IMIGRAÇÃO E SAÚDE REGIÃO CENTRAL NO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO: AS CONDIÇÕES DE SAÚDE E AMBIENTE DE TRABALHO/ MORADIA DOS IMIGRANTES BOLIVIANOS ATENDIDOS NA UBS BOM RETIRO

Maria da Penha Silva Gomes1

Resumo: O presente trabalho apresenta dados da pesquisa realizada com profissionais do serviço de saúde sobre como teve início o acesso da população imigrante boliviana no serviço de saúde, na Unidade Básica de Saúde Bom Retiro “Dr. Octávio Augusto Rodovalho”, na cidade de São Paulo. Nessa pesquisa, realizada no primeiro semestre deste ano, foram relatadas algumas situações precárias do ambiente doméstico/ profissional em que vivem essa população, principalmente sobre o ambiente insalubre e pouco arejado propício ao desenvolvimento de doenças respiratórias, sobretudo a desenvolvimento a tuberculose.

Palavras-Chaves: Saúde, Ambiente, Vulnerabilidade, Tuberculose, Território.

1. Introdução

Nas duas últimas décadas, a questão da imigração tem sido bastante debatida por professores, pesquisadores, estudantes e gestores públicos. Os pesquisadores discutem diferentes temas, dentre os quais a imigração e saúde – assunto de interesse desta pesquisa. Entretanto, a maioria dos estudos, pesquisas e trabalhos desenvolvidos aborda a imigração e o trabalho, especificamente a situação dos imigrantes sob o regime de trabalho análogo ao escravo. Há poucas pesquisas e trabalhos no contexto da imigração, saúde e ambiente. Desse modo, faz-se necessário ampliar a realização de pesquisas, estudos e trabalhos no âmbito da saúde.

Desde meados do século XX, a cidade de São Paulo é caracterizada como metrópole que concentra grande parte da população imigrante do país. Esse fato teve início no último quartil do século XIX, ocasião em que governantes da Primeira República instituíram medidas políticas, econômicas e sociais bastante significativas. Tanto que a cidade desenvolveu-se rapidamente, em infraestrutura urbana e em densidade populacional, sobretudo nos bairros da região central paulistana (COELHO JR., 2010; REIS, 1994).

Uma das medidas adotadas pelos governantes republicanos foi estimular a imigração da população europeia, especialmente os italianos. Nesse caso, os italianos chamavam a atenção dos novos republicanos porque a mão de obra “especializada” interessava especialmente para a substituição da mão de obra escrava (REIS, 1994; MACHADO, 2010). No início do século XX, vieram os imigrantes judeus, inicialmente da Alsácia e, depois, nas primeiras três décadas, os da Rússia e Polônia. Desde o início de sua criação, o bairro do Bom Retiro é conhecido como região onde residem e trabalham imigrantes (MANGILI, 2009), características mantidas até os dias atuais. É nesse contexto que, nas últimas duas décadas, os imigrantes do continente sul-americano passaram a fixar-se na região, frequentemente morando e trabalhando no mesmo local (oficinas de costura), dentre os quais predominam os imigrantes bolivianos.

No âmbito da saúde e imigração, o presente trabalho apresenta o estudo realizado para registrar como teve início o acesso da população imigrante boliviana ao serviço de saúde, na Unidade Básica de Saúde Bom Retiro. Também investigou como teve início o atendimento das principais necessidades de saúde, quais foram as necessidades de saúde identificadas, bem como os desafios enfrentados para o atendimento dessa população boliviana e como foram solucionados tais desafios (BAENINGER, 2012; 2010; MANGILI, 2011).

2. Objetivos

Apresentar o panorama da história de como ocorreu o acesso dos imigrantes bolivianos ao serviço de saúde, como foram desencadeadas práticas de saúde voltadas para o atendimento desse grupo populacional e as condições de saúde e ambiente imediatamente identificadas dentro das oficinas de costura, pelos profissionais de saúde da UBS Bom Retiro “Dr. Octávio Augusto Rodovalho”, por meio do Programa Saúde da Família (atualmente Estratégia Saúde da Família) da Atenção Básica.

3. Metodologia

A pesquisa teve como objetivo identificar e registrar as práticas desenvolvidas na Atenção Básica do serviço de saúde, especificamente na Estratégia Saúde da Família, o que permitiu o acesso da população de imigrantes bolivianos a tais serviços. Concomitante ao acesso ao serviço, as equipes de saúde puderam acessar o ambiente das oficinas de costura, que também é o local de moradia e trabalho dessa população (SILVEIRA et al., 2009).

O levantamento bibliográfico contou com a revisão da literatura acadêmica, da participação em cursos, seminários e na preparação da I Conferência Municipal de Políticas para Imigrantes. Após a revisão da literatura existente sobre o tema e a partir de pesquisa bibliográfica desenvolvida junto a acervos de bibliotecas e universidades, buscamos referências bibliográficas e diferentes estudos sobre a imigração e o serviço de saúde na cidade de São Paulo.

O contato com os entrevistados se deu por sugestão de alguns participantes do Grupo de Processos Migratórios e Saúde: Perspectivas Interdisciplinares e do grupo Saúde e Sociedade2. Para as entrevistas, utilizamos um questionário semiestruturado para a coleta de dados, com um roteiro de seis perguntas abordando diretamente o assunto. Por ser um roteiro sugestivo, ao longo da entrevista foram introduzidas outras perguntas para sondagem e aprofundamento de determinados relatos. Essa estratégia ampliou para dez o número de perguntas, porém o teor colidiu com o eixo da entrevista, de modo que as respostas puderam ser incorporadas ao conjunto de perguntas. Entrevistamos alguns profissionais de saúde da UBS Bom Retiro e o responsável pela Supervisão de Saúde da Sé.

Optamos pelo método empírico indutivo. As entrevistas foram realizadas individualmente e registradas em MP4 e gravador digital. Em seguida, foram transcritas pela própria pesquisadora. Depois, a partir do roteiro das perguntas para cada entrevistado, elaborou-se um texto interpretativo para alinhar os relatos ao eixo de desenvolvimento da pesquisa, primando por preservar a percepção e explanação de cada entrevistado. A seguir, em cada pergunta, buscou-se identificar repetição de citações, apontamentos ou comentários comuns nos depoimentos. Esse conjunto de apontamentos foi transposto para uma planilha de Excel, o que facilitou o manuseio do arquivo de dados e permitiu melhor visualização das informações agrupadas. Assim, elaboramos as análises a partir das entrevistas individuais, agregamos o conjunto de respostas para, então, compor a síntese dos relatos, cuja sucessão será o capítulo de análise da pesquisa.

Grosso modo, o resultado prévio foi um panorama de como se deu o acesso da população imigrante boliviana ao serviço de saúde, na unidade de saúde. Captamos quais foram as principais necessidades identificadas, avanços e desafios encontrados pelos profissionais do serviço de saúde. E, também, as condições de saúde e o ambiente insalubre em que moram e trabalham, expostos e suscetíveis à proliferação de doenças respiratórias, principalmente a tuberculose.

Fonte: https://br.freepik.com/fotos-gratis/saude-natureza-morta-com-espaco-de-copia_12412885.htm

4. Resultados Parciais e Discussão

Os resultados e discussões parciais apresentam um contexto de bastante adversidade, enfrentada pelos profissionais para garantir o atendimento no serviço de saúde, ou seja, na Atenção Básica aos imigrantes. Efetivamente, o acesso ao serviço teve início a partir da gestão municipal no período de 2001-2004, ocasião em que foram implementadas políticas públicas para combater a exclusão social na cidade. Nesse contexto, desde então, o serviço de saúde adotou o Programa de Saúde da Família (antigo PSF) como estratégia para atendimento na Atenção Básica.

Foi nesse mesmo período que a municipalidade assumiu a gestão da UBS Bom Retiro. Até então, a unidade era gerenciada pela Secretaria de Saúde do Estado; porém, os funcionários optaram por permanecer na rede de saúde estadual. Com a ausência dos funcionários, não havia informações sobre o funcionamento da unidade, tampouco do perfil da população adstrita. Assim, o quadro adverso conformou-se em oportunidade para implementar o Programa Saúde da Família no atendimento da Atenção Básica da UBS Bom Retiro.

Para composição das equipes de saúde, foram contratados novos profissionais para a unidade de saúde: gestores, atendentes, médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, agentes comunitários de saúde etc. A gestão definiu como prioridade a contratação de Agentes Comunitários bolivianos, para dar celeridade ao atendimento ao grupo de imigrantes sul-americanos (principalmente os bolivianos). A gestão, embora não tivesse informações precisas sobre a população adstrita, conhecia a demanda dos imigrantes bolivianos na UBS e as dificuldades para acessar as oficinas de costura, onde residem e trabalham.

Algumas ações e estratégias adotadas pela gestão da UBS foram imprescindíveis para facilitar o acesso da população imigrante ao serviço de saúde – principalmente as desenvolvidas pelos profissionais das equipes de saúde do PSF. Destacam-se: a contratação de Agentes Comunitários bolivianos, que facilitou a entrada nas oficinas de costura, bem como a comunicação com os imigrantes; os projetos desenvolvidos dentro do ambiente das oficinas, como a ginástica laboral e as palestras sobre planejamento familiar; a difusão, por meio da rádio comunitária, sobre a finalidade das equipes de saúde do PSF; as ações mobilizadoras e de promoção de saúde em espaços públicos durante os encontros e comemorações da comunidade boliviana (Festa da Independência no Memorial da América Latina e Feira da Kantuta); a elaboração e produção de materiais informativos no idioma espanhol; e a iniciativa dos profissionais das equipes de saúde para aprender noções básicas do idioma espanhol.

Nesse contexto, os profissionais de saúde relataram que, ao conseguirem acessar as oficinas de costura, encontraram uma população vulnerável, em muitas situações. A começar pelo ambiente em que viviam: fechado, com janelas lacradas, sem circulação de ar, tornando o ambiente inóspito e insalubre. Essa população (ainda hoje) vive coletivamente, morando e trabalhando no mesmo ambiente. A mobilidade é bastante restrita, pois no cômodo maior são instaladas máquinas de costura com distância mínima entre os equipamentos. Assim, o trabalhador não consegue se mover nem se alongar, permanecendo imóvel durante jornadas de trabalho que chegam a 18 horas por dia.

Também o acesso à cozinha é restrito, sendo liberado apenas a partir da tarde dos sábados e domingos …o que desejarem e guardarem a comida em marmitas para consumo durante a semana. A alimentação geralmente é repetitiva, baseada em arroz, ovo, batata e frango. Os sanitários são coletivos e, em muitos casos, a limpeza é inadequada. As roupas são lavadas no mesmo local, utilizando a água que serve para outros fins, sem qualquer tipo de controle sanitário.

As oficinas, além de locais de trabalho, se tornaram também espaço de moradia, criando uma situação de extrema vulnerabilidade para os imigrantes bolivianos. Essa precariedade expõe os moradores a riscos diversos, principalmente doenças respiratórias como a tuberculose, conforme relatado pelos profissionais de saúde entrevistados. O contato direto com essa realidade permitiu a construção de estratégias mais eficazes de cuidado, respeitando as especificidades culturais e sociais dessa população.

Além disso, os profissionais de saúde destacaram que o acolhimento se tornou uma ferramenta essencial para garantir a confiança dos imigrantes bolivianos em relação ao serviço de saúde. A presença de Agentes Comunitários de Saúde bolivianos nas equipes foi uma estratégia fundamental nesse processo, pois além de falarem o mesmo idioma, compreendem os costumes e dinâmicas culturais desse grupo.

A formação continuada das equipes também foi mencionada como um fator de fortalecimento das ações voltadas para essa população. Cursos, rodas de conversa e parcerias com universidades foram instrumentos que proporcionaram a qualificação do atendimento. Os profissionais relataram que essas ações impactaram positivamente na identificação precoce de doenças e no acompanhamento mais efetivo dos casos.

Dessa forma, os relatos das entrevistas demonstram a importância da aproximação entre os serviços públicos de saúde e a população imigrante, considerando suas vulnerabilidades, mas também suas potências culturais. A experiência vivenciada na UBS Bom Retiro pode servir de modelo para outras regiões que enfrentam desafios semelhantes com populações em situação de vulnerabilidade social.

Considerações finais

As experiências relatadas pelos profissionais da UBS Bom Retiro revelam como o cuidado em saúde, quando pautado pela escuta ativa, pelo acolhimento e pelo reconhecimento das especificidades culturais, pode transformar realidades marcadas pela exclusão e vulnerabilidade social. A atuação das equipes de saúde junto à população imigrante boliviana demonstra que é possível construir práticas sensíveis às diferenças, que respeitam os modos de vida e promovem o acesso efetivo aos direitos básicos.

A presença de agentes comunitários de saúde bolivianos, a articulação intersetorial, o investimento em formação continuada e a escuta qualificada são estratégias fundamentais para a consolidação de uma política pública que dialogue com as necessidades concretas dessa população. Tais práticas devem ser valorizadas e disseminadas como referência para outras regiões e serviços que atendem comunidades em situação de vulnerabilidade.

Diante disso, este capítulo reafirma a importância de políticas públicas que considerem as múltiplas dimensões da saúde — biológica, social, cultural e política — e aponta para a necessidade de se ampliar o debate sobre os direitos das populações migrantes no Brasil, com foco na dignidade, na equidade e na justiça social.

Referências

BAENINGER, R. O Brasil na rota das migrações latino-americanas: imigração boliviana no Brasil. Campinas: Núcleo de Estudos de População – Nepo/Unicamp; Fapesp; CNPq; Unfpa, 2012. p. 10-18.

COELHO JUNIOR, M. N. Projeto de intervenção no Bairro da Luz: patrimônio e cultura urbana em São Paulo. 2004. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004.

LUPPI, C. G.; ANDRADE, M. A.; SIMÕES, O.; PINHO, V. P. Atenção primária à saúde/atenção básica. In: IBAÑEZ, N.; ELIAS, P. E. M.; SEIXAS, P. H. D’A. (org.). Política e gestão pública em saúde. São Paulo: Hucitec; Cealag, 2011. p. 332-353.

MACHADO, R. L. N. Arte-educação nos contextos de periferias urbanas: um desafio social. 2010. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010.

REIS, N. G. São Paulo e outras cidades: produção social e degradação dos espaços urbanos. São Paulo: Hucitec, 1994.

SEVERINO, A. J. Metodologia do trabalho científico. 23. ed. rev. e atual. São Paulo: Cortez, 2007.

SILVEIRA, C.; CARNEIRO JUNIOR, N.; MARSIGLIA, R. M. (org.). Projeto inclusão social urbana: nós do centro: metodologia de pesquisa e de ação para inclusão social de grupos em situação de vulnerabilidade no centro da cidade de São Paulo. São Paulo: Fundação Arnaldo Vieira de Carvalho; Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, 2009.

1Maria da Penha Silva Gomes, atualmente é doutoranda no Programa de Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC e pesquisadora da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), possui graduação em Ciências Sociais pelo Centro Universitário Fundação Santo André (1996), além de mestrado em Saúde Coletiva (2014) e especialização em Cidades, Planejamento Urbano e Participação Popular (2019), ambos pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Atuou como consultora sênior na área de educação para a SETEC Hidrobrasileira Obras e Projetos Ltda, avaliando os resultados do “Projeto RN Sustentável”, que analisou o impacto dos investimentos do Banco Mundial no estado do Rio Grande do Norte. Além disso, participou de projetos estratégicos em diferentes áreas, incluindo Políticas de Segurança Pública com apoio do Pnud, Educação sob a coordenação do Unicef e Desenvolvimento Local em parceria com a Unesco.

Possui ampla experiência como analista e docente na área de Ciência Política, com ênfase na avaliação de políticas públicas, atuando principalmente nos seguintes temas: educação básica e técnica profissional, habitação social, avaliação de projetos educacionais, planejamento urbano, urbanização social e segurança pública.


2 Nota de rodapé: Ambos os grupos de estudo desenvolvem atividades em Ciências da Saúde e Saúde Coletiva, vinculados à Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCMSCSP), no Departamento de Medicina Social. Nesses grupos participam profissionais de outras instituições de ensino e pesquisa (Instituto Butantan, Faculdade de Saúde Pública da USP, PUC-SP, Unifesp e outras).

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