
“Dos teus lambrequins
de ouro, das tuas cem
figurinhas de bala
Zéquinha, do teu
bebedouro de pangarés,
a gente perguntará:
Que fim levaram?”
(TREVISAN, Dalton. “Em Busca da Curitiba Perdida” – Conto: Lamentações de Curitiba. Ed. Record, 1990)
A obra As Balas Zéquinha e a Curitiba de outrora é resultado da pesquisa de doutorado de Camila Jansen de Mello de Santana. Defendida em 2019, no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Paraná, o trabalho tomou como fontes principais as 200 figurinhas originais das Balas Zéquinha, que circularam sob propriedade da fábrica A Brandina, dos Irmãos Sobania, entre 1929 e 1948.
Na obra, as duas centenas de figurinhas das Balas Zéquinha são utilizadas como janelas pelas quais adentramos o universo de Curitiba, analisando, em capítulos temáticos, aspectos diversos das embalagens e também da capital paranaense, que se transformava. Nos diferentes capítulos, as figurinhas do personagem são colocadas em diálogo com reportagens de jornal, músicas, poesias e charges daquele contexto, possibilitando o aprofundamento da investigação sobre a cidade e as mudanças vividas pela população.

O trabalho visou investigar como o personagem surgiu, que elementos visuais serviram de inspiração e modelo para a criação do personagem e suas características. Quais objetivos tinha a empresa de doces A Brandina ao encomendar as representações do personagem para a empresa Litografia Paranaense, que elementos definiram as características do papel utilizado, das cores e informações impressas nas embalagens e escolhas variadas a respeito do suporte das ilustrações. Também busca desvendar o criador do personagem e aspectos da indústria gráfica regional e nacional daquele contexto das primeiras décadas do século XX.
A partir daí, encontramos as figurinhas do Zéquinha divididas em temas, facilitando assim as discussões teóricas e concentrando temas de discussão e investigação sobre a cidade, sua população e seus hábitos. Assim, são analisadas 36 figurinhas que representam ações cotidianas do Zéquinha, nosso protagonista realiza atividades cotidianas como higiene pessoal, cuidados de si, são exploradas algumas identidades representadas nas imagens de Zéquinha além de emoções vividas pelo personagem. É aqui que mais se desvenda as sensibilidades da população curitibana e seus hábitos corriqueiros.

Os ofícios de Zéquinha, trazem 80 representações do personagem. As embalagens analisadas permitiram realizar uma investigação sobre as mudanças que ocorriam no mundo do trabalho em Curitiba, Paraná e outras cidades e estados brasileiros, que sentiam, assim como a capital paranaense, as mudanças no processo de organização do trabalho assalariado. Os impactos da extinção da escravidão, ocorrida em fins do século XIX e a inserção de milhares de imigrantes no Brasil, transformaram ou modificaram a concorrência pelos variados ofícios, a organização dos trabalhadores e a criação de leis diversas. Estes temas são abordados através dos invólucros e tipos de trabalho que Zéquinha executa.

Existem no conjunto 17 figurinhas do personagem que trazem ações violentas. Nesta etapa do trabalho utilizamos as ilustrações das figurinhas para compreendermos, como as transformações no cotidiano, no mundo do trabalho, no lazer e hábitos da população, provocados pelos processos de modernização e urbanização que Curitiba e diversos outros municípios viviam, impactaram violentamente na cidade.

Sob o tema de lazer e sociabilidades, foram reunidas 65 figurinhas do personagem, onde o processo de modernização e urbanização, analisados ao longo do livro também são retomados aqui, demonstrando como o processo de regulamentação das atividades de lazer e esportes, criou ou transformou a organização e as formas de lazer. Também abordamos os impactos dos novos ambientes de lazer e sociabilidades surgidos naquele contexto, como cafés, restaurantes etc.

É abordado, ao final, o processo de criação de uma identidade curitibana e paranaense em torno do personagem, apresentando diferentes meios pelos quais Zéquinha influencia no imaginário coletivo e o compartilhamento de uma identidade que foi criada em torno do personagem, permitindo e mesmo justificando sua longevidade e relevância.

A pesquisa apresentada nesta obra foi premiada no Quarto Prêmio Teses Sandra Jatahy Pesavento, ofertado pelo GT Nacional de História Cultural da Associação Nacional de História – ANPUH, tendo sido considerada a melhor tese dos anos 2018-2019 produzida no campo de História Cultural.

Camila Jansen de Mello de Santana, é graduada, mestre e doutora em História pela Universidade Federal do Paraná. Suas pesquisas exploram o contexto do Brasil durante o Estado Novo, e têm como foco, a história cultural e história social.
Professora do ensino superior desde 2009, com passagens pela Universidade Federal do Paraná – UFPR, pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC-PR e pela Universidade Estadual do Paraná – UEPG, onde atua no momento.
Além de autora do livro As Balas Zéquinha e a Curitiba de outrora”, também publicou Sociabilidades curitibanas: o lazer e o civilizar-se, também pela Máquina de Escrever. Na literatura, tem o livro infantil O Pequeno Pingo d’água, que escreveu para sua filha, Alice, para que ela perdesse o medo de chuvas e tempestades. Sua irmã, Paula, “dinda” da Alice, foi quem ilustrou o livro.
É pesquisadora membro do Núcleo de Artes Visuais – NAVIS UFPR.
Fizemos algumas perguntas à autora, para conhecermos melhor o processo da pesquisa, e o impacto da mesma em sua vida pessoal e acadêmica:
Como surgiu a ideia de pesquisar este tema?
A ideia surgiu depois do meu irmão mais velho, André, e minha cunhada, Christine, terem nos mostrado fotos de uma viagem que haviam feito para a França. Ao mostrar as imagens das fotos da câmera digital na televisão, em vários momentos as imagens traziam paisagens ou ambientes amplos, nos quais não estava evidente a presença deles. O André era quem, na maioria das vezes, tirava as fotos, e a Chris, estava presente nelas, porém, nessas de ambientes amplos, não a víamos de imediato. Então, meu irmão, usando o zoom, ia aproximando a imagem e perguntava sempre “Cadê o Zéquinha?”, “Onde está o Zéquinha?”, até que mostrava a Chris na fotografia. Eu, que não tinha referências dessa expressão, não entendia porque meu irmão perguntava “Onde está o Zéquinha?”, se não havia nenhum Zé ou Zeca nas imagens.

Ana Lúcia Jansen de Mello de Santana e Luiz Vamberto de Santana, pais de Camila
Então para entender a expressão, perguntei a respeito e ele me explicou que era uma expressão que se referia a um personagem de figurinhas (ele não conheceu as Balas Zéquinha), que fizeram muito sucesso quando ele era criança e que trazia esse personagem vivendo inúmeras situações. Eu, que na época tinha terminado o mestrado e estava pensando em um doutorado, pesquisei a respeito das imagens e, ao vê-las, soube que tinha encontrado meu tema de pesquisa.
Como você vê o Zequinha relacionado à “identidade” do curitibano, já que ele é um personagem icônico da nossa cidade, ou você considera que ele é apenas um personagem meramente ficcional, parte da estratégia publicitária das balas?
Nas minhas pesquisas, encontrei referências a Zéquinha ter sido criado em 1928 ou 1929. No fim, estipulei 1929 como data da criação na tese, porque não encontrei referências nos jornais sobre as balas em 1928 e nem uma citação ou informação direta sobre a data de início de circulação delas. O Zéquinha é ficcional aqui no Paraná, mas teve seu surgimento inspirado em um personagem real de São Paulo. Em 1927 surgiram as Balas Piolin, em São Paulo, essas balas tinham o palhaço Piolin, que era um artista real, incorporado pelo artista circense Abelardo Pinto, em São Paulo. As Balas Piolin eram embaladas com papeis ilustrados com desenhos em que o Palhaço Piolin vivia inúmeras situações. Em 1928 um dos irmão Sobania, proprietários da Fábrica de doces A Brandina, foi a São Paulo fazer um curso de doces e chocolates e lá conheceu as Balas Piolin. É dessa viagem que ele teriam trazido a ideia das embalagens de balas ilustradas com um personagem específico para Curitiba.
Não se sabe quem foi o criador das Balas Zéquinha, mas é certo que o personagem foi copiado das Balas Piolin, inclusive as 30 primeiras figurinhas do Zéquinha são iguais a 30 das ilustrações das embalagens das Balas Piolin. Contudo, percebi durante minha pesquisa de doutorado, que o Zéquinha embora inspirado em personagem paulista, construiu uma identidade curitibana em torno de si. Essa identidade é resultado das diversas brincadeiras e memórias compartilhadas por gerações de curitibanos que colecionavam as figurinhas, comiam ou não as balas, disputavam as imagens em jogos de bafo e tique e trocavam as figurinhas premiadas por itens diversos.
O personagem, portanto, pode ter sido originado em São Paulo ou a partir de um palhaço paulista, mas é certo que Zéquinha se distinguiu dessa origem, criando um significado próprio. Em torno do Zéquinha e de suas figurinhas, centenas de crianças elaboraram e compartilharam um imaginário em que o personagem estava presente, participaram de momentos de sociabilidade nos quais as figurinhas eram disputadas e sonharam com os itens distribuídos pelas balas premiadas. Ou seja, teve o marketing em torno do sucesso do personagem? Teve, mas, mais do que isso, teve a construções de redes de sociabilidades, de hábitos, compartilhamento de interesses, imaginário e isso tudo moldou a construção de uma identidade partilhada pelos consumidores e colecionadores do Zéquinha, que ultrapassou em muito o impacto e significado das embalagens de Piolin, nas quais foram inspiradas.

Camila, Cauê Krüger e Alice, filha do casal.
Como em 1979 surgiu uma campanha estadual de arrecadação de ICM que utilizou o personagem, remodelado, como garoto-propaganda, uma geração de crianças que havia colecionado as figurinhas das Balas Zéquinha, agora já crescida e adulta, correu apresentar o personagem aos seus filhos que, crianças, em 1979, passaram a partilhar com seus pais, as memórias, jogos, sociabilidades em torno do mesmo personagem. Meu irmão é dessa época. Ele não conheceu as Balas Zéquinha, mas o álbum de figurinhas do Zequinha (agora sem acento). Eu não conheci nenhum dos Zé(e)quinhas, mas mesmo assim, acabei compartilhando com outras gerações a importância e universo desse personagem. Como o Zequinha retornou, em 2021, durante a pandemia, em novo álbum, novamente, outra geração de curitibanos conheceu o personagem. Eu, por exemplo, estou colecionando as figurinhas com minha filha, de 7 anos. E é assim, ressignificando e compartilhando práticas, imaginário e memórias, que um personagem ultrapassa o motivo de sua criação, que era o de identificar, embalar e chamar a atenção para as balas, e se torna um elemento identitário.
Ao se debruçar sobre este tema, que conclusões você tira para sua vida pessoal e acadêmica?
Para mim, o Zéquinha deixou de ser tema de pesquisa e se tornou um personagem querido, que é capaz de representar muitos sujeitos. Quando via as imagens de Zéquinha, acreditava que ele era capaz de representar a todos, devido à multiplicidade de situações nas quais era retratado e, ao mesmo tempo, representava ninguém, porque era um Zé, dentre tantos Zés que existem por aí. Não tinha sobrenome, mudava a vestimenta e identidade nas figurinhas, representando diferentes grupos sociais, econômicos e culturais. Porém, durante a pesquisa, fui percebendo os silêncios de Zéquinha: ele não retrata mulheres, a não ser que estas sejam seu interesse amoroso, ele é preconceituoso na representação da população negra, ele é sempre branco, não se torna negro, asiático, indígena nas suas representações, mas reforça estereótipos ligados a estes grupos. Após essa percepção, passei a tentar ser mais atenta a respeito dos discursos não ditos, silenciados. Procuro perceber esses silêncios para educar a minha filha de forma que ela seja capaz de vê-los.
Que papel teve o (a) orientador (a) na sua pesquisa de doutorado?
A Rosane Kaminski foi minha orientadora de doutorado na linha de pesquisa Arte, Memória e Narrativa – AMENA, do Programa de Pós-Graduação em História da UFPR. Ela foi ótima. Digo isso porque ela me deu muita autonomia para pensar o formato da tese. Para mim, era importantíssimo que o Zéquinha e suas imagens permeassem toda a tese, fossem, de fato, a espinha dorsal da pesquisa e não apenas um exemplo, no último capítulo da pesquisa, de como as figurinhas e as artes gráficas impactaram Curitiba nas décadas de 20, 30 e 40. Para mim, o Zéquinha era o tema da tese, não um exemplo gráfico regional, e a Rosane abraçou essa proposta com bastante generosidade. Além disso, indicou diversos e importantes textos para eu me embasar teórica e metodologicamente para a realização da pesquisa.
Durante o doutorado eu também engravidei e tive minha filha e a Rosane lidou com muita tranquilidade com a situação. Digo isso porque conheço relatos e experiências de outras acadêmicas que, durante suas pesquisas de mestrado ou doutorado, engravidaram e tiveram seus bebês, e a reação de seus orientadores e orientadoras foi no sentido de que agora, com uma criança, a carreira acadêmica estaria fadada ao fracasso ou já encerrada antes mesmo de iniciar. No meu caso, a Rosane usou sua própria experiência para me confirmar que eu era capaz e que essa gestação e esse bebê que chegaria, e chegou no mês em que qualifiquei, deveria ser festejado.

Camila e Rosane Kaminski
Dentro de um universo cheio de egos, ela foi um porto seguro para eu viver o processo de pesquisa e escrita da tese. Tanto que, quando eu estava prestes a defender o doutorado, estava sentindo um misto de felicidade e tristeza, porque não queria que o doutorado acabasse, pois tinha sido uma experiência e um período muito positivo.
Como você espera estar contribuindo para a cultura paranaense, com a publicação de seu livro?
Foi durante a pesquisa da tese e a escrita do seu texto que tomei consciência da importância de Zéquinha para diversos sujeitos. Quando eu apresentava a pesquisa ou recortes dela, em eventos acadêmicos, o personagem sempre despertava interesse, curiosidade e memórias, reiterando o caráter identitário que o personagem tem e que ressaltei acima.A publicação do livro tem diferentes motivos para ser relevante. Primeiro, o livro resgata a história de um personagem desde as motivações para que ele fosse criado, passando pelas razões pelas quais ele possui esse desenho final, material, tamanho e suporte, até as diferentes influências que recebeu para definir seu traçado final e situações nas quais é representado. No decorrer dos capítulos ainda me debruço de forma temática, nos impactos dos processos de modernização e urbanização sobre a população curitibana, analisando aspectos do cotidiano, mundo do trabalho, violência e lazer e sociabilidades.
Como na tese eu uso, como fontes, as 200 ilustrações das embalagens originais das Balas Zéquinha e também reportagens de jornais, charges, poesias e músicas contemporâneas do personagem, acabo resgatando inúmeros hábitos da população curitibana que se perderam, mas que formam aquilo que somos hoje. Portanto, o livro permite compreender uma Curitiba de outrora que, apesar de ter várias experiências impossíveis de serem vivenciadas novamente, exatamente pelas mudanças que o tempo impôs à cidade e à população, é a argamassa, são as raízes que nos fazem ser quem somos hoje, e embora essas raízes não sejam tão visíveis e evidentes, são elas que trazem ingredientes e nutrientes para permitir que o hoje aconteça.

Camila com Juliana e Victor Augusto, da Editora Máquina de Escrever
Ou motivo pelo qual o livro contribui para a cultura curitibana é o fato dele resgatar a história do personagem e sua coleção original. Isso é importante ressaltar, porque as coleções criadas a partir de 1979, trazem um Zéquinha com traços diferentes e as figurinhas trazem uma legenda educativa e moralista, diferente da coleção original. Como as figurinhas desenhadas a partir de 1979 tiveram grande repercussão por serem propagadas pelo Governo do Estado, ela foi apagando a memória das figurinhas originais e muitos adultos e veículos de mídia atuais chegavam a identificar o desenhista e artista Nilson Müller como o criador do Zéquinha, pois foi ele que redesenhou o personagem original para as campanhas de 1979 em diantes, sendo que ele não era nascido quando o Zéquinha original foi criado.
Ou seja, o livro permite esclarecer esse equívoco que estava começando a se propagar, exatamente porque não havia em material que trouxesse esse resgate da cultura curitibana e história do Zéquinha de forma apropriada. O livro vem ocupar essa lacuna e reordenar a história do personagem, apresentando para os fãs de Zéquinha o nascimento e surgimento do personagem e de uma identidade compartilhada que surgiu há quase um século.

Dados Técnicos:
SANTANA, Camila Jansen de Mello de. As Balas Zéquinha e a Curitiba de outrora. Curitiba: Editora Máquina de Escrever, 2024.
O livro pode ser adquirido: Pelo e-mail camilajsantana@gmail.com; pelo instagram: camilajansensantana ou facebook: Camila Jansen Santana
Pelo site da Editora Máquina de Escrever: editoramaquinadeescrever.com.br
A obra está à venda na Livraria Arte e Letra, em Curitiba/PR
Em breve também estará disponível para compra na loja do Museu Oscar Niemeyer (MOM)

Bel Liviski, professora e fotógrafa, é doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná, atualmente em estágio pós-doutoral em Educação, na mesma instituição. Escreve a Coluna INcontros na Revista ContemporArtes desde 2009, e é também Editora-chefe do TAK! Agenda Cultural Polônia Brasil, em Curitiba/Pr.
Contato: bel.photographia@gmail.com
Foto: Acervo Pessoal (fevereiro/2025)

Duas mulheres produtivas e uma obra fantástica. Saudades das figurinhas, pois as balas eram apenas um pretexto para a coleção. Parabéns pela excelente história.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Obrigada, Pucci! Abraço.
CurtirCurtir