O ano de 2025 marca a cena literária e historiográfica de São Paulo com um lançamento que ultrapassa o estatuto de simples publicação para afirmar-se como gesto intelectual e político. A coletânea Mulheres Subversivas, organizada pela historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro*, reúne dois volumes densos e necessários, fruto de pesquisas desenvolvidas majoritariamente no âmbito do Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação (LEER-USP). A obra propõe um deslocamento decisivo do olhar historiográfico ao trazer à cena mulheres que, ao longo dos séculos, desafiaram as estruturas do patriarcado, da religião normativa e do poder político no Brasil.
Como afirma a organizadora logo na introdução da obra, trata-se de um trabalho comprometido com a restituição simbólica dessas trajetórias silenciadas: “recuperar essas histórias é devolver às mulheres o direito de existir em sua inteireza” (CARNEIRO, 2025, p. 11).
O primeiro volume conduz o leitor por um arco temporal que vai do século XVIII ao início do século XX, examinando as fronteiras morais que historicamente cercearam a condição feminina. Emerg em suas páginas a experiência de cristãs-novas perseguidas pela Inquisição, de mulheres escravizadas que lutaram por alforria e dignidade, bem como de personagens relegadas à marginalidade social. Em um dos autos inquisitoriais analisados, uma cristã-nova, acusada de práticas proibidas, sintetiza a lógica da sobrevivência diante da violência institucional: “não fiz senão o que pude para sobreviver” (apud CARNEIRO, 2025, p. 57 ).
A coletânea também ilumina grupos frequentemente excluídos da historiografia tradicional, como as prostitutas, muitas delas imigrantes polacas, cuja presença aparece marcada por narrativas de resistência cotidiana. Uma das fontes mobilizadas no volume afirma de modo contundente: “não há pecado em querer viver” (apud CARNEIRO, 2025, p. 103). Entre as cangaceiras, Maria Bonita surge como figura paradigmática de ruptura, sintetizando uma ética da coragem própria do sertão: “no sertão, quem não enfrenta, perece” (apud CARNEIRO, 2025, p. 142 ).
Neste primeiro tomo, a subversão aparece menos como escolha ideológica e mais como resposta vital: uma forma de existir em um mundo que criminalizava qualquer desvio do ideal feminino de docilidade e silêncio.
O segundo volume concentra-se no século XX e desloca o eixo da análise para os campos da cultura, da arte e da militância política, territórios especialmente caros aos leitores da ContemporArtes. Nele, a subversão assume contornos intelectuais e estéticos. Modernistas, escritoras, artistas e militantes ocupam o espaço público com vigor crítico, tensionando as narrativas oficiais da modernidade brasileira.
Entre essas vozes, Patrícia Galvão, a Pagu, reaparece com a radicalidade que marcou sua trajetória: “a única coisa que peço é a liberdade de pensar” (PAGU, 1931, apud CARNEIRO, 2025, p. 211). Carolina Maria de Jesus, por sua vez, irrompe com sua lucidez incômoda e profundamente política: “o mundo é meu, mas viver nele não é fácil” (JESUS, 1960, apud CARNEIRO, 2025, p. 237).
Ao lado delas, artistas refugiadas do nazismo e mulheres perseguidas pela ditadura militar brasileira reafirmam a centralidade da memória como campo de disputa. Como sintetiza uma das pesquisadoras presentes na coletânea, “a memória é também uma forma de insurgência” (SILVA, 2025, p. 302 ).
Aqui, a subversão deixa definitivamente de ser apenas uma reação moral para converter-se em ferramenta política e estética de transformação social.
Para além do levantamento histórico, a força da coleção reside na ressignificação do termo que a nomeia. Aquilo que durante décadas funcionou como rótulo policial ou condenação moral transforma-se, nesta edição da Companhia de História, em categoria crítica e elogio à coragem. A própria organizadora sintetiza essa virada conceitual ao afirmar: “ser subversiva é insistir em existir quando o mundo insiste em negar” (CARNEIRO, 2025, p. 19).
A leitura de Mulheres Subversivas permite compreender que as lutas feministas contemporâneas não surgem no vazio, mas se enraízam em uma longa história de enfrentamentos, gestos de desobediência e invenções de si. Trata-se, portanto, de uma obra fundamental não apenas para historiadores, mas para todos aqueles interessados em pensar a desobediência como forma de arte, de resistência e de construção ativa da cidadania.

* Maria Luiza Tucci Carneiro é historiadora, romancista e professora titular do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), onde atua desde 1984. Graduada em História pela USP (1972), com Mestrado em Estudos Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1973), Mestrado em História Social pela USP (1981) e Doutorado em História Social pela USP (1987), obteve Livre-Docência na mesma instituição. Sua produção acadêmica abrange temas como etnicidade, racismo, intolerância, antissemitismo, imigração judaica e direitos humanos. Coordenou o Projeto Temático FAPESP “PROIN – Projeto Integrado Arquivo do Estado/Universidade de São Paulo” (1996–2004), responsável pelo inventário da Série Prontuários/DEOPS (1924–1983). Atualmente, coordena o Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação (LEER) no Departamento de História da USP, onde desenvolve o projeto Arqshoah – Vozes do Holocausto. Além de sua atuação acadêmica, Tucci Carneiro é autora de diversos livros e artigos que investigam a história social brasileira, com ênfase na análise crítica das representações de gênero, raça e memória histórica. Fonte: https://ppghs.fflch.usp.br/pt-br/content/maria-luiza-tucci-carneiro
Detalhes Técnicos da Coletânea
- Título: Mulheres Subversivas, dentro e fora da ordem: séculos XVIII ao XX
- Organizadora: Professora Dra. Maria Luiza Tucci Carneiro
- Editora: Companhia de História
- Ano de publicação: 2025
- Volumes: 2
- Volume 1: 268 páginas
- Volume 2: 280 páginas
- Formato: Brochura com costura
- Dimensões: 26 x 16 x 2 cm
- ISBN:
- Volume 1: 978-65-999452-4-3
- Volume 2: 978-65-999452-6-7
- Idioma: Português
- Onde adquirir: Livraria Subversiva

Izabel Liviski (Bel) é coeditora e articulista da Revista ContemporArtes desde 2009. É também editora do TAK! Agenda Cultural Polônia Brasil, em Curitiba/PR. Professora e Fotojornalista, é doutora em Sociologia pela UFPR.
Contato: bel.photographia@gmail.com

Obrigado por esta importante indicação de leitura!
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Excelente e necessária divulgação dessa obra. As várias resistências setoriais auxiliam na luta contra a desigualdade estrutural.
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