Os homens sempre utilizaram de artifícios para que o tempo e a morte não lhes condenassem ao esquecimento. Mitos de origem, tradições, feitos heróicos dos antepassados, ou mesmo a sua relação diária com o mundo e a natureza permanecem nas diversas civilizações através das expressões da linguagem, inicialmente pelas pinturas em cavernas [1] e após através da oralidade, capaz de transpor a passagem do tempo; é o “discurso mítico, que fala de um tempo longínquo, de um tempo das origens, tempo dos deuses e dos heróis, do qual só as musas podem nos fazer lembrar, pois, sem elas, não podemos saber (idein) daquilo que não vimos” [2]; um tempo de vida cotidiana e de relações sociais e culturais. “Acrescento ainda a estes artifícios os lugares de memória e a ““obsessão comemorativa” que tomou conta de todas as sociedades contemporâneas nas últimas décadas do século XX”; [3]

Imagem 1: Pinturas na Caverna de Lascaux: referência mundial na arte rupestre. Disponível em https://abra.com.br/artigos/caverna-de-lascaux-referencia-mundial-na-arte-rupestre.
“É o ser humano, portanto, um ser de linguagem, ou seja, um ser de discurso. Discurso é o Ato de Fala e o homem fala com suas roupas, com seu sorriso, olhares, enfim comportamentos, além de falar com suas artes plásticas, musicais, tecnologias, literatura, arquitetura etc. Não importa o tratamento da informação – linguagens verbais, não verbais ou sincréticas – a significação só existe em discurso.” ([4])
E, por ser linguagem, (texto imagético) inclui-se a fotografia.
Joly inicia o capítulo 4 de sua obra, intitulado “A imagem, as palavras”[5], para discorrer sobre a relação imagem (também linguagem)/linguagem nos termos da interação entre elas, afirmando que é desonesto entender que a imagem elimina a linguagem verbal, com a seguinte afirmativa de Jean-Luc Godard em “Ainsi parlait Jean-Luc, Fragments du discours d’um amoreux de mots”: “Palavra e imagem são como cadeira e mesa: se você quiser se sentar à mesa, precisa de ambas”.

Fotografia 1: A Caverna de Lascaux foi aberta para visitação em 14 de julho de 1948, ainda durante as investigações arqueológicas. Contudo, ela permaneceu assim apenas até 1963, quando paralisaram as visitações. Fotografia do período de visitação. Disponível em https://abra.com.br/artigos/caverna-de-lascaux-referencia-mundial-na-arte-rupestre.
Por não ser comum o gesto de parar e interpretar a imagem, principalmente nesse tempo de intensa e dinâmica visualidade que vive nossa sociedade, com uma quantidade incontável de imagens em meios múltiplos para a sua divulgação, que a mesma é “julgada “verdadeira” ou “mentirosa” não pelo que representa (a fotografia é uma imagem não lida e não entendida por si só, meramente percebida na maioria das vezes), mas devido ao que nos é dito ou escrito do que representa.
“Não só a linguagem verbal é onipresente como determina a impressão de “verdade” ou mentira que uma mensagem visual desperta em nós (…) É a conformidade ou não conformidade entre o tipo de relação imagem/texto e a expectativa do espectador que confere à obra um caráter de verdade ou de mentira.” [6]
Lembrando a relação transcendental entre tempo e linguagem e porque não também, a afinidade destas com a fotografia e a memória, Jeanne Marie Gagnebin afirma:
“(…) não há linguagem que se diga sem se desdobrar nas várias dobras do tempo, nem tempo que possa se configurar e adquirir sentido, por mais fugaz que seja, sem ser recolhido e articulado por linguagem. Co-pertencer recíproco que ressalta a sua comum ligação à ausência: a linguagem só remete ao real, às “coisas”, como se diz, porque presentifica sua ausência e, portanto, como o viu Maurice Blanchot, anuncia sempre sua morte, e o tempo não se deixa agarrar, mas só nos pertence no seu incessante escapulir, nesse movimento de promessa e de evasão que nos desapossa de qualquer posse, da dos objetos e daqueles que amamos, mas também da posse de nós mesmos.” [7]
A fotografia 2, imagem de uma baile na sede do Clube Atlético Entre-Rios (CAER) na cidade de Três Rios/RJ no final dos anos 50 ou início dos 60 do século passado, é referencial ao pensamento de Jeanne Marie. Estes conceitos alcançam então os meandros da linguagem imagética em sua relação com a memória, que mesmo na ausência do objeto/indivíduos retratados – após sua morte ou destruição/transformação, permite à sobrevivência de seus índices, significantes e representações, vencendo o tempo e principalmente, o esquecimento.

Fotografia 2: Clube Atlético Entre-Rios, acervo André Mattos.
Segundo Almeida [8], existimos atualmente em uma sociedade oral cujo caminho comunicacional ocorre prioritariamente por imagens e sons. Para Jolly [9] “a opinião mais comum sobre as características de nossa época, já repetida há mais de trinta anos, é que vivemos em uma “civilização da imagem””. As fotografias, mais do que meras ilustrações, são como afirma Barthes [10], um “certificado de presença”; e na mesma dimensão como testemunho direto ou indireto de um tempo anterior, apresentando-se como “evidências no processo de reconstrução da cultura material do passado” (Burke) [11], configurando-se como lugar manifesto de memória na sua função cognitiva, o conhecimento do passado, o que a aproxima também da ciência histórica.
Preservar a memória através das suas diversas expressões da linguagem é, para o homem, o criar de uma imortalidade que a vida naturalmente impede; então para “vencer” o tempo é primordial “vencer” o esquecimento, e “Mnemosine” [12]é neste contexto, a principal aliada do ser humano.
Relacionando memória e esquecimento Jô Gondar em seu artigo [13], após considerar o pensamento de Barthes [14] (“pensar implica em esquecer, segregar, excluir”) e a obra de Borges, “Furnes, o memorioso” [15], admite…
Esse pensamento governa as questões das escolhas “conduzidas” por estímulos utilizados na configuração do que deve ser esquecido e o que e como deve ser lembrado, o que remete ao poder relacionado à memória, ao esquecimento, e principalmente a sua função definidora de uma identidade social concentrada na essencialização da categoria de “ethos”, como descrição de modos, hábitos e costumes do outro e como esse poder eminentemente político é utilizado na formação de um discurso promulgado pela linguagem verbal, definidor da imagem de um povo.
Entendo neste artigo como político apenas o que expressa à vontade do Estado através das ações ideológicas de seus representantes (incluindo aqueles que pertencem às academias das diversas ciências humanas) em qualquer tempo histórico, por possuírem inegavelmente maiores espaços midiáticos e força de impor estímulos de esquecimento e lembrança. Apresenta-se assim possível e fundamental através das pesquisas historiográficas perceber e determinar o que se coloca como política para uma memória pública ou oficial (normalmente a memória dos vencedores), aquela que se faz visível em obras, imagens, monumentos, discursos e ações comemorativas oficiais, verdadeiros “lugares de memória”, representativos das ideologias do Estado, formadoras da história oficial; e a memória coletiva ou social (a memória dos vencidos), memória coletiva construída no fluir das relações sociais, onde o alicerce é essencialmente oral, mas que também é passível de se expressar através das linguagens verbais e não verbais, incluindo a imagética, oriundas de pesquisadores e sujeitos não vinculados ao pensamento oficial.“(…) A memória pública e a memória coletiva têm características, interesses e finalidades distintas e encaminham estratégias narrativas e políticas de representação diferenciadas,” (Oliveira) [16] apresentando momentos de real conflito.
A totalidade dos artigos, dissertações de mestrado e doutorado, impressos ou disponíveis em sites na internet, que acessei por conta dos estudos desenvolvidos na disciplina “Política e Sociedade. Revoltas camponesas – aproximações teóricas e historiográficas”, aplicado com grande entusiasmo e competência pela Profª.Drª. Nancy Cardoso Pereira, no curso de mestrado em História Cultural pela Universidade Severino Sombra (hoje Universidade de Vassouras) em Vassouras/RJ, atentavam a esta questão, referendando uns a memória pública e outros a coletiva dos conflitos rurais no Brasil usando para tanto da linguagem verbal e em alguns casos da linguagem imagética, atrelada ou não ao discurso escrito.

Fotografia 3: A Dra. Nancy Cardoso, pastora metodista, é graduada em Teologia e em Filosofia (1987), tem mestrado em Ciências da Religião (1992) e doutorado (1998) na mesma área, cursados na UMESP. É pós-doutora em História Antiga pela Unicamp. Nancy é uma das formuladoras da Leitura Popular e Feminista da Bíblia. Tem atuação no Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI) e na Pastoral da Terra (CPT). A partir do trabalho com grupos e comunidades sem-terra, camponesas, ribeirinhas, quilombolas e indígenas, ela formulou uma agro-ecoteologia feminista. É professora no Programa de Pós-Graduação de Estudos da Religião na Universidade Metodista de Angola.
Como vimos em outros artigos, para o “imaginário popular” a fotografia é expressão da verdade, e essa condição é facilitadora para a sua aplicação como estímulo definidor de uma memória e do discurso que carece ser lembrado; mas o historiador precisa como prerrogativa da ciência histórica, “prosseguir a análise, ir além da simples denuncia do “efeito do real”: deve-se interrogar segundo outros termos a ontologia da imagem fotográfica”, (Dubois) [17], “decifrar a realidade interior das representações fotográficas, seus significados ocultos, suas tramas, realidades e ficções, as finalidades para as quais foram produzidas…” (Kossoy) [18], propondo metodologias e novos olhares.
A análise “além” da representação do real que proponho, objetiva interpretar as imagens fotográficas dos sujeitos históricos envolvidos nos conflitos rurais adiante relacionados, procurando comparar com as definições da identidade do povo brasileiro apresentadas nos diversos discursos ideológicos, que refletem ou não a história social destes, configurando o uso da memória como instrumento de poder político; comparando com conflitos urbanos recentes, onde o discurso “oficial” se contrapõe ao dos envolvidos nestes conflitos.
Sem desconsiderar a importância de se conhecer o “modo de produção” da fotografia com seus elementos constitutivos (assunto/fotografo/tecnologia) e coordenadas de situação (espaço/tempo), conforme sinaliza Borris Kossoy em suas obras, a proposta metodológica encontra apoio nos conceitos apresentados Joly no cap. 2 “A análise da imagem: desafios e métodos” de sua obra “Introdução à Análise da Imagem” onde…
“interpretar uma mensagem, analisá-la, não consiste certamente em tentar encontrar ao máximo uma mensagem preexistente, mas em compreender o que essa mensagem, nessas circunstâncias (o fotógrafo no tempo e espaço da produção da fotografia), provoca de significações aqui e agora, ao mesmo tempo que se tenta separar o que é pessoal do que é coletivo.” [19]
Continua…
[1] Uso neste artigo o conceito que entende a pintura rupestre em seu caráter de comunicabilidade, uma forma de linguagem e manifestação de uma realidade apreendida socialmente e culturalmente, expressa através de signos e símbolos formadores de uma memória coletiva.
[2] OLIVEIRA, Susan Aparecida de. “Guerra do Contestado: mimésis e políticas da memória.” Tese apresentada ao programa de Pós-graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito para obtenção do título de Doutora em Teoria Literária em agosto 2006. Disponível no site: <http://tede.ufsc.br/teses/PLIT0250.pdf >. Acesso out 2025.
[3] SEIXAS, Jacy Alves de. Citando Pierre Nora no seu trabalho Les lieux de memórie. “Percursos de Memórias em terras de História: Problemáticas atuais”, in “Memória e (Res)sentimento: Indagações sobre uma questão sensível”. Editora Unicamp. SP. 2004. pp. 37.
[4] SILVA E NETTO, Jane Cristina Baptista e Rosália Maria. “Fotografia: Um Olhar Semiótico Sobre Uma Linguagem Não-Verbal”. Disponível no site: <http://www.letramagna.com/fotografia.pdf> da Revista Eletrônica de Divulgação Científica em Língua Portuguesa, Linguística e Literatura – Ano 04 n.09 – 2º Semestre de 2008 – ISSN 1807-5193. Acesso em nov 2025.
[5] DUBOIS, Philippe. “O Ato Fotográfico”. São Paulo. Papirus Editora. 12ª Edição, 2009.
[6] Idem 5, pags 116/117.
[7] GAGNEBIN, Jeanne Marie. Sete aulas sobre linguagem, memória e história. Imago Editora. RJ. 2005, pp 8.
[8] ALMEIDA, Milton José. Imagens e sons: a nova cultura oral. São Paulo: Cortez, 2001.
[9] JOLY, Martine. “Introdução à análise da Imagem”. SP, ed. Papirus. 13ª Edição, 2009, p 126.
[10] BARTHES, Roland. A Câmara Clara. RJ, ed. Nova Fronteira. 2008, p 129.
[11] BURKE, Peter. Testemunha Ocular: História e Imagem 2ª ed. S.P.: EDUSC. 2004, p 99.
[12] “Mnemosine – A memória personificada, filha de Urano (o Céu) e de Gaia (a Terra), é uma das seis Titanides. Durante nove noites seguidas Zeus a possuiu na Pieria e dessa união nasceram as nove Musas. As nove filhas de Mnemosine (a Memória) e Zeus. Além de inspirar os poetas e os literatos em geral, os músicos e os dançarinos e mais tarde os astrônomos e os filósofos, elas também cantavam e dançavam nas festas dos Deuses olímpicos, conduzidas pelo próprio Apolo. Na época romana elas ganharam atribuições específicas: Calíope era a musa da poesia épica, Clio da História, Euterpe da música das flautas, Erato da poesia lírica, Terpsícore da dança, Melpomene da tragédia, Talia da comédia, Polímnia dos hinos sagrados e Urânia da astronomia.” Kury, Mário da Gama. (1990). Dicionário de Mitologia Grega e Romana. Jorge Zahar Editor Ltda. Rio de Janeiro, RJ. p 405.
[13] GONDAR, Jô. Psicanalista, pos-doutorada em Psicologia (Universidade de Deusto, Espanha). Professora Adjunta da UNIRIO, Departamento de Filosofia e Ciências Sociais.“Lembrar e esquecer: desejo de memória”, in Memória e Espaço, organização de Icléia Thiesen e Jô Godar. RJ, 7 Letras. 2000.
[14] “Num certo trecho de sua obra, Barthes trata da carta de amor. E nos diz: quando um amante escreve à sua amada – quando Werther escreve à Charlotte, por exemplo – sua carta segue, como um tema musical, variações da mesma informação: penso em você. Mas o que quer dizer “pensar em alguém?” Bathers responde: “Quer dizer: esquece-lo (…) e despertar frequentemente desse esquecimento. Por associação, muitas coisas te trazem para o seu discurso. “Pensar em você” não quer dizer nada mais que essa metonímia (…) Eu não te penso, simplesmente te faço voltar (na mesma proporção em que te esqueço). É essa forma (esse ritmo) que chamo de “pensamento.””
[15] BORGES, J. L. “Funes, o memorioso.” In: Ficções. RJ: Globo, 1986. “Borges nos mostra do quê seríamos privados caso o esquecimento se tornasse uma tarefa impossível. O protagonista, Funes, após sofrer um golpe na cabeça, foi surpreendido com dois talentos: uma percepção absoluta e uma memória assombrosa. Tornou-se capaz de narrar interminavelmente, e numa reprodução exata, tudo aquilo que havia lido, visto, ouvido, tocado. Cada detalhe perceptível, a cada instante, era imediatamente convertido em lembranças.”
[16] OLIVEIRA, Susan Aparecida. Guerra do Contestado: mímesis e políticas da memória. Disponível em https://repositorio.ufsc.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/88536/234045.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em nov 2025.
[17] Idem 5, p 26 e 27.
[18] KOSSOY, Borys. “Fotografia e História”. São Paulo. Ateliê Editorial. 2ª Edição. 2003, p 23.
[19] Idem 9, p 44.
