que atravessam o tempo e ainda nos tocam, como quem reconhece no outro a memória de si.

“Paisagem da França” (Manaus/AM, 1962)

“O rio corre tranquilo entre prados férteis. Canaranas aveludadas orlam as margens. Enormes nenúfares flutuam sobre as águas. Vacas de pelo reluzente ruminam à sombra das árvores, e por vezes a brisa nos traz um odor sadio e vigoroso de estábulo e de estrume. Picardia, Normandia?… Não, nada disso! estamos no Careiro, ou mais exatamente, no Paraná do Careiro, um braço do Amazonas (…)

Fonte: https://paulgarfunkel.46graus.com/40-postais

Referências:

ARAÚJO, Adalice. Impressões primeiras: a poética do olhar em Paul Garfunkel. Revista de Artes Visuais, Curitiba, v. 12, n. 3, p. 45-57, 2024.

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas, v. 1).

BARDI, Mário. Paul Garfunkel: o Debret do século XX. São Paulo: Editora Cultura Brasileira, 2019.

LERNER, Jaime. Memórias urbanas: a Curitiba que Garfunkel viu. Curitiba: Instituto Jaime Lerner, 2022.

BIBLIOCANTO. Paul Garfunkel e a paisagem urbana. Disponível em: https://www.bibliocanto.com/post/bibliocanto-volume-xviii. Acesso em: 15 jul. 2025.

Serviço:

Exposição Paul Garfunkel | Exposição Karlos Rischbieter

Abertura: 14 de julho de 2025. Permanece aberta à visitação.

Local: Aliança Francesa de Curitiba. Rua Prudente de Moraes, 1101 – Curitiba/PR.

Izabel Liviski (Bel) – Professora e Fotojornalista, é doutora em Sociologia pela UFPR. Articulista e coeditora da Revista ContemporArtes desde 2009, é também editora do TAK! Agenda Cultural Polônia Brasil.

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