“Zonas de Contato”: a cidade como um texto possível de ser lido.

Profº André Mattos e Profª Bianca Azevedo Silvério

Não basta reconhecer que a Cidade é educativa, independente de nosso querer ou de nosso desejo. A Cidade se faz educativa pela necessidade de educar, de aprender, de ensinar, de conhecer, de criar, de sonhar, de imaginar que todos nós, mulheres e homens, impregnamos seus campos, suas montanhas, seus vales, seus rios, impregnamos suas ruas, suas praças, suas fontes, suas casas, seus edifícios, deixando em tudo o selo de certo tempo, o estilo, o gosto de certa época. A Cidade é cultura, criação, não só pelo que fazemos nela e dela, pelo que criamos nela e com ela, mas também é cultura pela própria mirada estética ou de espanto, gratuita, que lhe damos. A Cidade somos nós e nós somos a Cidade. (FREIRE, citado por MIRANDA e SIMAN, 2013)

A maior parte da população mundial vive em cidades. No Brasil, como em toda a América Latina, um movimento populacional provocado por fatores socioeconômicos desenvolveu-se entre as décadas de 50 e 90 do século passado, intensificando o êxodo rural, agregando um maior número de pessoas nos espaços periféricos aos grandes centros urbanos, impondo uma geografia da cidade, formando territórios definidos por fronteiras econômicas e socioculturais.

Na análise do processo de urbanização é comum destacar as instigações de infraestrutura, deixando-se comumente de se sublinhar as dimensões subjetivas que envolvem o viver em cidades. É preciso considerar que o espaço urbano é criado, recriado e organizado em função do modelo de sociedade em formação, modelo que impõe ao cidadão “experiências” da cidade, com os sujeitos históricos urbanos construindo na vida social de relação: identidades, significados, cultura e com o tempo, uma memória.

Imagem 1: Cartão Postal antigo, década de 10 do séc. XX, Paris, França, Boulevard des Capucines. Intenso movimento de carros, charretes, pessoas… “cabriolés, carruagens, charretes, carroças, e até bondes puxados a cavalo movimentavam a cena urbana, em Paris ou no Recife, aumentando o fluxo da cidade pelas avenidas centrais. Também fruto da mentalidade moderna, científica, lógica e racional, carros motorizados, bondes elétricos e ferrovias foram deixando para trás a paisagem híbrida, entre o mundo rural e metropolitano, que pontuou a experiência das principais cidades ocidentais e suas colônias na América, durante o crescimento industrial. (Leão, 2012)

Em excelente artigo publicado na Revista Continente, intitulado Cidade: Fronteiras Urbanas, Carolina Leão – Fotografias de Ricardo Mouro, descreve como Recife/PE, que desenvolveu seu processo de modernização urbana no decorrer do século XIX e XX, preserva convivências entre universos heterogêneos, ainda resistentes ao processo de “metropolização”, com a utilização de charretes no transporte das mercadorias para a feira de Beberibe.

“Carroças, carroceiros e charretes complementam a cadeia produtiva desses acontecimentos locais, impulsionando, como qualquer veículo, a chegada de matérias-primas, frutas e animais aos fornecedores intermediários. A relativa distância entre os bairros exige a circulação rápida dos produtos, e a carroça supre a ausência de veículos motorizados entre a população de baixa renda da cidade.” (Leão, 2012)

É importante destacar que esta resistência ocorre pela presença de um modo de viver na cidade, de “trabalhadores semianalfabetos, sem documentos suficientes para se profissionalizar ou regulamentar atividades que, algumas vezes, geram renda equivalente aos setores de serviços e comércio formal” (Leão, 2012); mas vistos como expressão do que é atrasado, arcaico e obsoleto, ensejando a formação de fronteiras sociais.

As fronteiras sociais construídas no decorrer do processo de urbanização estabelecem também formas diferenciadas de “olhar e ler” a cidade. Burke (2005) indica a necessidade de se reconhecer tanto as fronteiras geográficas quanto as de classes sociais, estabelecendo uma visão de fora do olhar de dentro de determinadas culturas, buscando estabelecer uma “experiência de cruzar as fronteiras entre “nós” e “eles”” (BURKE. 2005, p. 152), que possibilite um superar os limites peculiares entre comunidades idealizadas e forjadas pelas diferentes condições socioeconômicas da população.

A compreensão de que as fronteiras são mais espaços de encontro ou “zonas de contato” do que barreiras que impendem a circulação de diferentes ideias e maneiras de viver na/a cidade, é condição para se superar os conflitos que surgem pela não aceitação das relações que ocorre nas “zonas de contato”.

Imagem 2: As fronteiras geográficas são determinadas pelas desigualdades sociais, determinando modos de viver na cidade e também formas diferenciadas de “olhar e ler” a cidade. Fotografia sem autor e data definidos. Disponível em https://brasilescola.uol.com.br/geografia/macrocefalia-urbana.htm. Acesso jun 2022.

Este entender a experiência de conhecer o outro na dinâmica das “zonas de contato” não significa a inexistência de barreiras culturais e conflitos. “Há pelo menos alguns obstáculos físicos, políticos e culturais inclusive a língua e a religião, que diminuem a velocidade dos movimentos culturais ou que os desviam para canais diferentes” ((BURKE. 2005, p. 153) Burke cita Braudel e o seu interesse nas zonas de resistência a tendências culturais, que deveriam ser apreciadas como oportunidade de conhecer o outro na sua expressão de vida e não como espaço impositivo de uma ideologia que se considera superior à do outro, que proporciona ações que se expressam em preconceitos e violências.

Um entre tantos conflitos existentes na atualidade são os chamados “rolezinhos”, que envolvem o espaço dos Shopping Center, como zona de conflitos pela dinâmica de segregação social nos centros urbanos e as práticas culturais de consumo de parcela da sociedade; são encontros realizados nestes locais por jovens que residem principalmente em bairros periféricos das cidades brasileiras, ocorrendo em diversas capitais e cidades grandes brasileiras. Há diversas notícias da presença de policiais agindo violentamente no objetivo de impedir a presença dos jovens nestes ambientes, numa clara demonstração de intolerância socio-raciais.

Imagem 3: Charge representativa do conflito existente nas “zonas de contato” – “A praia carioca e o shopping paulista,  como espaços de integração social é um mito. Ao contrário do que dizem, esses espaços como ambiente de lazer – e de trabalho! – sempre foram bastante demarcados, com evidentes ritos de delimitação social. Cada um no seu quadrado, dizia a música. A classe média, branca, e a dita “nova classe média”, são separadas.    Os novos Capitães do Mato, de uniforme oficial de PM, ou de paletó surrado de segurança de shopping, fazem essa separação de forma eficiente.” – Max Laureano – “Rolezinhos”, Racismo e Segregação. Disponível em https://www.anf.org.br/rolezinhos-racismo-e-segregacao/. Acesso jun 2022.

É diante desta perspectiva que a afirmativa de Paulo Freire acima em destaque torna-se significativa, pois apresenta a cidade como um espaço de relação social onde as dimensões da educação e da cultura se intensificam, caracterizando-a como um espaço de “formação que atinge níveis subjetivos profundos e provoca a cognição permanente (…) um espaço para educar de modo alargado.” (KNAUSS, 2013, p. 10)

Raymond Williams afirma serem as palavras “campo” e “cidade” muito poderosas por cristalizarem e generalizarem as atitudes emocionais oriundas das vivências humanas no decorrer do tempo e em espaços de relação bem definidos. (WILLIAMS, 2011, p.11 e 471)

São expressões “carregadas” de significados e imagens (a fisionomia das cidades, na afirmativa de Lynch, 2010, p. 1). Imagens que tornam a cidade manifesta, perceptível, uma escrita imagética que revela os usos, os costumes, os valores, as sensibilidades de uma época e as mudanças ocorridas ao longo do tempo, representando os discursos dos sujeitos históricos que nelas vivem e se relacionam, e ao mesmo tempo, e por ser discurso, possível de serem lidos, interpretados. Diante desta realidade retomo Paulo Freire quando este educador, citado por Siman (2013), sugere uma “concepção de leitura que começa na compreensão do contexto em que se vive, uma vez que não lemos apenas palavras, os textos e os livros – lemos o mundo, a cidade, as pessoas”.

Imagem 4: Boulevard du Temple, Paris, França, 1853. Deguerrótipo 15 x 18,5cm de Louis-Jacques-Mandé Daguerre, Bayerisches Nationalmuseum, Munique, Alemanha.

Daguerre montou sua câmara em uma janela no andar superior de sua residência no nº 5 da Rue dês Marais, e tirou a primeira foto com seres humanos de que se tem notícia, inseridos no espaço urbano de relação. Carruagens, cavalos e pessoas passavam pelo movimentado bulevar naquela manhã, mas o longo tempo de exposição e a pressa com que se moviam os relegou à condição de fantasmas, apenas a preocupação de um homem com a aparência de seus sapatos faria com que ele e seu engraxate ficassem parados por tempo suficiente para fazerem história. A fotografia permite olhar a cidade, não apenas como construção no espaço, mas como representação dos discursos dos sujeitos históricos que nela estão inseridos, permitindo o conhecer-se as fronteiras e as zonas de contatos e seus conflitos.

 “Cada cidadão tem vastas associações com alguma parte de sua cidade, e a imagem de cada um está impregnada de lembranças e significados.” (Lynch, 2010, p. 1) Entender a cidade como uma narrativa possível de ser lida e sentida – pois se incorpora a esta realidade ainda as questões do tempo, além das concernentes as transformações do espaço; é perceber e consentir que a educação e a cultura se façam presentes no cotidiano da vida de cada um de nós seus moradores, como estão presentes todas as expressões da vida humana através das diversas formatações da linguagem, possibilitando uma compreensão de que as zonas de contato são espaços de relação para se entender o outro e buscar uma convivência mais humana e democrática. (continua…)

Referências:

BURKE. Peter. O que é História Cultural. Jorge Zahar Editor Ltda. Rio de Janeiro/RJ. 2ª Edição. 2008.

FREIRE, Paulo. Citado por MIRANDA e SIMAN, Sonia Regina e Lana Mara Castro. A cidade como espaço limiar: sobre a experiência urbana e sua condição educativa, em caminhos de investigação in Cidade, Memória e Educação. Editora UFJF. Juiz de Fora/MG, 2013.

KNAUSS, Paulo. Prefácio. Cidade, Memória e Educação. Editora UFJF. Juiz de Fora/MG, 2013. 

LEÃO, Carolina. Cidade: Fronteiras Urbanas. Disponível em https://revistacontinente.com.br/edicoes/136/cidade–fronteiras-urbanas. Acesso em jul 2022.

WILLIANS, Raymond. O campo e a cidade na História e na Literatura. Companhia de Bolso. São Paulo/SP, 2011.

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