REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO EM “MAGIC: THE GATHERING” E PROGRESSOS NA CULTURA DE JOGOS

Meggie Rosar Fornazari

Antes de mais nada, uma breve descrição do que é o Magic: um jogo de cards criado em 1993 pelo matemático Richard Garfield, com expansões lançadas cerca de 4 vezes por ano e mais de 17.000 cards únicos já criados. Seu pano de fundo é um Multiverso de mundos fantásticos e mágicos onde jogadores caminham por entre estes planos de existência e duelam contra dois ou mais jogadores utilizando cards de sua coleção (Fornazari, 2014). O jogo tem mais de 20 milhões de fãs no mundo todo e está disponível em 11 línguas.

Theros, um bloco narrativo de 3 expansões fortemente inspirado na Grécia Antiga lançado em setembro de 2013, foi o primeiro momento onde personagens queer foram textualmente mencionados dentro dos cards. A Figura 1 abaixo mostra os cards Ashiok, Tecedor de Pesadelos (primeiro personagem agênero do Magic), e Yahenni, Guerrilheiro Imortal (um dos etergênitos, uma raça inteira de personagens agênero lançada posteriormente). Pode-se dizer que há mudanças na localização, pois as versões em português utilizam pronomes masculinos.

Figura 1: Ashiok, Tecedor de Pesadelos e Yahenni, Guerrilheiro Imortal.

Ashiok tem aparência andrógina e parte de seu rosto está oculto; sua identidade agênero foi confirmada por Doug Beyer, diretor do departamento criativo do jogo. Etergênitos são uma raça de criaturas mágicas criada especialmente para Kaladesh, o bloco com inspiração steampunk e indiana lançado em setembro de 2016. Descritos como agênero desde as primeiras descrições da coleção, na história do jogo são seres empatas criados de energia pura, que adotam novos etergênitos para suas famílias, são bons-vivants inspirados em O Grande Gatsby (abastados, populares e festeiros), e têm ciclos curtos de vida (cerca de 4 anos), quando evaporam e se reintegram ao ciclo de energia do mundo de Kaladesh.

Lançado pela primeira vez em Theros, o card Guardiões de Meletis é a primeira representação textual de um casal gay dentro dos cards de Magic. O card representa apenas as estátuas de Quinaios e Tiro de Meletis – heróis que apareceram mais tarde, em um card na coleção Commander 2016 (Figura 2). Na história do jogo, Quinaios e Tiro encerram um governo tirânico em sua pólis e são escolhidos para governá-la “com o amor que nutriam um pelo outro e por sua pólis”. Sua história tem possível inspiração na vida real: Harmodius e Aristogeiton foram tiranicidas atenienses em 514 a.C.

Figura 2: Guardiões de Meletis (à esquerda) e Quinaios e Tiro de Meletis (à direita).

Como os cards são pequenos e o texto ilustrativo não é suficiente para passar todo o progresso da história para a comunidade jogadora, o site oficial do jogo lança contos semanais (traduzidos também para o português a partir de 2017). Durante o ciclo de contos de Theros, um conto mostra outro casal gay que (até o momento de escrita deste relato) não ganhou um card: Pavios e Thanasis. Seu conto segue as linhas de uma tragédia grega clássica, mas com um casal de dois homens ao invés de um par heteronormativo.

Um casal de lésbicas ainda sem card também estrela um conto no segundo bloco narrativo no mundo de Innistrad – inspirado no terror clássico germânico em sua primeira iteração, pendendo para o horror cósmico Lovecraftiano nesta segunda visita. Halana e Alena são caçadoras que tentam salvar um vilarejo enquanto evitam sucumbir à loucura que está impregnando o mundo todo e transformando alguns dos cidadãos em monstros. O conto traz informações textuais do amor que Halana e Alena nutrem uma pela outra, e como esse amor impede que elas enlouqueçam junto com outros personagens.

Inspirado no ápice do império mongol, o bloco narrativo Khans of Tarkir foi lançado em setembro de 2014 com três expansões. Em sua segunda expansão, Destino Reescrito, o primeiro card com uma personagem trans chegou ao jogo: Alesha, a Que Sorri Para a Morte (Figura 3). A confirmação de sua identidade é mencionada no conto dedicado a ela, intitulado The Truth of Names. Ela é a khan de seu clã, guerreira e líder hábil, e em meio a uma batalha ela discute com um orc de seu clã que ainda não recebeu seu nome de guerra por ainda não ter matado um dragão, seguindo as tradições de seu clã. O orc replica “Você dizendo isso? Um menino humano que pensa que é mulher?”.

Três anos antes, quando matou seu primeiro dragão e pôde escolher seu nome de guerra:

Ela fora tão diferente – com apenas dezesseis anos e um garoto aos olhos de todos, menos dela mesma, pronta para escolher seu nome em frente ao khan e a todos os Mardu.

O khan caminhara entre os guerreiros, ouvindo seus feitos gloriosos. Um a um, eles declaravam seus novos nomes de guerra, e toda vez o khan gritava os nomes para que todos ouvissem. Toda vez, a hora gritava o nome em uníssono e estremecia a terra.

Então, o khan veio até ela. Parada à frente dele, com cobras se retorcendo no estômago, ela contou como matou seu primeiro dragão. O khan assentiu com a cabeça e perguntou seu nome.

“Alesha,” disse ela, o mais alto que pôde. Apenas o nome de sua avó, Alesha.

“Alesha!” gritou o khan, sem um segundo de pausa.

E em resposta toda a horda que ali estava gritou “Alesha”. Os guerreiros do clã Mardu gritaram o nome dela.

Esta lembrança faz Alesha sorrir enquanto mata mais um dragão, e o orc encontra respeito pela força e pela certeza de sua khan saber ser quem realmente é, lhe dando o restante do nome “A Que Sorri Para a Morte”.

Figura 3: Alesha, a Que Sorri Para a Morte.

Em suma, um jogo complexo e intrincado como o Magic The Gathering pode trazer diversas experiências e leituras de sua representação. Como aliada cisgênero e hétero, posso apenas listar tais representações e apontar o jogo como um local de representação variada que pode ser campo fértil para análises intersecionais mais profundas, com local de fala mais empoderado. Fica então a sugestão para que a comunidade LGBT acadêmica comece a tecer análises sobre o jogo – bem como a tecer mágicas em uma partida de Magic.

Meggie Fornazari é professora da UTFPR de Francisco Beltrão e faz parte da comunidade de Magic desde 2012. Autora do livro “The Brazilian Localization of Magic the Gathering”, Meggie também é tradutora da série “Os Contos de Magic The Gathering”, 41 volumes de ficção lançados no Brasil pela editora Planeta de Agostini. Meggie tem um acervo de apresentações acadêmicas no Youtube e já foi apresentadora do podcast Lorenautas, que resumia e analisava as histórias do Magic The Gathering entre 2018 e 2021.

meggie@professores.utfpr.edu.br

Um comentário em “REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO EM “MAGIC: THE GATHERING” E PROGRESSOS NA CULTURA DE JOGOS

  1. Excelente abordagem desse jogo. Me induziu a outras reflexões: poderia ser a intensificação das percepções da variedade de gêneros (um tanto psicanaliticamente) apenas a preparação inconsciente para percebermos que nossa humanidade não pode ser resumida à sexualidade? Assim como (hipoteticamente) a não percepção das diferenças étnicas seria o fim do preconceito de cor, igualmente a não percepção das diferenças de gênero seria o fim desse preconceito. Em todas as ciências se está verificando que a linha de evolução de tudo é no sentido da sempre maior complexidade, e não o contrário. O movimento reacionário (contrário) a isso se torna cada vez mais um fruto da ignorância destinado à extinção.

    Curtir

Deixe um comentário