André Mattos
A melancolia não é uma coisa de que devamos nos libertar a qualquer custo, porque ela faz parte da nossa condição, de tal sorte que nosso real, para ser vivo, tem também de comportar a ausência do que não é mais, mas que foi. A realidade não se deixa absolver nem por uma morte que não seria mais real do que qualquer vida, nem pela ilusão de que somente a vida é real e que toda morte pode se dissolver nela. (Abel, 2012, prefácio, p. XII)
A saudade e a nostalgia são sentimentos que aprofundam o luto e que deveriam ser evitados, entendem alguns. Compartilho do pensamento de Ricoeur, lembrado por Abel, onde este afirma que “somente os enlutados serão consolados”. (RICOEUR, citado por ABEL. 2012)
Viver o luto (definido por Ricoeur (2012) como a “separação aceita do finado que se afasta, se desapega do vivo para que este sobreviva”), a memória, a lembrança e a saudade, é ensaiar o encontro da morte do outro com a impossível experiência da nossa morte; é a experiência de antecipação, conforme afirma Abel (2012) do luto que os que irão ficar, terão de viver após nosso desencarne, ou “quando desaparecermos.”
Philippe Ariès (2012), que na obra História da Morte no Ocidente, estuda os costumes ante a morte nas culturas cristãs ocidentais, motivado pela “importância, para a sensibilidade contemporânea dos anos de 1950-1960, da visita ao cemitério, da devoção aos mortos e da veneração aos túmulos”; busca, entre outros aspectos, entender a dificuldade humana de viver a perda do ente próximo, porque a “morte do outro”, também sinaliza a sua própria condição de sujeito mortal e as dúvidas com relação a uma realidade que percebe em esperança na sobrevivência.

Fotografia 1: Túmulo no cemitério de Rio Claro/SP. Retrato de uma criança morta preparada para o sepultamento, imagem que representa um sono em paz, a angelitude da infância.
As representações que encontramos principalmente nos túmulos nos cemitérios, são signos de uma eternidade esperada, um lamento nostálgico, e o desejo de preservar a identidade e a memória do ente querido e como consequência, a nossa própria diante da certeza na finitude da vida; bem como, busca impedir o esquecimento a que todos estamos sujeitos, constituindo-se assim em lugar de lembrança e de saudade.
As representações da morte e da esperança da vida pós-morte que encontramos em nossa cultura cristã ocidental, “revela um momento fundamental no trabalho do luto e da finitude aceitada de ter nascido e ser mortal.” (ABEL, 2012, prefácio, p. XI)
Os mortos permanecem na memória dos vivos e nos lugares de lembrança destes: os cemitérios com seus mausoléus, túmulos, as inscrições funerárias, os espaços de culto (também organizados por alguns em seus lares), as imagens sacras e as fotografias dos mortos. “O imaginário procede por deslocamento e generalização: meu morto, nossos mortos, os mortos”; (RICOEUR. 2012) eu morto.

Fotografia 2: Jazido perpétuo com retratos de familiares enterrados no mesmo espaço. Os túmulos são lugares de lembranças, de saudade, de luto e de culto aos que faleceram. Cemitério Municipal Drº Leopoldo Machado, centro de Paraíba do Sul/RJ. Registro de 11/2012, acervo André Mattos.
A experiência de quem sobrevive à morte de um ente querido é na verdade o encontro com a sua própria realidade de ser finito, percebendo-se irremediavelmente mortal; é “a consciência de si e do outro, o sentido da destinação individual ou do grande destino coletivo.” (ARIÈS. 2012, p. 23)
Mesmo diante destas representações de uma continuidade da vida e de uma ressureição esperada, ressureição no sentido de um despertar consciente em outro lugar após o tempo de não se saber morto, ainda não nos livramos do apego egoísta que deseja o outro amado tão preso e limitado como todos somos na experiência de viventes nesta realidade.
Escreve Abel (2021) que o luto se revela como uma condição importante da bondade de viver, “seja na forma de um apetitoso desejo de existir que revida com veemência a ameaça vital, seja na forma do desapego e de uma despreocupação consigo (e com o outro) repleta de gratidão.”
Gratidão pela existência do outro em minha vida; gratidão pela esperança do reencontro,… gratidão por esta “ressureição” como um reviver, um continuar a existir, enfim, um vencer a morte.
Entendo que as imagens da morte que encontramos nos cemitérios não se apresentam como desejo de afugentar a ideia da morte, mas para indicar a esperança, de uma continuidade, de uma sobrevivência em condições mais favoráveis do que a experimentada em vida.

Fotografia 3: Nesta imagem além da fotografia do ser amado, têm-se a identificação do batismo católico (registrado na data entre o nascimento e a morte) como ação que possibilita a “conquista” de um lugar “na grande família de Jesus” (figura incorporada a imagem), reafirmando desta forma, a crença na sobrevivência do ser além da morte. O retrato funciona aqui como um atestado da morte e da esperança na continuidade da vida. Cemitério Municipal Drº Leopoldo Machado, centro de Paraíba do Sul/RJ. Registro de 11/2012, acervo André Mattos.
A memória dos vivos e a lembrança dos mortos funcionam então, como a realidade do que há de vir, “o caminho da antecipação da iminência de ser tragado por minha vez a massa perdida” (RICOEUR, 2012) e assim, não se desejando estabilizar no lugar de esquecimento dos que permanecerão vivos após a própria morte, estabelece-se no imaginário e em suas representações, os lugares e objetos de lembranças dos mortos.
Santos, citando Thomaz, escreveu que “o trabalho de luto consiste menos em afastar o morto (matá-lo definitivamente; um indivíduo só está morto quando é completamente esquecido) do que em tentar fazê-lo (sobre)viver em imagem.”
Os monumentos aos mortos se definem desta maneira, no desejo da sobrevivência do ente querido após a morte, que também é o meu desejo de continuar vivo, principalmente na presença das fotografias vernaculares (fotografia anônima, comumente íntima e sem aspirações artísticas).

Fotografia 4: “Foto mortuária no túmulo de Regina Iolanda Perlati – costume da época – única foto deste gênero na necrópole jauense.” Arte Cemiterial de Jaú, cultura e turismo com educação patrimonial, por Julio Polli (2011). Disponível em http://historiadejahu.blogspot.com/2011/07/arte-cemiterial-de-jau-cultura-e.html.
Desta forma, o uso destas fotografias nos túmulos e mausoléus dos cemitérios relaciona-se a necessidade não só de possuir, de reter a imagem dos que amamos, mas de tornar eterno o que na memória garante as lembranças, evitando-se o esquecimento indesejável (do outro e de si), aparecendo neste contexto, como o objeto capaz de atender em grande parte este imperativo tão humano: o de vencer a morte e tornar as pessoas “eternas”.
Sujeitos que permanecem “vivos” na expressão material da imagem registrada, para que o tempo, inevitável inimigo da vida, pois nos conduz invariavelmente a morte, seja vencido.
É a relação permanente entre vida, morte, memória, religiosidade, lembrança e esquecimento, com a fotografia se tornando o próprio signo de que somos mortais e os fotógrafos, verdadeiros Agentes da Morte.

Fotografia 5: Toda uma vida apresenta-se nos diversos momentos registrados em imagens que foram “unidas” nesta fotomontagem. A lembrança não se restringe apenas a um retrato, estende-se pela temporalidade da existência, desde o nascimento, passando pelas idades primeiras, a escola, a festa junina, a infância, a adolescência e a morte no início da maturidade. Cemitério Municipal Drº Leopoldo Machado, centro de Paraíba do Sul/RJ. Registro de 11/2012, acervo André Mattos.
Esta condição de poder “ludibriar a morte” que concede a fotografia a sua aura de objeto místico, mágico, “fonte da juventude”, conservando alguma coisa da temporalidade vivida (passado, presente, futuro), como um objeto de identidade; criando-se então, ao olhar a imagem impressa (como as que apresento), uma lembrança pela similaridade com as próprias memórias, mesmo que a realidade na fotografia não tenha sido por nós vivenciada.
A vida dos mortos fragmenta-se na fotografia e na memória, retomando seu ritmo, quando a percepção repousa sobre a imagem e está desperta lembranças – saudades pousadas em retratos -, e no luto, movimentando a memória no instante que vence a distância temporal entre o corte fotográfico e a observação do referente imagético no presente.
Somente a imagem fotográfica e a imagem da memória são capazes de lidar com tempo interrompendo e retomando o seu fluxo através da lembrança, da nostalgia, do luto, impedindo o esquecimento dos mortos que são, e do morto que sei que serei um dia. E por ser também do mundo dos sonhos, dos mitos, das lembranças, do luto, do esquecimento e da memória, é possível encontrá-la (a fotografia) na sensibilidade poética…
Fotografia
(Leoni/Leo Jaime)
”Hoje o mar faz onda feito criança
No balanço calmo a gente descansa
Nessas horas dorme longe a lembrança
De ser feliz
Quando a tarde toma a gente nos braços
Sopra um vento que dissolve o cansaço
E é o avesso do esforço que eu faço
Pra ser feliz
O que vai ficar na fotografia
São os laços invisíveis que havia
As cores, figuras, motivos
O sol passando sobre os amigos
Histórias, bebidas, sorrisos
E afeto em frente ao mar.
Quando as sombras vão ficando compridas
Enchendo a casa de silêncio e preguiça
Nessas horas é que Deus deixa pistas
Pra eu ser feliz
E quando o dia não passar de um retrato
Colorindo de saudade o meu quarto
Só aí vou ter certeza de fato
Que eu fui feliz
O que vai ficar na fotografia
São os laços invisíveis que havia
As cores, figuras, motivos
O sol passando sobre os amigos
Histórias, bebidas, sorrisos
E afeto em frente ao mar”
Referências:
OLIVIER, Abel in RICOEUR, Paul. Vivo até a morte, seguido de fragmentos. São Paulo. 1ª Edição, Editora WMF Martins Fontes, 2012
ARIÈS, Philippe. História da Morte no Ocidente. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2012.
RICOEUR, Paul. Vivo até a Morte. São Paulo. WMF Martins Fontes Ltda. 1ª edição, 2012.

André,
Me emocionei lendo esse seu texto, que é de uma sensibilidade ímpar. Eu só posso te parabenizar pour tanto talento !
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Obrigado Iole por suas palavras, aproveite as leituras desta revista
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Excelente trabalho fotográfico e poético, pois assim foram os comentários. Neste tema, infelizmente, todas as teorias e artes desaparecem frente a realidade do vivido.
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Obrigado Francisco pelo seu comentário.
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