“Há momentos em que a história deve demonstrar erros, recorrer a provas, para que “a memória não seja assassinada”. (Arlette Farge, Sabor de Arquivo, em menção a Pierre Vidal-Naquet , Les assassins de la mémoire)
Tese de Washington Pereira da Silva dos Reis*
A tese como travessia
Concluir uma tese de doutorado não significa encerrar um ciclo acadêmico como quem arquiva um dossiê. É, antes, inaugurar outra travessia, pois nenhum conhecimento se esgota na outorga de um título. Como lembra Althusser (apud Gisálio Cerqueira), a vigência de qualquer ciência depende de seu objeto, de uma teoria e de um método que a transformem em prática crítica.
No meu caso, a responsabilidade maior foi, e continua sendo, recusar que o ser humano vulnerabilizado pelo cárcere seja reduzido a mero objeto de pesquisa. Minha tese não é monumento acadêmico, mas denúncia de uma história ainda em curso.

Raízes e experiências: o corpo como arquivo
A questão penitenciária não me chegou de fora, não foi influência alheia ou acaso acadêmico. Foi uma experiência de carne e ossos. Antes de ingressar no curso de Direito, vivi 15 anos no sistema penal paranaense: primeiro como policial militar (1993-1994), depois como agente penitenciário (1994-2009).
E mais profundamente: vivi também dois anos e sete meses encarcerado, acusado injustamente de um crime que não cometi, até ser inocentado pelo Tribunal de Justiça do Paraná. Essa travessia marcou meu olhar sobre o Direito e sobre minha própria existência.
Sou filho de pai estivador negro e mãe ferroviária branca. Fui ferroviário, mecânico de chão de fábrica, soldado do Exército. Retomei os estudos já adulto, e só então pude transformar em investigação crítica aquilo que antes era pura sobrevivência. Minha consciência é atravessada pela condição de classe trabalhadora e pela experiência de ser um homem negro no Brasil estruturalmente racista.

O encontro com a academia: entre estranhamento e crítica
Na academia, encontrei discursos abstratos, distantes da vida concreta. Muitos que falavam sobre Direito Penal, Criminologia ou Execução Penal o faziam sem atravessar a experiência real da prisão, conhecendo os encarcerados apenas pelas imagens midiáticas da violência.
Percebi cedo que minha tarefa era aprender as regras do jogo: como funciona o sistema penal, quem são seus protagonistas, qual a função da prisão na sociedade capitalista. Foi nesse caminho que encontrei a criminologia crítica, uma vertente capaz de dialogar com minha experiência, oferecendo instrumentos de emancipação.
O excedente punitivo: a engrenagem do aniquilamento
Minha tese – Conflitos Carcerários e a Política Penitenciária Violadora de Direitos Humanos no Paraná da Década de 1980 (UFPR) – é resultado de pesquisa empírica em arquivos, entrevistas e documentos. Mas é, sobretudo, denúncia.
Defendo que o sistema penitenciário brasileiro opera a partir de um excedente punitivo: um método de aniquilação que desumaniza corpos e esvazia dignidades. Para pensar esse mecanismo, dialogo com o paradigma imunitário de Roberto Esposito e com a teoria materialista-dialética da pena.
Se o nascimento do poder punitivo brasileiro se deu nos pelourinhos e senzalas, seu deslocamento pós-abolição se reconfigurou nas favelas e prisões. O alvo permanece o mesmo: pobres, negros, marginalizados.

História como permanência: o passado não passou
A década de 1980 no Paraná não é página virada. É permanência. As violações documentadas em minha pesquisa são continuidade de uma tradição punitiva que atravessa nossa história desde o Brasil colonial.
Da senzala à prisão provisória, do tronco ao presídio superlotado, dos açoites ao emparedamento contemporâneo, a lógica é a mesma: domesticar, disciplinar, aniquilar. O passado não passou: persiste nas grades, nos muros e na naturalização da violência.
O Brasil punitivo e a mídia: o mito do “bandido bom é bandido morto”
Grande parte da sociedade conhece o cárcere apenas pelos recortes midiáticos da violência. A criminalidade é produzida seletivamente: as exceções servem para legitimar a repressão sobre a maioria vulnerável.
Nesse contexto, o jargão “bandido bom é bandido morto” ganha força e obscurece a realidade. O Estado e a mídia, em conjunto, reforçam uma percepção que legitima a barbárie. Enquanto isso, o sistema carcerário devolve à sociedade indivíduos ainda mais fragilizados, reforçando o ciclo de exclusão.
Resistência e futuro: a tese como denúncia
A prisão não ressocializa. Cumpre sua função ao rotular, degradar e marginalizar. É engrenagem de um ciclo de exclusão que beneficia a indústria carcerária e alimenta um imaginário punitivo.
Escrever minha tese foi um ato de denúncia. Compartilhá-la agora é prolongar esse gesto: afirmar que não basta narrar o cárcere, é preciso desmontar seu mito civilizatório e revelar seu caráter de barbárie estrutural.

Permanências
Minha trajetória acadêmica foi atravessada pelo racismo, pelo preconceito de classe e pela sensação constante de ser um corpo estranho naquele espaço. Essas experiências confirmam que a academia, assim como a prisão, também carrega permanências de um passado ainda presente.
Entre senzalas, favelas, prisões e universidades, o Brasil insiste em repetir seus mecanismos de exclusão. É contra essas permanências que escrevo: para que a denúncia não seja silenciada, para que a memória se torne instrumento de transformação.
Referências:
ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 1999 (7ª reimpressão, abril/2005).
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica ao direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002.
ESPOSITO, Roberto. Bios: Biopolítica e Filosofia. Lisboa: Edições 70, 2021.
____ Termos da política: comunidade, imunidade, biopolítica. Curitiba: Ed. UFPR, 2017.
MATTOSO, Katia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil: séculos XVI-XIX. Tradução de Sonia Furhmann. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.

*Washington Pereira da Silva dos Reis é doutor (2025) e mestre (2014) em direito pela Universidade Federal do Paraná, sendo ainda especialista em direito penal e criminologia pelo Instituto de Política Criminal e Criminologia (2010) e bacharel em direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2009). Em 07 de julho de 2025 defendeu a tese intitulada “Conflitos Carcerários e a Política Penitenciária Violadora de Direitos Humanos no Paraná da Década de 1980”, perante o Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR, tendo sido aprovado pela banca examinadora. Orientadora: Katie Silene Cáceres Arguello.
Texto completo disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/xmlui/handle/1884/97910
Izabel Liviski (Bel), é mestre e doutora em Sociologia pela UFPR, especialista em Artes Visuais. Articulista da Coluna INcontros e coeditora da ContemporArtes desde 2009, é também editora do TAK! Agenda Cultural Polônia Brasil.
Contato: bel.photographia@gmail.com


Parabéns pela Tese e pela Trajetória. Uma importante contribuição para a reflexividade crítica e para o enfrentamento da questão penitenciária.
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Quando o conhecimento se fundamenta na vivência do objeto de estudo se torna de uma profundidade ímpar, pois permite uma subjetividade que Freud e Jung puderam viver e que a quase totalidade dos pesquisadores é privada. Seu trabalho é mais que uma Tese, é um testemunho. Parabéns!
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Obrigado Francisco!
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Excelente artigo sobre uma belíssima tese de doutorado escrita com a sensibilidade aguçada daqueles que conhecem a terrível realidade da prisão com profundidade.Parabéns pelo excelente trabalho realizado com muita competência, sensibilidade e humanismo, Washington!
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Trajetória admirável. Parabéns pelo trabalho.
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Parabéns, Washington, por conseguir transformar sua vivência em uma tese que comprova de fato a violação de direitos, ratificada pela ADPF 347 (ação judicial do Supremo Tribunal Federal (STF) que reconheceu o estado de coisas inconstitucional no sistema prisional brasileiro, caracterizado pela violação generalizada de direitos fundamentais dos presos). Sinto-me familiarizado com sua tese não apenas por poder expressar minha vivência na sua pesquisa mas, principalmente, por ter testemunhado boa parte de sua saga dentro e fora do Sistema Penienciário do Paraná! Que isto não seja o final de uma missão, mas o começo de algo mais profundo, elucidante e inovador!
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Ótima tese, admirável! E o Doutor é um lutador, que oxigena a academia com vivências por vezes distantes dela, o que também é digno de muita admiração!
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Excelente texto !!! Parabéns
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Obrigado Nestor! Companheiro ferroviário! De 1986 a 1989 vivenciamos uma experiência inigualável nos tempos de Rede Ferroviária Federal S/A. Nossos pés no chão da fábrica!!
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Parabéns Dr. Washington pelo excelente trabalho desenvolvido. Suas palavras contribuirão para que seja repensado o futuro do Sistema Penitenciário Paranaense, inspirando reflexões importantes sobre a humanização, a eficiência e a reintegração social. Que iniciativas como a sua continuem fortalecendo o debate e promovendo avanços significativos nessa área tão desafiadora.
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Meu amigo Adriano! Trabalhamos juntos na PMPR e no sistema penitenciário. Assim como o Clayton, você conhece esse sistema como poucos! Minha gratidão por tudo que fez por mim durante os anos em que estive recluso no cárcere!
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Parabéns, Washington!
Excelente artigo!
Extremamente necessário para a reflexão e conhecimento histórico sobre as mazelas da prisão, especialmente em nosso Estado.
Abs
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Querida Hevelin Agostinelli! Colega do Núcleo de Criminologia e Política Criminal da UFPR em 2016. Tua paixão pelo direito penal reflete o teu compromisso com a verdade e o belo trabalho que tem realizado no teu canal do Youtube! De igual modo te parabenizo! Obrigado!
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A minha pessoa, só resta parabenizar vc.pelo seu trabalho, pela dedicação e lhe desejar muito sucesso…
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Obrigado Bogler!
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Obrigado Bogler!
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Sergio Bogler! Você deixou um grande legado na história do sistema penitenciário paranaense! Muito obrigado meu amigo!
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Doutor Washington dos Reis
Parabéns pela excelente tese
Sem dúvida alguma obra escrita baseada pela sua experiência quando servidor do sistema penitenciário, bem como conheço sua bela dedicação como advogado e como excelente Mestre na área jurídica nas Universidades de Direito do Paraná
Meu Pai THEREZIO José Falarz também te envia congratulações pela obra, onde o Doutor tem conhecimento que meu querido Pai também trabalhou no sistema penitenciário e sabe das dificuldades de laborar no local principalmente nas décadas de 1980
Parabéns Professor e Doutor
att: luiz claudio falarz
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