A praça, o coreto e a memória dos espaços urbanos de relação

Esta dissertação apresenta a proposta de fomentar uma discussão historiográfica que considere a fotografia em sua dupla dimensão, como fonte e testemunho de memória, privilegiando-a como um lugar de lembrança relacionada a todas as representações a ela associadas, sejam história de vidas, sejam monumentos arquitetônicos; entendendo memória como o conjunto de lembranças preservadas e esquecidas de um indivíduo ou de uma coletividade, em um processo contínuo de construção e reconstrução. Fatos e paisagens, espaços urbanos de relação, desaparecem no esquecimento quando não existe interesse em rememorá-los, porque houve perda de valor para determinado grupo ou coletividade ou porque não existe nenhum meio de restituir sua imagem.

Com este parágrafo iniciei o resumo do trabalho final da minha dissertação de Mestrado, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Ana Maria Dietrich (UFABC/SP), realizado na Universidade Severino Sombra, atualmente, Universidade de Vassouras, na cidade do mesmo nome, localizada no centro-sul do Estado do Rio de Janeiro, finalizada no ano de 2012.

É um “retrato” bem representativo da proposta de pesquisa que desejava realizar: “uma discussão historiográfica”, onde num pensamento inicial, estaria percorrendo o campo da história e sua relação com a fotografia enquanto fonte. A análise do objeto fotográfico como testemunho de memória e lugar de lembrança foi sugestão da minha orientadora.

Desta forma, além das discussões teóricas, foi-me possível desenvolver narrativas imagéticas da formação urbana da Vila de Entre-Rios, no período entre 1861 e 1939, quando se tornou cidade de Três Rios/RJ, emancipando-se de Paraíba do Sul/RJ. As fotografias (em conjunto com outras fontes históricas, principalmente jornais da época) permitiram trazer a lembrança das histórias de vidas e dos monumentos arquitetônicos.

Fotografia 1: Vista externa da Capela de São Sebastião e seu entorno. Sem fotografo definido, acervo André Mattos.

Entre os monumentos históricos e espaços de relação importantes na formação urbana da Vila de Entre-Rios temos a primeira praça arquitetada no distrito, um espaço arborizado próximo ao Largo da Capelinha e da Estação Ferroviária da Central do Brasil, onde durante as décadas iniciais do século XX, ocorriam as manifestações políticas, culturais e cívicas, como as apresentações da Banda 1º de Maio. 

A Praça da Autonomia, inicialmente, Praça Oscar Weinchenk, construída em 1902, por Francisco Ferreira Ribeiro, o Chico do Sossego, com a colaboração dos ferroviários do então distrito, destacando-se o seu Coreto feito em pedra e ferro.

A fotografia 1 nos apresenta uma vista externa da Capela de São Sebastião (o seu entorno então conhecido com o Largo da Capelinha), no final do século XIX ou nos primeiros dias da década de 1910. Atrás da igreja a direita observa-se o espaço onde seria construída a Praça Oscar Weinchenk e a frente, no primeiro plano o pontilhão sobre a estrada de ferro e construções de um complexo arquitetônico da Estação Ferroviária da Central do Brasil, e ao fundo da imagem algumas casas e o terreno que se estende até a margem do Rio Paraíba do Sul.

É possível também observar algumas pessoas no entorno da Capelinha: do lado direito da imagem, uma charrete com um homem possivelmente descarregando algum produto para o pequeno comercio que ali existia; a esquerda, mais dois indivíduos e uma outra pessoa na janela do prédio. A pesquisa comprovou que o espaço urbano da Vila de Entre Rios se desenvolveu do entorno da Estação Rodoviária da Estrada União e Indústria e depois da Estação Ferroviária da Central do Brasil em direção às margens do Rio Paraíba do Sul.

Fotografia 2: Vista da Praça Oscar Weinchenk, anterior a década de 30 do século passado, sem fotógrafo conhecido, acervo André Mattos.

Na fotografia 2 observa-se ao centro e ao fundo a Praça Oscar Weinchenk e em seu entorno temos no primeiro plano as mesmas estruturas que encontramos na imagem 1, inclusive com pessoas atravessando o pontilhão e um trem a direita e vagões a esquerda do registro. Existe um número maior de casas e estabelecimentos comerciais comparada com a fotografia 1 demonstrando que realmente a formação do espaço urbano de relação da Vila de Entre Rios, seguiu em direção ao Rio Paraíba do Sul, claramente visto nos fundos da imagem.

Retomo neste artigo ao tema motivado por uma Ação Civil Pública impetrado pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, em março deste ano, através da Promotora Drª Luana Cruz Cavalcanti de Albuquerque em face do MUNICÍPIO DE TRÊS RIOS, com base nos fatos e fundamentos expostos na sua peça inicial:

Fotografia 3: Vista da Praça Oscar Weinchenk, onde, no primeiro plano, aparecem três crianças e ao fundo o Coreto, com mais três crianças à sua frente. Registro sem autor conhecido da década de 1920, acervo André Mattos.

(…) I – DOS FATOS: Em 17 de junho de 2019, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, por intermédio da 2ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva de Três Rios, instaurou o inquérito civil nº 37/2019 P–MA em razão de Notícia de Fato, encaminhada pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural – INEPAC, em que o noticiante relatava a ilegalidade da permanência das barracas e stands instalados na Praça da Autonomia, ambiência de um coreto tombado pelo referido instituto, sendo certo que o Município réu, regularmente notificado para efetuar a retirada das instalações do local, quedou-se inerte. Segundo se verifica da notícia de fato encaminhada pelo INEPAC o coreto em questão foi tombado por meio do processo administrativo E-18/300.189/1986 (fls. 43/75 do IC em anexo), constituindo-se, nas palavras do próprio Instituto noticiante, um belo exemplar na tipologia dos coretos fluminenses, instalado numa praça central da cidade, sendo que esta praça se consubstancia em área de proteção da ambiência do referido coreto (…). O requerido solicitou ao INEPAC a instalação de barracas e stands na Praça da Autonomia, no ano de 2014. O Instituto autorizou, de forma precária, a instalação provisória desses stands, pelo prazo máximo de 1 ano. Findo o prazo, as barracas deveriam ser retiradas do bem tombado e da praça que o ambienta, também protegida. Ambos, ainda, deveriam ser submetidos a projeto de reforma, com recursos obtidos junto a programa estadual de incentivo à cultura e ao patrimônio histórico. (…) A solicitação de instalação dos stands por parte do Município tinha como fundamento a necessidade de reforma das instalações da Rodoviária antiga da cidade, local onde as barracas dos vendedores ambulantes estavam anteriormente situadas. Acreditando na justificativa e no compromisso do Município, o INEPAC autorizou a mudança provisória, nos termos sobreditos. O prazo iria até junho de 2015. Porém, quase oito anos depois, mesmo após notificações extrajudiciais pelo INEPAC e intervenção deste órgão ministerial, os stands permanecem na Praça da Autonomia. Destaca-se que a municipalidade chegou a solicitar a prorrogação de prazo da autorização provisória dos stands ao INEPAC, todavia, esse foi categórico ao negar: “…. O tombamento estabelece como área de tutela para a proteção da ambiência todo o perímetro da citada praça. (…) Em recente vistoria ao local, os técnicos deste instituto verificaram que os stands anteriormente provisórios, já apresentam uma configuração permanente. (…)

O texto também relaciona conceitos de fundamentos jurídicos que se destaca pela preocupação com a preservação da memória e do patrimônio material e cultural de uma sociedade, relacionando-os a proteção ao meio ambiente, destacando-se:

Fotografia 4: Segundo registro da Praça Oscar Weinchenk, destacando ao fundo o Coreto que existe no local até os dias de hoje, com um grupo de crianças à frente, e ao centro, no primeiro plano, à esquerda, um possível guarda. A imagem permite perceber também as plantas e árvores dos jardins. Fotografia sem autor conhecido, realizada na década de 1920, acervo André Mattos.

(…) A proteção ao meio ambiente constitui um dos valores mais caros à sociedade, eis que visa proporcionar, direta ou indiretamente, melhoria à qualidade de vida das pessoas, bem como à própria preservação de nossa espécie, razão pela qual é tido como direito fundamental atrelado ao princípio da dignidade humana e ao mínimo existencial. A Constituição da República, visando a preservar tão precioso bem, asseverou que: Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Tal norma vem complementada pelo art. 182 da Constituição da República ao dispor que: “a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”. Isto porque, como é cediço, o meio ambiente classifica-se em meio ambiente natural, meio ambiente artificial, meio ambiente cultural, meio ambiente do trabalho e patrimônio genético. Na hipótese dos autos, convém trazer os conceitos de meio ambiente artificial (arts. 225 e 182, da CR). Segundo Celso Antônio Pacheco Fiorillo: “O meio ambiente natural ou físico é constituído por solo, água, ar atmosférico, flora e fauna. Concentra o fenômeno da homeostase, consistente no equilíbrio dinâmico entre os seres vivos e meio em que vivem”. Enquanto o meio ambiente artificial “é compreendido pelo espaço urbano construído, consistente no conjunto de edificações (chamado espaço urbano fechado), e pelos equipamentos públicos (espaço urbano aberto)”. Nada obstante, é de se dizer que a Constituição republicana de 88 não ignorou a necessidade de preservação dos bens referentes ao patrimônio histórico e cultural da sociedade brasileira. É bom que se diga que o tombamento, espécie de limitação administrativa, não está vinculado apenas à noção de grandiosidade e beleza artística do objeto ou espaço tombado, mas está intrinsicamente ligado à noção de continuidade histórica, à sensação de representatividade e pertencimento de uma comunidade com o local em que vive. (…) Tanto por isso, longe de ser um capricho, a preservação do patrimônio histórico, além de atrelar-se à memória coletiva, prestigia, ao fim e ao cabo, a dignidade da pessoa humana, permitindo às pessoas que vivem no local uma interação mais ordenada e consciente com o meio ambiente ao redor, assim considerado em seu conceito mais elastecido.

Fotografia 5: Vista da Praça Visconde do Rio Novo, fotografia do início da década de 1940, sem fotógrafo conhecido. Acervo André Mattos.

A “preservação do patrimônio histórico” e a sua relação com a memória de uma sociedade, encontra na imagem fotográfica um lugar de lembranças e ponto de referência à memória substanciada nas relações sociais que ocorrem nos espaços urbanos, porque vivemos um momento em que as teorias e ideologias diversas da historiografia, e das demais ciências humanas, convivem e dialogam apesar dos reconhecidos e naturais conflitos. Ao retomar as narrativas vinculadas aos patrimônios históricos, as fotografias dos espaços urbanos construídos e transformados, se interrelacionam na construção historiográfica, com memórias individuais e coletivas, memórias silenciadas, memórias impostas pelos detentores de poder, memórias de grupos e de trabalhadores, que conforme Ecléa Bosi (2004, p. 16) define, formam a “substância social da memória”.

A atual Praça da Autonomia (nos jornais anteriores a década de 20, este local é chamado de Parque Oscar Weinchenk) apresenta-se ainda com as mesmas configurações de sua construção, com seu Coreto, arquitetado pelo oficial serralheiro Alfredo José de Souza, erguido em estilo colonial ainda preservado, possui guarda-corpo em serralharia e cobertura metálica, amparada por colunas delgadas ornamentadas, ao alto, com apliques rendilhados. E, sobre a cobertura, há um lanternim decorado com liras. Diferencia-se no piso e na presença de bancos e mesas, utilizadas durante o dia principalmente por aposentados para jogos de cartas, damas, e para encontros com os amigos.

Fotografia 6: Detalhe da copa do Coreto neste registro de Isabela Kassow/Diadorim Ideias, sem data conhecida. Disponível em http://mapadecultura.com.br/manchete/praca-da-autonomia#prettyPhoto. Acesso jun de 2023.

Era um dos espaços urbanos mais arborizados da Vila, sua denominação atual é uma homenagem aos autonomistas que se reuniam sob as sombras de suas árvores e junto ao coreto. O espaço existente entre a capela e a estação ferroviária foi conhecido durante muitos anos, como o Largo da Capelinha, recebendo o principal fluxo de pessoas no distrito pelo embarque e desembarque de passageiros e mercadorias na Estação Ferroviária da Central do Brasil. Entre estas “corria” a Rua da Condessa, trecho urbano da Estrada União e Indústria, acontecendo no local maior concentração de lojas comerciais, hotéis e casa bancária.

Ao seu redor foram se formando diversas lojas e prédios comerciais, o maior supermercado da cidade e a antiga Rodoviária Municipal, conhecida popularmente ainda hoje como “rodoviária velha”, atualmente abandonada, que em seu tempo de funcionamento, recebia um grande fluxo de pessoas diariamente.

No registro 5, tem-se a Praça Visconde do Rio Novo, construída no local da Capela de São Sebastião, depois que esta foi demolida em 1936, bem ao lado a atual Praça da Autonomia. Observam-se pessoas e um cavalo atravessando as ruas, no segundo plano à esquerda, indivíduos junto às árvores, com uma criança correndo.

A praça desaparece no final da década de 1950, para a construção da Rodoviária Roberto Silveira, conhecida atualmente como a “rodoviária velha”. As lojas existentes no local ainda possuem seus endereços atrelados ao nome da Praça Visconde do Rio Novo, logradouro que não mais existe.

Por requerimento do Conselho Municipal de Cultura de Três Rios/RJ, ambos, Coreto e praça foram tombados inicialmente pelo INEPAC (Instituto Estadual do Patrimônio Cultural), em 1992 e cinco anos depois, pelo municipal.

Durante anos a praça foi espaço social e cultural abrigando encontros musicais e políticos – como a campanha política dos autonomistas que buscaram a emancipação do município e atividades cívicas como o que se observa na fotografia 7, onde se tem a presença de alunas de escolas do município (no primeiro plano a esquerdas jovens terminando o plantio de uma muda, acompanhada possivelmente por uma professora).

Identifica-se na fotografia: terceiro da esquerda para direita o Prefeito Walter Gomes Francklin, adiante a segunda mulher com vestido branco, Alva Coutinho Carvalhido e os dois últimos, João Pedro da Silveira e Aquilas Coutinho.

Fotografia 7: Registro externo de uma atividade cívica em homenagem ao Dia da Árvore, realizada na Praça da Autonomia. Fotografia do início da década de 1940, sem autor definido, do acervo André Mattos.

As mudanças sucedidas com a implantação de stands (lojas) no piso da Praça da Autonomia ocorreram motivado pela depreciação de outro patrimônio (não reconhecido) da cidade, a Rodoviária Roberto Silveira. Em seu auge este espaço recebia todos os ônibus que circulavam na cidade (centro/bairros), bem como, aqueles intermunicipais. Também possuía uma biblioteca pública e na parte de baixo, as lojas cujos proprietários foram encaminhados aos stands construídos na praça.

Fotografia 8: Rodoviária Roberto Silveira, a “rodoviária velha”, esta imagem da década de 60.

Na sequência das imagens registradas por Cynara Martins no dia 14/07/2023, fotografias de celular, podemos observar o Coreto e no piso da Praça da Autonomia os stands que o Ministério Público deseja sejam retirados e promovido a restauração de todo o ambiente.

Todo movimento que afeta as organizações dos espaços sociais de relação, também interfere nas memórias de vidas daqueles que estiveram intimamente ligados a estes locais, pois há uma relação entre os espaços sociais e o movimento histórico social, em suas nuanças culturais, econômicas e políticas.

O Homem é um ser social e na medida que intervém nos espaços físicos (urbanos ou não), transformando paisagens, reorganizando-as por interesses diversos e normalmente como uma afirmação de poder, elimina a materialidade da memória dos lugares de tempos anteriores, onde sujeitos históricos deixaram as “marcas” de suas vidas.

Não é exagerado dizer que a organização dos espaços urbanos se faz concomitante com a memória. A distribuição dos trajetos, a fixação dos habitats, a organização das atividades, o controle dos fluxos – seja através da administração dos movimentos, ou através da organização e distribuição do trabalho – são, a um só tempo, empreendimentos de constituição de espaço e memória. (MACIEL, in COSTA e GONDAR. 2000, p. 11)

A atuação do Ministério Público neste caso, se faz importante para que retornemos, no influxo da lei, as estruturas iniciais da Praça da Autonomia mantendo as memórias que são parte da história da minha cidade natal, Três Rios/RJ.

Fotografia 9: Coreto da Praça da Autonomia e ao fundo um dos stands. Registro de Cynara Martins por celular em 14/07/2023.

Fotografia 10: Coreto da Praça da Autonomia com a seu porão aberta, revelando um espaço para acomodação de materiais utilizados pelos funcionários da prefeitura. A imagem também sinaliza a necessidade de restauração deste monumento. Registro de Cynara Martins por celular em 14/07/2023.

Fotografia 11: Algumas stands com produtos para venda na Praça da Autonomia, e ao fundo o Coreto. Registro de Cynara Martins por celular em 14/07/2023.

Fotografia 12: Imagem similar a anterior com algumas stands com produtos para venda na Praça da Autonomia, e ao fundo o Coreto. Registro de Cynara Martins por celular em 14/07/2023.

Fotografia 13: A “Rodoviária Velha” desfigurada da sua formatação inicial, nesta imagem realizada em junho de 2016. Disponível em https://globoplay.globo.com/v/5122949/. Acesso em jul 2023.

Referências:

COSTA, Icleia Thiesen Magalhães e GONDAR, Jo. MEMÓRIA E ESPAÇO. 7 Letras, Rio de Janeiro/RJ, 2000.

BOSI, Ecléa. O Tempo Vivo da Memória. Ensaios de Psicologia Social. Ateliê Editorial. São Paulo/SP, 2ª Edição, 2004.

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