ROLANDO O LERO
Enquanto esperava a chamada para seu voo, ela viajava na leitura de um dos vários livros que escolhera, companheiros na longa travessia, viagens dentro da viagem. E logo, uma escala forçada. Então, do nada:
– Desculpe, mas esse é um livro de magia?
Ela nem tinha notado que o moço, um executivo cuspido e escarrado, tinha sentado na cadeira ao lado.
– É literatura, romance. Me enfeitiça. Você gosta?
– Depende, respondeu ele. Só leio clássicos.
– Este é um clássico, disse ela: “Memórias de Adriano”.
– Que Adriano?
– Adriano, o imperador.
– Todo jogador de futebol é um poeta quando está calado.
Ela o olhou, perplexa. Talvez ele estivesse brincando. Decidiu entrar no jogo:
– Nesse livro ele conta tudo sobre seu caso com a Marguerite Yourcenar.
– Sério? Aí, sim! Começo a me interessar por livros de memórias! Desde que sejam quentes! E clássicos, é claro!
Ela jogou mais uma isca para testá-lo:
– Então você precisa ler o “Memórias Póstumas de Brás Cubas”!
– Você vai me desculpar, mas bloqueio tudo que tem Cuba no meio.
Ele parecia falar sério. Então ela arriscou mais uma, para tirar a prova:
– Mas esse é um pornô clássico, anterior à revolução cubana, obra-prima da prosa sensual de Eça de Queiroz.
Ele ficou pensativo por um instante. Depois disse:
– Eça é a mulher do Queiroz, o amigo do mito?
Ela sentiu firmeza em continuar:
– A própria! Ela também escreveu “Memórias de Um Sargento de Milícias”, uma versão sexy do episódio das rachadinhas.
– Caramba! Esse tem tudo do meu gosto!
– Vejo que você é mesmo um apurado leitor de clássicos, disse ela.
E ele, com uma piscadela:
– Você é boa observadora! Muito boa! Será que vamos viajar juntos?
– Estou indo pra Pequim, respondeu ela.
– Não chega ler o Brás de Cuba? Precisa ainda ir pra Rússia?
– Pequim fica na China.
– Cuba, Rússia, China, tudo comunista, farinha do mesmo saco!
Nisso soou a chamada pro voo de Pequim. Ela se levantou e disse ao jovem leitor dos clássicos:
– Vou lhe trazer um livro da literatura chinesa tradicional.
– Agora você falou a minha língua: tradição, família e propriedade!
– De preferência com pitadas de sacanagens, né?
– Recheado de sacanagem, de preferência…
– Pode escolher seu clássico chinês preferido, disse ela.
– Dostoievski, disse ele sem piscar.
Ela recebeu o cartão que ele lhe estendia, segurando o riso. A caminho do portão de embarque, o que lhe veio à memória não foi um epigrama oriental, mas o refrão de um samba de Billy Blanco: “O que dá pra rir, dá pra chorar”.
Afonso Guerra-Baião
