Fotografia, Memória e Esquecimento: retratos e representações da mentira.
“Eu me disse então, com um espanto que jamais pude reduzir: vejo os olhos que viram o Imperador! Vez ou outra eu falava desse espanto, mas como ninguém parecia compartilhá-lo, nem mesmo compreendê-lo (a vida é, assim, feita a golpes de pequenas solidões), eu o esqueci.” (Barthes. 2008 p. 11)
Assim Barthes inicia sua obra – A Câmara Clara, primeiro referencial sobre a temática da Fotografia, quando dos meus estudos sobre o tema. De todos os autores pesquisados, das leituras realizadas antes e depois da pesquisa para o mestrado, Barthes é aquele com quem mais me aproximo de suas reflexões quanto a análise da Fotografia. A Câmara Clara, considerado por muitos sua melhor obra, é o livro por mim mais lido e rabiscado… muitas anotações e comentários.
“___Você é muito Barthiano””. Essas foram as primeiras palavras da Profª Kátia Peixoto dos Santos quando da avaliação da minha dissertação do Mestrado. Considerei um elogio.
O meu interesse pela imagem fotográfica percorre os campos da representação social: as pessoas, os lugares (espaços de interação e vida), a face, os olhos, o corpo e as relações de poder.
Não me atenho a busca de uma definição decisiva da Fotografia (“Em relação a Fotografia, eu era tomado de um desejo “ontológico”: eu queria saber a qualquer preço o que ela era “em si”, porque traço essencial ela se distinguia da comunidade das imagens.” (Barthes. 2008, p. 12), nem procurei reconhecer prioritariamente suas evidências técnicas. Barthes no início do livro afirmava a sua não certeza de que a Fotografia possuísse um “gênio” próprio.
Impressiona-me o quanto as pessoas procuram interferir na construção fotográfica, “mudando” realidades, histórias, mentindo, criando ilusões, fugindo a vida utilizando de artifícios para apagar o que incomoda e “vender” imagens para lembranças do que não foi. Essa é uma prática recorrente quando no trato das questões políticas.
Domingues descreveu que (2015):
“Rastreando fotos em diversos arquivos e bibliotecas da Europa, o jornalista francês Alain Joubert encontrou centenas de fotos originais diferentes daquelas publicadas nos jornais e revistas. Elas foram editadas, cortadas, montadas ou tiveram pedaços apagados conforme a conveniência do líder político daquele momento. Os beneficiários destas operações foram os chefes de governos Mussolini, Hitler, Lenin, Stalin, Mao, Tito, Kin II Sung.”
Fotografia 1 e 2: “Joseph Stalin declarou-se sucessor de Lênin no comando da URSS e pouco depois empreendeu uma feroz política de perseguição aos seus adversários. Trotsky foi expulso do país e acabaria assassinado, em 1941, no México, para onde havia se exilado. Stalin mandou apagar as imagens de seus adversários nas fotografias e, com isso, suprimi-los da memória popular para escrever uma “nova história do comunismo. A foto oficial de Lênin discursando sozinho no palanque foi publicada milhares de vezes em jornais, revistas e livros didáticos e serviu de inspiração a pinturas como a tela de Issac Brodsky, feita em 1933.” Disponível em https://ensinarhistoria.com.br/fotografias-que-falsificam-a-historia/. Acesso em mai 2023.
Barthes (2008, p. 13) escreveu que: “para designar a realidade, o budismo diz sunya, o vazio; mas melhor ainda: tathata, o fato de ser tal, de ser assim, de ser isso.” Mesmo no irreal a imagem construída, modificada, demonstra isso… o não desejar que seja o verdadeiro, e desta forma, ainda Barthes (2008, p. 14); “tal foto, com efeito, jamais se distingue de seu referente (do que ela representa)”, mesmo sendo este simulado.
Em seu livro, 1932 – Imagens Construindo a História, Jeziel De Paula, apresenta a capa da Revista da Semana, edição de 8 de novembro de 1930, que tinha a seguinte legenda: “O presidente Getúlio Vargas, no carro presidencial, a caminho de S. Paulo. Sentado à direita do eminente brasileiro, o general Miguel Costa. De pé, o coronel Góes Monteiro, chefe do Estado-Maior das forças revolucionárias.”
No original dois elementos foram deliberadamente excluídos: o coronel Miguel Alberto Crispin da Costa, oficial de cavalaria das Forças Públicas de São Paulo e Francisco Morato, presidente do Partido Democrático de São Paulo e líder da Aliança Liberal do mesmo Estado.
Sobre o fato escreve De Paula (1999, p. 53):
“Nesse caso, apenas duas fotografias forneceram indícios documentais que induziram a uma nova hipótese interpretativa do episódio. A evidência de uma manipulação intencional da imagem fotográfica no expurgo da figura do líder e presidente do Partido Democrático Francisco Morato leva a supor que o alijamento das forças políticas da Aliança Liberal em São Paulo teve início já a partir dos últimos dias de outubro de 1930. Nessa perspectiva, não devemos descartar a hipótese de que o chamado movimento constitucionalista tenha começado bem antes do que se acreditava e se originando no interior das próprias forças que conduziram Vargas ao poder.”
Fotografia 3: Capa da Revista da Semana, edição de 8 de novembro de 1930.
Fotografia 4: A Fotografia original que foi manipulada para exclusão dos dois elementos.
Diante desta condição a Fotografia continua a interceder na relação entre a Memória e a História, numa dinâmica em que o tempo, o espaço, a lembrança e o esquecimento estão em constante movimento: ao tempo a possibilidade de interrupção, ao espaço a distância, na lembrança a rememoração e o compartilhamento, e ao esquecimento sua análise, a causa, a ideologia, seu sítio na memória. Em alguns momentos é possível delinear o fato histórico pela ausência e exclusão, pelo apagar do que se pretende esquecido.
O tempo fragmenta-se na fotografia e na memória, retomando seu ritmo, quando a percepção repousa sobre a imagem e esta desperta lembranças – saudades pousadas em retratos -, agitando a memória num instante que vence a distância temporal entre o corte fotográfico, a observação, e a análise do referente imagético. Somente a imagem fotográfica e a imagem da memória são capazes de lidar com tempo retomando o seu fluxo através da lembrança e desta maneira, permanecendo sempre muito próxima a realidade.
Qual a memória personificada na Fotografia? Somente a do fotógrafo naquele momento do seu interesse, refletindo apenas as suas emoções e sentimentos? O que você vê na imagem fotográfica é o que ela faz com você, no compartilhar de lembranças que da memória ressurgem:
“Essa fatalidade (não há foto sem alguma coisa ou alguém) [e esta coisa ou alguém encontra similaridades em nossas lembranças, sentimentos ressurgem do esquecimento] leva a Fotografia para a imensa desordem dos objetos – de todos os objetos do mundo.” (Barthes. 2008, p. 16) Por isso não me atenho a interpretar, como Barthes, a “Foto-segundo-o-Fotógrafo”. As Fotografias, apesar de “nascerem” no propósito, na técnica de alguém, não se resume apenas a este traço.
Vou acreditando que não é possível a Fotografia ser aprisionada em um único discurso.
Referências:
BARTHES, Roland. “A Câmara Clara”. Rio de Janeiro. Editora Nova Fronteira. 2008.
2 comentários em “Fotografia, Memória e Esquecimento: retratos e representações da mentira.”
Fotografia sempre nos remete a um tempo que já foi, que já aconteceu……mesmo que há alguns segundo atrás……sempre o tempo que já passou deixando saudades, muitas vezes tristezas, muitas vezes alegrias. Quantas emoções não são exteriorizadas do nosso eu ao vermos uma fotografia…daí no dizer do autor …” O tempo fragmenta-se na fotografia e na memória, retomando seu ritmo, quando a percepção repousa sobre a imagem e esta desperta lembranças – saudades pousadas em retratos -, agitando a memória num instante que vence a distância temporal entre o corte fotográfico, a observação, e a análise do referente imagético. Somente a imagem fotográfica e a imagem da memória são capazes de lidar com tempo retomando o seu fluxo através da lembrança e desta maneira, permanecendo sempre muito próxima a realidade.”
Fotografia sempre nos remete a um tempo que já foi, que já aconteceu……mesmo que há alguns segundo atrás……sempre o tempo que já passou deixando saudades, muitas vezes tristezas, muitas vezes alegrias. Quantas emoções não são exteriorizadas do nosso eu ao vermos uma fotografia…daí no dizer do autor …” O tempo fragmenta-se na fotografia e na memória, retomando seu ritmo, quando a percepção repousa sobre a imagem e esta desperta lembranças – saudades pousadas em retratos -, agitando a memória num instante que vence a distância temporal entre o corte fotográfico, a observação, e a análise do referente imagético. Somente a imagem fotográfica e a imagem da memória são capazes de lidar com tempo retomando o seu fluxo através da lembrança e desta maneira, permanecendo sempre muito próxima a realidade.”
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Isso mesmo Liz, sua análise tbm foi muito boa, obrigado!
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