Alexandra Alves Sobral *
É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança.
(Provérbio africano-povo xhosa)

Foto: Ubuntu ( fonte: retirada da internet)
Nasci no ano de 1980 e cresci em um bairro da Zona Leste de São Paulo – SP, em um lar com muitas fragilidades, dentro de um contexto de mazelas e muitas vulnerabilidades, minha mãe viúva e com três filhas pequenas, sendo arrimo familiar. Diante deste contexto, o espaço escolar é um lugar de apoio, fortalecimento individual e coletivo. Lembro-me da infância, a minha mãe sem escolarização vendendo sua força de trabalho por horas para garantir nossa sobrevivência, pouco conseguia tempo para a relação de cuidado entre nós. Minha irmã mais nova e eu ficávamos por volta de oito horas na creche que, naquele período histórico, era vinculado à assistência social do município de São Paulo – SP.
Sendo um benefício da assistência social, naquele período as creches construíam laços mais próximos com as famílias em situação de vulnerabilidade, lembro-me por muitas vezes a diretora indo até minha casa para realizar visitas e apoiar com cestas de alimentos e verduras. Havia uma relação mais próxima entre escola e comunidade.
Fazendo um paralelo com a conjuntura atual dos Centros de Educação Infantil (CEI) do município de São Paulo, percebemos avanços significativos em reconhecer as crianças como sujeitos de direitos. Avanços que começaram a acontecer principalmente após a promulgação da Constituição Federal em 1988, o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) em 1990, e a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação, nº 9394/96 (Ldben), que menciona o CEI no sistema de educação como primeira etapa da educação básica, cuja finalidade é favorecer o desenvolvimento integral da criança. Estes avanços foram determinantes para pensarmos a concepção de infância, entretanto, em minha opinião, avançou-se por um lado, mas fragilizou a relação escola-família.
Cumpri o ensino fundamental em na mesma escola pública estadual, no bairro Ermelino Matarazzo, próxima a casa onde residia com a minha família. Naquele cenário, havia um fortalecimento dos vínculos comunitários, onde os vizinhos eram a rede de proteção e íamos juntos para a escola, uns cuidando dos outros.
Assim parte da minha história dos anos iniciais na educação esta vinculado ao trabalho de acolhimento, apoio, rede de proteção e colaboração, valores esses que nos faz refletir que a escola é um lugar de encontros, que tem como prioridade o desenvolvimento integral das crianças, adolescentes, jovens e adultos acompanhando os processos de aprendizagens e ampliação dos conhecimentos de mundo, em um movimento de ação e reflexão, de diálogos autênticos que agregam construções coletivas em prol aos educandos e comunidade escolar.
Quando partimos desse olhar humanizado a educação vai tomando formas e promove significados aos educandos, importante pensarmos de forma coletiva, a escuta qualificada de cada sujeito potencializará a construção coletiva, ou seja, a escola será também este espaço de escuta e transformação social. Entretanto há um grande desafio para a promoção e participação dos atores comunitários, tendo lugar de escuta e de fala. Pois ainda o ambiente escolar muitas vezes está condicionado às estruturas dominantes, em grande parte cristalizada em uma concepção classista, racista e sexista. Considerando que parte[1]destas concepções, o que predomina são relações verticais, relações que são permeadas pelo autoritarismo e naturalizam-se nas práticas cotidianas, reverberando o modo como atendemos as famílias e a comunidade escolar.
Percebemos então que esta práticas autoritárias estabelece relações que se caracterizam por desconfiança, intolerância, gerando distanciamento das famílias. Isso é decorrente, em parte, porque há a desconsideração das experiências vividas, pouca escuta das necessidades da comunidade escolar. A adaptação desta aos modelos autoritários orienta-se pelo referencial de uma massa informe a ser moldada. Entretanto, a superação desse tipo de relação se faz na prática horizontal. O diálogo cumpre sua função na práxis libertadora quando instituído como caminho para a constituição de sujeitos num processo de humanização. A escola passa ser um dosespaços para fomento dos direitos e deveres, ou seja, um espaço de construção e formação de uma educação crítica, comprometida com princípios de solidariedade e de justiça social.
Esse novo lugar do espaço escolar foi anunciado por Paulo Freire no primeiro documento encaminhado aos educadores, publicado no Diário Oficial do Município de São Paulo, em 1° de fevereiro de 1989. Em sua carta, dirigida Aos que fazem a educação em São Paulo, diz Paulo Freire:
Não devemos chamar o povo à escola para receber instruções, postulados, receitas, ameaças, repreensões e punições, mas para participar coletivamente da construção de um saber, que vai além do saber de pura experiência feita, que leve em conta as suas necessidades e o torne instrumento de luta, possibilitando-lhe transformar-se em sujeito de sua própria história. A participação popular na criação da cultura e da educação rompe com a tradição de que só a elite é competente e sabe quais são as necessidades e interesses de toda a sociedade. A escola deve ser também umcentro irradiador da cultura popular, à disposiçãoda comunidade, não para consumi-la, mas para recriá-la. A escola é também um espaço de organização política das classes populares. A escola como um espaço de ensino aprendizagem será então um centro de debates de idéias, soluções, reflexões, onde a organização popular vai sistematizando sua própria experiência. O filho do trabalhador deve encontrar nessa escola os meios de auto emancipação intelectual independentemente dos valores da classe dominante. (FREIRE, 1991, p.16).
No seu mandato durante o governo da prefeita Luiza Erundina em 1989, Paulo Freire levou para administração pública os pressupostos da educação popular, envolvendo a comunidade escolar, na luta pela educação pública de qualidade, abertura para a comunidade de forma participativa, autônoma e coletiva, estimulando assim à gestão democrática no espaço escolar. Quando Freire trazia referências da educação popular se referia uma prática política e crítica:
a educação popular cuja posta em prática, em termos amplos, profundose radicais numa sociedade de classe, se constitui como um nadar contra a correnteza é exatamente a que, substantivamente democrática, jamais separa
do ensino dos conteúdos o desvelamento da realidade. É a que estimula a presença organizada das classes sociais populares na luta em favor da transformação democrática da sociedade, no sentido da superação das injustiças sociais. É a que respeita os educandos, não importa qual seja suaposição de classe e, por isso mesmo, leva em consideração, seriamente, o seu saber de experiência feito, a partir do qual trabalha o conhecimento com rigor de aproximação aos objetos. (FREIRE, 1993, p.101, grifo nosso).
Como um dos meios de combate à exclusão, a escola aparece mesmo com todas suas contradições estruturantes, como espaço de criar fissuras, ou seja, criar diálogo e reflexão se constituindo como um instrumento de resistência, sendo uma das ferramentas para transformação social. É importante pensar a transformação que pode acontecer no plano político pedagógico e nas relações construídas dentro deste espaço.
Para isso a escola deve estar aberta para que a população participe do processo de mudança, construindo formatos e diálogos que outrora não eram realizados, ou seja, criar lugar de fala conforme o conceito trazido pela filósofa Djamila Ribeiro (2017): pensar lugar de fala é uma postura ética, pois “saber o lugar de onde falamos é fundamental para pensarmos as hierarquias, as questões de desigualdade, pobreza, racismo e sexismo”. (RIBEIRO, 2017, p. 84). Importante destacar que “lugar de fala” não diz respeito às visões individualizantes centradas no sujeito, mas à coletividade de um grupo que, nas sociedades de classe, são historicamente silenciados. Dar voz a comunidade escolar e seus atores sociais passa a ser, portanto, o reconhecimento de quem está nela e de quem vem até a ela.
É preciso estar aberto a ampliar o olhar e compreender que a escola não pode estar sozinha. Ela deve envolver-se com a comunidade, dialogar com as redes de apoio, compreender quais organizações que estão em seu entorno, e quais outros lugares de potência se articulam no território onde está inserida, vivenciando experiências educativas para além dos muros escolares. Tal práxis rompe com os modelos autoritários que naturalizam fragilidades e mazelas presentes no dia a dia dos educandos e famílias. Assim
uma escola que abre as portas para sua comunidade, para participação ativa adequando aos diferentes níveis, contextos, tempos, espaços e instâncias de decisão sobre política educacional é a escola que buscamos.
Desta forma uma organização democrática inclui na sua gestão não só os aspectos administrativos, mas uma gestão capaz de articular e ter posicionamento ético-político, dialogando e envolvendo todos os atores e todos os segmentos do espaço escolar, oportunizando um processo rico e participativo, a fim de intencionalmente promover ações que contribuam para o processo de humanização.
Referências
DUARTE, Newton. Sociedade dos conhecimentos ou sociedade das ilusões?:quatro ensaios crítico-dialético em filosofia da educação. Campinas/SP: Autores Associados, 2003.
___________. Educação escolar, teoria do cotidiano e a escola de Vigotski. – 4° ed. Campinas SP: Autores Associados, 2007. – (Coleção polêmicas do nosso tempo; v. 55)
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.
SAVIANI, Demerval. Política e educação no Brasil: o papel do Congresso Nacional na legislação do ensino. 5° ed. Revista – Campinas: Autores Associados, 2002.
[1] Cabe lembrar que o contrário de autoritarismo é a licenciosidade e não a autoridade. A autoridade é imprescindível ao trabalho docente.

*Alexandra Alves Sobral: Mestrado Profissional do Programa de Educação: Formação de Formadores da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, possui especialização Lato – Sensu em Direito Aplicado na Educação pela Faculdade Campus Elísios – SP (2017). Possui os cursos de extensão universitária no Programa de Desenvolvimento Acadêmico Abdias Nascimento pela Universidade Federal de São Paulo – Campus Guarulhos/UNIFESP (2018), Africanidades, Literatura Infantil e Circularidades – Universidade Federal de São Paulo – UFABC (2019). Atualmente é professora de Ed. Infantil e Ensino Fundamental I na Rede Municipal da SMESP. Exerceu a função de professora formadora no II Encontro da Infância pela Divisão Pedagógica – Diretoria Regional de Guaianases (2018); Congresso Regional de Educação Guaianases – CONGREG (2018) e (2019) com as temáticas África em nós e A África que não conhecemos; Jornada Pedagógica- DRE Guaianases (2019), com a temática: práticas para uma educação Étnico Racial: Oficina de Abayomi, Narrativas de Contos Africanos e Ciranda. Atuou como professora parceira na formação e implementação do Currículo da Cidade de São Paulo, Ed. Infantil (2019) e Educar para relações étnico – raciais na perspectiva do Currículo da Cidade de São Paulo e das leis 10639/03 e 11645/08.(2020); Integrou o grupo de trabalho para construção do documento Currículo da Cidade Povos Migrantes (2021).
