Negacionismo científico e a pandemia: história se repete?

Adriana de Andrade1

Caio Matheus Manzi Teixeira, Caique Iamônico, Gabriel Henrique Silva Magalhães, Daniela de Cássia Duarte2

(orientação: Ana Maria Dietrich)3

“Foram apenas cinco dias, mas marcaram a história da saúde pública no Brasil. No início de novembro de 1904, o Rio de Janeiro, então capital federal, foi palco da maior revolta urbana que já tinha sido vista na cidade. A Revolta da Vacina deixou um saldo de 945 prisões, 110 feridos e 30 mortos, segundo o Centro Cultural do Ministério da Saúde. O estopim da rebelião popular foi uma lei que determinava a obrigatoriedade de vacinação contra a varíola. Mas havia um complexo e polêmico panorama social e político por trás da revolta, e diferentes fatores ajudam a explicar melhor os protestos.”
Fonte: https://portal.fiocruz.br/noticia/cinco-dias-de-furia-revolta-da-vacina-envolveu-muito-mais-do-que-insatisfacao-com-vacinacao

A história registrou que médicos se aproveitavam de charges publicadas nos jornais, marchinhas e boatos para convencer o povo a não se vacinar. Durante a pandemia de 2018/20, tivemos um governo que convenceu pessoas a não se vacinarem. A história se repetiu na contramão de campanhas realizadas no País por anos, como por exemplo, a campanha do Zé Gotinha.  

Charge retratando o cientista Oswaldo Cruz como “esfolador” do Zé Povo. Fonte: https://www.todamateria.com.br/revolta-da-vacina/

Roberto Martins coloca que “temos poucos historiadores da ciência no Brasil, com formação adequada (MARTINS, 2006, p. 32)”. Segundo ele, o estudo adequado de alguns episódios históricos permite perceber o processo coletivo da construção do conhecimento (Ibid, 2006, p. XXII – XXIII). Um exemplo disso é como foi realizada a vacinação do Brasil e em outros países do mundo em meio à pandemia da COVID-19 se considerarmos o processo sócio histórico cultural brasileiro em relação à vacinação como a revolta da vacina. Essas visões anti científicas competem em direção contrária ao poder científico. A ciência pode ser reproduzida por puros achismos e não baseadas em experimentos ou fatos.

Charge sobre as doenças mais letais do Brasil na virada do século 19 para o 20 (Biblioteca Nacional / Agência Senado) Apud https://www.360meridianos.com/especial/revolta-da-vacina

Ainda sobre a COVID-19, foram os números apresentados pelo YouTuber e Pesquisador Atila Iamarino, que foram divulgados pela Universidade de Cambridge em que se fazia uma análise estatística sobre o Brasil de que 1 milhão de pessoas morreriam, caso medidas sanitárias não fossem estabelecidas.

Por fim, isso fica evidenciado por Martins (2006, p. XXIX), “Quem conhece realmente a história da ciência sabe que as alterações históricas são lentas, graduais, difusas”. Ou seja, a mudança de comportamento de um grupo social demanda tempo devido às suas representações sociais geradas dentro de um grupo.

A pesquisa realizada pela Universidade de Cambridge, divulgada pelo divulgador científico Atila Iamarino, mostra muito bem esse exemplo de que a ciência não é feita de achismos. 

Após este ter realizado uma live em seu canal do YouTube sobre a projeção de mortos que a COVID-19 causaria no país caso nenhum medida fosse tomada no começo de 2020, o influenciador foi motivo de chacota nos fóruns da internet, devido ao elevado número de mortos (1 milhão) estimado pela pesquisa. 

Mas, felizmente, medidas sanitárias, como o uso obrigatório da máscara, o distanciamento social, e até mesmo o lockdown em algumas cidades brasileiras, foram capazes de atenuar os danos que o coronavírus poderia ter causado no país. 

Os danos foram muitos, mas o número de mortos, infelizmente, chegaram a meio milhão no meio do ano passado. E com as vacinas contra o coronavírus sendo gratuitas e obrigatórias desde janeiro de 2021, este número de mortos no país deu uma boa estabilizada e hoje temos em torno de 680 mil mortos, e 80% da população totalmente vacinada.
Muitas pessoas acreditaram que os números que o Atila divulgou eram exagerados, e que estavam baseados em achismos, o que não é verdade, já que o estudo foi realizado por uma universidade de prestígio, e contou com uma série de análises, variáveis e um grupo de pesquisadores capazes de estimar o impacto que a COVID-19 causaria no mundo caso não fosse realizado nenhum tipo de ação. Quando o estudo foi publicado, no começo de 2020, poucos países tinham adotados medidas sanitárias. 

O estudo foi um dos responsáveis, entre muitos outros, para a conscientização das pessoas, empresas e governos a tomarem iniciativas emergenciais de combate ao coronavírus. Mas infelizmente, houve, e ainda há, pessoas que consideram estes estudos como achismos.
E não há dúvida, que está pandemia está marcada na história, e que no futuro iremos ter historiadores questionando os motivos de países e cidadãos recusarem vacinas e desacreditarem da eficácia dos estudos científicos.
Por isso a importância de profissionais da educação que façam uso da história da ciência para a conscientização de eventos e acontecimentos históricos relacionados a ciência.

Concluímos que realmente as mudanças demandam tempo e conhecimento por parte dos envolvidos. Com isso, podemos analisar a importância da difusão do que é a cultura cientifica no Brasil em sua linguagem e estudo. Analisando boa parte da forma pela qual a população se informa atualmente, podemos considerar que um grupo muito seleto tem consciência da necessidade em disseminar informações confiáveis e coerentes, sobre como a ciência impacta positivamente nosso cotidiano. De encontro com essa percepção, Martins (2016) reflete que a reação contra o poder da ciência pode levar a defender uma posição de que todo conhecimento não passa de mera opinião, percepção realista de como esta sendo tratando assuntos de saúde publica no contexto do nosso país. Um descaso com a população, fundamentado por negacionismo e mera opinião.

Criticando os negacionismos da pandemia no Brasil: novas estratégias 


Embora estejamos tratando de um tempo em que a ciência se desdobre na resolução de problemas da humanidade, o negacionismo se propõe a ser um agente da anticiência, negando todo o conhecimento produzido nos espaços de pesquisa e ridicularizando os sujeitos que constroem o conhecimento acadêmico. 

É notório que se criou uma cultura dos espaços de pesquisa isolada dos espaços sociais comuns. É bastante comum que haja comunicação acadêmica entre os pares e pouca divulgação científica entre as pessoas. Nesse segmento é que Roberto Martins em “Estudos de História e Filosofia das Ciências: subsídios para aplicação no ensino” explica que o papel do professor pesquisador é importante, pois ao se deparar com a reprodução dessas concepções alternativas a ciência, o docente deve utilizar de novas estratégias, assumindo a existência do equívoco do estudante e não ridicularizando (MARTINS, 2006). 

Contudo, é importante ressaltar que são tempos difíceis para os propagadores da ciência, assim interpreta Marília Fiorillo na coluna Conflito e Diálogo no Jornal da USP de 17/07/2020. “Estamos no estágio da mentira pura, simples e desaforada”. Nesta perspectiva,  líderes populistas da extrema direita se escoaram no negacionismo para propagar um discurso de negação dos fatos, a fim de preservar uma posição autoritária e controle social através do medo.

É razoável dizer que os negacionistas não compreenderam a importância da vacinação e mesmo com o número alto de mortes em decorrência da COVID-19 e as novas cepas surgindo, parte da população que nega o conhecimento científico ainda não quer ser vacinada.
O movimento antivacina é cultural se relacionarmos com o movimento do ano de 1904, que gerou a Revolta da Vacina contra a varíola. O tempo para a população se conscientífizar foi 67 anos desde o desenvolvimento da vacina e só foi erradicada em 1971. 
Análogo, é preocupante em relação à COVID, uma vez que já temos a vacina e parte da populção não quer se vacinar, logo, não conseguiremos erradicar a COVID tão rápido, entretanto, novas cepas vão surgindo.
A escola é o espaço ideal para a conscientização, e assim, não correr o risco de  repetir o que aconteceu com a varíola.

Essa discussão me fez relembrar de um documentário chamado “A fábrica da ignorância”, de 2020. Este documentário traz a tona como a indústria do tabaco utilizou-se da ciência para validar que o ato de fumar seria benéfico para a saúde, além de outros bons exemplos de negações de fatos e evidências que estão ocorrendo na sociedade, como a mudança climática, a morte das abelhas relacionadas a inseticidas, e todo uma gama de conhecimentos científicos que são constantemente questionados pela sociedade. 

Para o documentário, existe um lobby de empresas e governos que se beneficiam com estes discursos anticientíficos. Este documentário está disponível no YouTube legendado. Vale a recomendação. (link :https://www.youtube.com/watch?v=xwTqMH78vxI&ab_channel=Permaculturando)

Uma outra  é o filme: “Não olhe para cima”, na qual aborda questões que estão por trás do negacionismo científico, como motivações políticas obscuras, o lucro absurdo daqueles que ganham com as desgraças e mortes. O enredo do filme traz o argumento da vida do planeta ser colocada em risco para tentar extrair minérios do meteoro. 

A pequena parcela que arrisca a vida de todos é a mesma que foge momentos antes da colisão, pois simplesmente pegam suas naves, jatinhos ou correm para os bunkers e vão para um lugar seguro e distante das misérias que provocaram.  Enquanto isso, a grande massa está preocupada no filme com a separação e reconciliação de famosos. Criam memes dos cientistas que são chamados de alarmistas, sensacionalistas, entre tantas nomes. A ficção imita a realidade de uma maneira que perturba. 

Apesar da ciência ter se desenvolvido, suas premissas ainda estão distantes da população. O que torna urgente uma divulgação científica voltada para o público que não está na academia, de uma maneira moderna e didática via redes sociais, podcasts, memes, entre outros.

OMS declara pandemia de coronavírus. Fonte:https://blogdoaftm.com.br/charge-oms-declara-pandemia-do-coronavirus/

1 – Doutoranda no Programa de Ensino e História das ciências da UFABC;

2- Mestrandos no Programa de Ensino e História das ciências da UFABC;

3 – Docente da UFABC.

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