A fotografia e os laços invisíveis das lembranças.

O Tempo

Terminei o ultimo artigo da Coluna Narciso e o Espelho (11/2024) (acesse – https://revistacontemporartes.net/2024/11/18/a-fotografia-e-os-lacos-invisiveis-das-lembrancas/ ) escrevendo que a fotografia também permite remontar o tempo, um reencontrar e resignificar memórias e um fazer historiográfico. Quanto a questão do tempo, vinculado a fotografia, a história e a memória, Barthes aproxima-se da tese do corte analisada por Dubois, quando afirma:

“… isso que vejo encontrou-se lá, nesse lugar que se estende entre o infinito e o sujeito (operator ou spectator); ele esteve lá, e todavia de súbito foi separado; ele esteve absolutamente, irrecusavelmente presente, e no entanto já diferido…” (DUBOIS, 2009, p. 115/116)

Esta questão remonta ao ato fotográfico e a própria criação e existência da fotografia (imagem-ato) e a sua essência temporal e espacial, com Dubbois analisando este ponto da separação, do corte, do “cut”, considerando que “qualquer fotografia é um golpe (uma jogada), qualquer ato (de tomada ou de olhar para a imagem) é uma tentativa de “fazer uma jogada” (dar um golpe)” (Dubois, 2009, p. 162) e que o impulso de sucessividade do ato fotográfico – primeiro repetir o ato com várias tomadas de um mesmo assunto, para depois selecionar -, está correlacionada a “compulsão da repetição” corriqueiro em jogos como o xadrez, exemplo utilizado por este autor.


Fotografia 1: Imagem encaminhada por Whatzapp pela minha tia Eni Reis, na fotografia temos a minha madrinha Marni Reis no dia do seu casamento em 10/12/1966, junto com a sua vó Rita (minha bisavó). Esta e outras fotografia quanto a questão do tempo, permite-nos perceber a realidade extraída de um tempo “congelado” e que movimentam memórias. Tia Marni foi minha madrinha, pessoa presente pela memória afetiva e minha bisavó não a conheci pessoalmente, mas o ato-fotográfico constrói uma “memória-ato” possibilitando escritas históricas e o não apagamento dos sujeitos históricos mesmo não presentes em nossos espaços temporais de relacionamento.

Esta realidade tão comum na contemporaneidade, onde é possível através das câmeras fotográficas digitais e celulares um número quase infinito (e não se afirma que seja infinito em sua totalidade, porque conscientemente não se consegue vislumbrar nem no mundo virtual a condição de um espaço infinito a ser preenchido) de imagens que podem ser construídas e “descarregadas” virtualmente, não elimina a qualidade de objeto único admitido para toda e qualquer imagem fotográfica. Mesmo numa série – “metralhemos em primeiro lugar”, (Dubois, 2009 p. 82) uma imagem terá como diferencial da outra, pelo menos, o instante – o corte temporal, por mais breve que seja, mesmo que esta condição não seja perceptível ao olhar, mas o é para a consciência. Por isso se aceita que a análise da fotografia pela questão do corte temporal e espacial pode também permanecer atrelada a uma única imagem referenciada no registro fotográfico.

“Como tal [a noção de corte], indissociável do ato que a faz ser, a imagem fotográfica não é apenas uma impressão luminosa, é igualmente uma impressão trabalhada por um gesto radical que a faz por inteiro de uma só vez, o gesto do corte, do cut, que faz seus golpes recaírem ao mesmo tempo sobre o fio da duração e sobre o contínuo da extensão. Temporalmente de fato – repetiram-nos o suficiente – a imagem-ato fotográfica interrompe, detém, fixa, imobiliza, destaca, separa a duração, captando dela um único instante. Espacialmente, da mesma maneira, fraciona, levanta, isola, capta, recorta uma porção de extensão. A foto aparece dessa maneira, no sentido forte, como uma fatia única e singular, de espaço-tempo, literalmente cortada ao vivo. Marca tomada de empréstimo, subtraída de uma continuidade dupla. Pequeno bloco de estando-lá, pequena comoção de aqui-agora, furtada de um duplo infinito. Pode-se dizer que o fotógrafo, no extremo oposto o pintor, trabalha sempre com o cinzel, passando, em cada enfocamento, em cada tomada, em cada disparo, passando o mundo que o cerca pelo fio de sua navalha. (DUBOIS, 2009, p. 161)

Fotografias 2, 3 e 4: Nesta sequência de imagens registradas por celular pela minha filha Natália Mattos, estou com minha neta Maria Alice, aproveitando a terça-feira de Carnaval (04/03/2025), divertindo com a pequena “piscina” antes dela tomar coragem e entrar no chuveirinho. A afirmativa de Dubois acima se observa quando mesmo separadamente cada imagem-ato, realizada em tempos diferentes, revela a mesma realidade e movimenta a memória afetiva da mesma forma.

Cada fotografia deve ser analisada como objeto único, mesmo pertencendo a um conjunto de um fotógrafo ou abordando um mesmo tema. Todas as questões ligadas a este objeto (o índice, o corte, a relação com o real, a sensação de verdade, o espaço, o tempo, à distância, o ato e a autoria e a técnica, a linguagem) devem, no exercício de suas interpretações, serem embasadas por uma determinada metodologia, consideradas em suas manifestações de presença no registro “impresso” sobre a superfície plana ou no mundo virtual. Todas estas categorias de qualidade permitem que a fotografia seja empregada em análises diversas por campos de ciências múltiplas, conduzindo fatalmente a uma interdependência de conceitos e aplicações teóricas. E por ser também do mundo dos sonhos, dos mitos, das lembranças, do esquecimento e da memória, é possível encontrá-la (a fotografia) na sensibilidade poética, como no poema “Diante das fotos de Evandro Teixeira” de Carlos Drummond de Andrade:

A pessoa, o lugar, o objeto
estão expostos e escondidos
ao mesmo tempo sob a luz,
e dois olhos não são bastantes
para captar o que se oculta
no rápido florir de um gesto.
(meu destaque)

É preciso que a lente mágica
enriqueça a visão humana
e do real de cada coisa
um mais seco real extraia
para que penetremos fundo
no puro enigma das figuras.

Fotografia – é o codinome
da mais aguda percepção
que a nós mesmos nos vai mostrando
e da evanescência de tudo
edifica uma permanência, cristal do tempo no papel.

Das lutas de rua no Rio
em 68, que nos resta
mais positivo, mais queimante
do que as fotos acusadoras,
tão vivas hoje como então,
a lembrar como a exorcizar? (meu destaque)

Marcas da enchente e do despejo,
o cadáver insepultável,
o colchão atirado ao vento,
a lodosa, podre favela,
o mendigo de Nova York
a moça em flor no Jóquei Clube,

Garrincha e Nureyev, dança
de dois destinos, mães-de-santo
na praia-templo de Ipanema,
a dama estranha de Ouro Preto,
a dor da América Latina,
mitos não são, pois que são fotos.

Fotografia: arma de amor,
de justiça e conhecimento
, (meu destaque)
pelas sete partes do mundo
a viajar, a surpreender
a tormentosa vida do homem
e a esperança a brotar das cinzas.

Fotografia 5: Fotografia de Teixeira data de 1968, registro em meio ao recrudescimento do regime de exceção, mostrando a violenta repressão policial aos estudantes. Disponível em ttps://www.cartacapital.com.br/politica/morre-aos-88-anos-o-fotografo-evandro-teixeira-que-captou-o-horror-da-ditadura/, acesso em mar 2025.

Dubois afirma que o “tempo não tem validade aos olhos da fotografia” (Dubois. 2009, p. 162); sendo este o tempo que marca cronologicamente a existência humana, pois após o corte do ato fotográfico, o tempo continua sua trajetória, mas o registro interrompe (conforme Benjamin), provoca o esmagamento (conceito de Barthes) instalando um fora-do-tempo (considerado por Dubois), um instante vazio, separado, um extra-instante que permanece como pequenos quadros, baldes separados das águas deste rio que incessantemente corre para o futuro. O tempo fragmenta-se na fotografia e na memória, retomando seu ritmo, quando a percepção repousa sobre a imagem e esta desperta lembranças – saudades pousadas em retratos -, movimenta a memória num instante que vence a distância temporal entre o corte fotográfico e a observação, analise e interpretação do referente imagético. Somente a imagem fotográfica e a imagem da memória são capazes de lidar com tempo interrompendo e retomando o seu fluxo através da lembrança.

(1) Sobre Drummond e Evandro Teixeira, ler o artigo “Por Dentro dos Acervos Drummond, Evandro Teixeira e Ela”, de Elvia Bezerra – acesse – https://ims.com.br/por-dentro-acervos/drummond-evandro-teixeira-e-ela/

(continua)

Referência:

BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Rio de Janeiro. Editora Nova Fronteira, 2008.

DUBOIS, Philippe. O Ato Fotográfico. São Paulo. Papirus Editora, 12ª Edição, 2009.

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