AS IMAGENS E O PENSAMENTO CIVILIZATÓRIO NA SOCIEDADE BRASILEIRA – formação do corpo (ou corpos) social (sociais) no Brasil.

Inicialmente gostaria de pedir aos leitores e os editorialistas da revista pela não publicação do artigo no mês passado, por problemas de saúde que me impediram, mas hoje, damos sequencia aos dois artigos anteriores, que sugiro a leitura para quem ainda não o fez.

Na fotografia “palavras e imagens coexistem… numa relação de integração.” (DYER, 2017, p. 12)

Dentre os campos de visibilidade da imagem fotográfica na imprensa de fins do século XIX e início do século XX, estavam também as representações sobre as classes sociais. Nesse período, o jornalista americano, Jacob-August Riis (1848-1914), especialista em crônicas policiais, descobre o poder de persuasão e propaganda da fotografia e inaugura um novo estilo jornalístico: o documentário ilustrado. (BORGES. 2008, p. 67)

Entre os dois últimos quartos do século XIX e os anos iniciais do século XX, intensificaram-se a marcha da ciência e do pensamento liberal; é o tempo das inovações industriais, o auge das diligências, a febre das vias fluviais, o surgimento das estradas de ferro, do motor a vapor, das experiências com a eletricidade, da telegrafia ótica à elétrica, do barco a vapor, da máquina têxtil. “Em vão procuraríamos determinar o momento preciso em que a máquina consegue modificar verdadeiramente as condições da existência humana no Ocidente”; (CROUZET. 1996, p. 55) mas evidencia-se neste período o desenvolvimento comercial e industrial concentrando-se nas cidades e suas periferias. “A cidade comanda a economia; e, com isso naturalmente cresce.” (CROUZET. 1996, p. 55)

É na cidade, sejam as europeias ou as capitais e maiores núcleos de concentração humana nas Américas, em seus variados espaços de relação, que se configuram os elementos sociais em um evidente processo de exploração. Ostrabalhadores não auferem ganhos proporcionais a sua parcela de contribuição na produção, o que determina margem maior de lucro obtido pelo burguês; esta diferença no ganho permite o surgimento de condições econômicas e sociais divergentes entre este e o proletariado.

No Brasil assiste-se num período após o ocorrido na Europa, semelhante processo de progresso econômico: “multiplicam-se as ligações ferroviárias, a imigração européia é incentivada, transformam-se as feições dos mais importantes centros urbanos, há, enfim, um efetivo crescimento de uma classe média nas maiores cidades.” (KOSSOY. 2002, p. 12). Neste tempo, vários estabelecimentos fotográficos existiam nas principais cidades brasileiras, atendendo a burguesia (comerciantes, industriais e banqueiros urbanos), profissionais liberais, funcionários públicos, mas também, produzindo registros fotográficos da classe trabalhadora inserida nos espaços de relação social.

Neste contexto percebe-se o uso da fotografia documental numa “solidariedade entre texto e imagem [que] visa à formação de opinião dos leitores de jornais.” (BORGES. 2008, p. 67)

É importante estabelecer uma visão explicativa de uma teoria amplamente utilizada na escrita da história moderna na análise deste período: o processo civilizador; hipótese historiográfica formulada pelo historiador alemão Nobert Elias e que vem ensejando diferentes análises com relação às questões políticas e culturais, dependendo da temática, da variedade de fatos e da temporalidade histórica em que é utilizada. De acordo com Elias, citado por Gonçalves (2015).

Fotografia 1 a 3: Demolições nas proximidades do Convento da Ajuda [atual Cinelândia], Fonte: João Martins Torres, 1904-05. Disponível em https://www.researchgate.net/figure/Figura-5-Demolicoes-nas-proximidades-do-Convento-da-Ajuda-atual-Cinelandia-Fonte-Joao_fig2_320541679. Acesso jun 2025.

(…) se observarmos a qualidade comum que o adjetivo civilizado representa sobre todas as várias atitudes e atividades humanas descritas como civilizadas, perceberemos que a função geral do conceito de civilização é que ele expressa a consciência que o Ocidente tem de si mesmo, pois o termo condensa tudo em que a sociedade ocidental se julga superior a sociedades antigas ou a sociedades contemporâneas normalmente entendidas como atrasadas. Assim, o conceito descreve como a sociedade ocidental representa o que lhe é especial e distintivo das demais e o que lhe orgulha: o nível de sua tecnologia, seus hábitos, o nível de desenvolvimento de sua cultura científica etc.

Seguindo este pensamento estarei neste artigo utilizando da expressão civilização como a representação de uma formatação social e cultural construída na Europa dos Estados Modernos e que se impôs na formação dos corpos sociais a partir da implementação da República, nos diversos aspectos da relação dos sujeitos históricos inseridos na sociedade brasileira das décadas iniciais do século XX.

O historiador Gonçalves (2015. s.p.) ainda sinaliza que este conceito de civilização no Brasil, “restringiu-se à auto-imagem da elite, isto é, a concepção de nação-civilização brasileira constituiu-se como um campo limitado da elite letrada,” o que se traduziu em nossas terras numa necessidade de sofisticação dos hábitos sociais do povo e de modernização dos espaços urbanos de relação.

Este pensamento é reforçado também pelos estudos de José Murilo de Carvalho que em sua obra assinala que…

à cidade [Rio de Janeiro] pôde ser dado o papel de cartão-postal da República. Entrou-se de cheio no espírito francês da belle époque, que teve seu auge na primeira década do século. O entusiasmo pelas coisas americanas limitara-se às fórmulas políticas. O brilho republicano expressou-se em fórmulas europeias, especialmente parisiense. Mais que nunca, o mundo literário voltou-se para Paris, os poetas sonhavam viver em Paris e, sobretudo, morrer em Paris (…), os literatos dedicaram a produzir para o sorriso da elite carioca, com as antenas estéticas para a Europa.

Fotografia 4 e 5: Registro de Augusto Malta dos Cortiços da Rua do Senado, casas mais populares foram demolidas para o embelezamento da cidade. Museu da Imagem e do Som, Rio de Janeiro. Registro do alargamento da Rua da Carioca, 1905 (Crédito: Augusto Malta). Sites: https://www.researchgate.net/figure/Augusto-Malta-Estalagem-localizada-na-Rua-do-Senado-gelatin-photograph-78-18_fig4_373899663 e https://multi.rio/index.php/historia-do-brasil/rio-de-janeiro/2915

Pesquisas na esfera social procuram demonstrar os hábitos e comportamentos em público de uma parcela da sociedade brasileira presente nos espaços de relação urbana da época, principalmente quando se refere ao corpo social burguês, que ainda sinalizavam um comportamento a ser superado. Entre estes cito Melo e Souza, que utiliza na sua obra a passagem que segue, abordando os usos e práticas sociais que os habitantes de São Paulo e da sede da República brasileira, o Rio de Janeiro, demonstravam possuir no início da década 10, assinalando ainda que: “Afinal de contas, desde 1906 alardeava-se o estágio de civilização a que chegara o Rio de Janeiro com a inauguração da Avenida Central”. (SOUZA. 2003, p. 105)

Na sessão de 9-2-1909 do Cinematógrafo Pathé, na Avenida Central, um comerciante deu uma nota de 20 mil-réis para o pagamento do seu ingresso, da esposa e de duas cunhadas. O caixa recusou-a, pois a nota era velha e rasgada. Iniciou-se a discussão. O funcionário do cinema sai da cabine, sendo recebido a bengaladas pelo comerciante e mordidas pelas mulheres, uma delas estava grávida. Resultado: todos foram dar explicações ao delegado. (…) Por questões de somenos, um desentendimento, uma palavra errada ou mal colocada, uma rixa antiga, partia-se para a bofetada, a agressão corporal, a luta campal com emprego de bengala – um objeto que completava o vestuário da época -, e nos casos mais sérios e antigos, apelava-se para a arma branca ou de fogo.

Fotografia 6: Revista Careta, na sua edição nº 107 de 1910, noticiando a visita do Presidente da República, Dr Nilo Peçanha as fábricas da Companhia de Fiação e Tecidos Confiança Industrial, na Rua Souza 1, Vila Izabel, Rio de Janeiro. Destaque para as fotografias registrando a presença do Presidente e demais representantes da burguesia, política e segurança. Disponível em https://memoria.bn.gov.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=083712&%20HYPERLINK&pagfis=2799. Acesso agos 2025.

Fotografia 7: Revista Careta, na sua edição nº 107 de 1910, noticiando a visita do Presidente da República, Drº Nilo Peçanha as fábricas da Companhia de Fiação e Tecidos Confiança Industrial, na Rua Souza 1, Vila Izabel, Rio de Janeiro. Disponível em https://memoria.bn.gov.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=083712&%20HYPERLINK&pagfis=2800. Acesso agos 2025.

As alterações ocorridas no espaço urbano da cidade do Rio de Janeiro do início do século XX durante o governo de Pereira Passos eram vistas como uma das principais representações do processo civilizador da República, conforme se encontra na declaração de Mario Pederneiras na Revista Kosmos, que descreve um passeio realizado na nova artéria central do Rio de Janeiro, desenhando a novidade:

Tudo Moderno: tudo Civilização. São os autos que passam na inconsciência vertiginosa do seu mecanismo, no seu desgracioso feitio de fogões… a gasolina. É o engenho humano vencendo a elegância animal. (…) Tudo novo, tudo Civilização.

O capítulo I da obra de Carvalho é dedicado, sobretudo à demonstração de que o Rio de Janeiro republicano é a cidade que seria a “arena em que os destinos nacionais se decidiriam”, quaisquer movimentos sociais que “abalasse a capital, reverberavam pelo país inteiro;” sinalizando para uma formatação social que recebe a influência de fatores culturais, sociais e econômicos ocorridos no final do século XIX.

A quebra de valores antigos foi também acelerada no campo da moral e dos costumes. Certamente, o Rio de Janeiro há muito deixara de ser exemplo de vida morigerada, se é que alguma vez o foi. Os altos índices de população marginal e de imigração, o desequilíbrio entre os sexos, a baixa nupcialidade, a alta taxa de nascimentos ilegítimos são testemunhos seguros de costumes mais soltos.

E é neste Rio de Janeiro reformado e reformulado que iria circular a elite deslumbrada com a Europa e acanhada do Brasil, “em particular do Brasil pobre e do Brasil negro”, preocupada em “oferecer à visão do estrangeiro um Brasil branco, europeizado, civilizado”. (CARVALHO. 2013, p. 41)

Continua…

Referencias:

BORGES, Maria Eliza Linhares. História e Fotografia. Autêntica Editora. Belo Horizonte/MG. 2008.

CARVALHO. José Murilo de. Os Bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi. Companhia das Letras. São Paulo. 3ª edição, 2004.

CROUZET, Maurice. História Geral das Civilizações – O Século XIX, o apogeu da Civilização Européia, vol. 13. Editora Bertrand Brasil S/A, Rio de Janeiro/RJ, 1996.

DYER, Geoff, in BERGER, John. Para Entender uma Fotografia. Editora Schwarcz S.A, São Paulo/SP, 2017.

GONÇALVES, Sergio Campos. O pensamento civilizador e a cultura historiográfica brasileira do século XIX. In: Revista Fazendo História. Disponível no site: <http://www.academia.edu/461852/O_pensamento_civilizador_e_a_cultura_historiogr%C3%A1fica_brasileira_no_s%C3%A9culo_XIX&gt;.

KOSSOY, Boris. Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro (1833-1910). Instituto Moreira Salles, São Paulo/SP, 2002.

SOUZA, José Inácio de Melo. Imagens do passado: São Paulo e Rio de Janeiro nos primórdios do cinema. Senac. São Paulo/SP, 2003.

Deixe um comentário