Roberta da Silva Andrade
- Introdução
Jéssica Ribeiro, de 16 anos, foi com cabelo raspado e acessórios de religioso para Colégio Estadual Barão de Mauá, quando foi questionada se estava com piolho; Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (DECRADI) investiga o caso.[i]
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A epígrafe apresentada foi publicada em fevereiro de 2024 pelo site G1 e se refere ao caso de uma estudante de Colégio Estadual localizado no município de Caxias neste ano. Este episódio é apenas um exemplo do que ocorre cotidianamente com estudantes que decidem “enfrentar” a Escola, um ambiente que deveria ser de compartilhamento de conhecimentos, ao usar as vestimentas que dão significado à sua fé, à sua religião, à sua cultura ancestral. Não são poucos os casos de Racismo Religioso no Brasil e o número só cresce. Ocorrem nas ruas, em lojas, praças e chega até as escolas. Um aplicativo de corrida foi denunciado inúmeras vezes por Racismo Religioso, não satisfeitos por recusar a corrida, ainda proferem palavras preconceituosas. “No primeiro caso, o motorista, ao descobrir que o destino era um terreiro, cancelou a corrida com a mensagem: “sangue de Cristo tem poder! Quem vai é outro, tô fora!”
A promotora de Justiça, Fabiana Lobo, que atua na ação, destacou que os relatos de discriminação religiosa não são isolados. Vários usuários da Uber relataram experiências desconfortáveis, como motoristas tocando músicas religiosas cristãs em alto volume ou fazendo comentários preconceituosos sobre suas práticas religiosas.
No primeiro caso, o motorista, ao descobrir que o destino era um terreiro, cancelou a corrida com a mensagem: “sangue de Cristo tem poder! Quem vai é outro, tô fora”[ii]
O que antes era chamado de preconceito religioso hoje é definido como Racismo Religioso. Um dos vários tentáculos do racismo. O Racismo Religioso e o preconceito são conceitos relacionados, mas apresentam diferenças significativas. O Racismo Religioso refere-se à discriminação ou hostilidade direcionada a indivíduos ou grupos com base em sua religião, especialmente quando essa religião está associada a uma determinada etnia ou raça. Por exemplo, isso pode ocorrer quando pessoas de uma religião específica enfrentam preconceito por serem vistas como diferentes ou inferiores devido à sua fé. Por outro lado, o preconceito é um termo mais amplo que se refere a atitudes negativas ou julgamentos formados sobre indivíduos ou grupos com base em características como raça, gênero, orientação sexual, religião, entre outros. O preconceito pode existir independentemente da religião e pode se manifestar de várias formas, como estereótipos, discriminação ou hostilidade. Alguns líderes religiosos insistem na mentira que são perseguidos por “levar a palavra de Deus”, mas os dados mostram que as religiões que mais são perseguidas no Brasil são as de matriz africana.
Segundo site do Museu Afro
As religiões afro-brasileiras recebem nomes diferentes dependendo do lugar e do modelo de seus ritos. No Nordeste há o tambor-de-mina maranhense, o xangô pernambucano e o candomblé baiano. No Rio de janeiro e São Paulo prevalecem a umbanda e o candomblé e no Sul, o batuque gaúcho. Isso evidencia as permanências e transformações africanas nas religiões afro-brasileiras.” Nessa dissertação, quando se referir as religiões de matriz africana, será exclusivamente o Candomblé e a Umbanda. [iii]
Alguns institutos brasileiros pesquisam a extensão desse racismo religioso, são o IBGE, Relatórios do Ministério dos Direitos Humanos, Observatório da Intolerância Religiosa, Instituto de Estudos da Religião (ISER), entre outros. E todos são unanimes nos dados: as religiões de matriz africana são as mais perseguidas no Brasil. Porém, os dados só afirmam o que se vê na sociedade: a invisibilidade da religião de matriz africana e as formas de sobrevivência em uma sociedade preconceituosa e hipócrita. Em resumo, enquanto o racismo religioso é uma forma específica de preconceito focada na religião e sua intersecção com a raça, o preconceito abrange uma gama mais ampla de atitudes negativas em relação a diferentes características. Nota-se que a denúncia apresentada no início foi levada à Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância Religiosa e simboliza o atrelamento entre religiões de matriz africana e a população negra.
- Racismo religioso nas Escolas da Educação Básica
Este trabalho busca compreender, para além do simbolismo das vestes rituais, da ancestralidade, da cultura , riqueza da religião, diferenças e igualdade no candomblé e umbanda , a carga de relações preconceituosas entre o simbolismo das vestes ritualísticas ,os significados “demoníacos”, como nomeiam religiosos de fé cristã e o preconceito que lhes atravessam, excluindo e promovendo a invisibilização de mais de meio milhão de pessoas (segundo o Censo de 2022) que se autodenominam adeptos dessas religiões. Assim como apontar resistências e propor atividades de debate sobre o tema “Racismo Religioso nas Escolas Estaduais no Rio de Janeiro” a partir de relatos da Imprensa, da experiência da autora enquanto Professora de Escola Estadual da Rede do Rio de Janeiro.
A experiência da pesquisa de Stela Caputo perpassa e influencia esta análise. No ano de 1992, algumas crianças de terreiro sofreram o que hoje chamamos de Racismo Religioso, foram expostos de forma cruel com suas fotos publicadas na capa do jornal Folha Universal com a chamada “Filhos do Demônio”. As consequências do racismo que foram citadas na Conferência de Durban de 2001 e a relação com o acontecimento pelo qual as crianças passaram em 1993, não acabaram e não diminuíram, foram aprimoradas e hoje possuem até apoio de traficantes[iv]. O artigo “Traficantes evangélicos”: novas formas de experimentação do sagrado em favelas cariocas”, publicado na revista plural, é somente um exemplo das pesquisas que vem crescendo em torno do assunto. Neste contexto se faz necessário o trabalho, que seja de “formiguinha” no combate ao Racismo Religioso. O conhecimento e o debate ajudam na desconstrução do preconceito. Um debate com quem faz parte da religião e não por pastores que propagam o preconceito. A Conferência e os acontecimentos no Brasil demonstram refletir as mesmas questões levantadas pela autora estadunidense bell hooks, em seu livro “Ensinando a Transgredir”: Ciente de que vivemos numa cultura de dominação me pergunto agora como me perguntava há mais de 20 anos quais valores e hábitos de se refletem nosso compromisso com a liberdade?
O Brasil possui em sua história uma trajetória de preconceitos e exclusão das pessoas negras e pobres. O preconceito e a exclusão se multiplicam e formam parte os diversos braços do racismo. Música, danças, cultura, cabelo, os corpos negros … são alvos de preconceito e exclusão todos os dias.
As religiões de matriz africana representam, na sociedade brasileira, segundo o Mapa das religiões divulgado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), menos de 1% em todo o território nacional. No último Censo, o de 2022, computado em 2024, o IBGE apontou o crescimento do número de estabelecimentos religiosos no Brasil, sendo a primeira vez que este dado é considerado. Embora, como comumente de considera, a interpretação sobre o significado de “estabelecimento religioso” recaia sobre “templos e igrejas”, como foi o caso da apresentação do jornal O Globo ao publicizar os dados do Censo, ao referir-se a espaços cristãos (igrejas e templos católicos e evangélicos). De acordo com o sociólogo Clemir Fernandes, diretor adjunto do Instituto de Estudos da Religião (ISER), em artigo publicado na seção Opinião do Nexo Políticas Públicas em fevereiro de 2024
por estabelecimentos religiosos – é preciso frisar – existe uma enorme diversidade, pois refere-se a todos os distintos espaços de fé no país. Além dos já citados, templos e igrejas de identidade católica e evangélica, os mais numerosos, somando-se inclusive as edificações de grupos como Testemunhas de Jeová, Mórmons e outros, o crescimento desses estabelecimentos se dá em muitos outros grupos religiosos. Centros espíritas, terreiros de umbanda e de candomblé (e outros espaços de culto de matrizes afro-brasileiras e indígenas), templos budistas, sinagogas (judaicas), mesquitas (islâmicas) e uma miríade de grupos mais diversos possíveis estão espalhados por todo o Brasil. [v]
Considerando o peso do estigma construído historicamente no âmbito do racismo religioso e compreendendo que este estigma impõe ao crente, socialmente, a sua própria negação, é possível inferir que as declarações públicas da fé de muitos praticantes das religiões de matriz africana podem ter sido mascaradas ante à autodeclaração frente a um pesquisador (FGV) ou um agente público (IBGE).
As religiões de matriz africana são alvo de perseguições e preconceitos, desde o período escravocrata, consistindo em estigma social que afeta, principalmente, pessoas negras e passado influencia os dias atuais. O preconceito sofrido no dia-a-dia interfere na pesquisa, pois muitos não se sentem à vontade em se declarar abertamente de religião de matriz africana. Compreendendo o termo estigma como “sinais corporais”, como Goffman (1988) o considerou, entende-se, com Abdias Nascimento (2016) que o processo do racismo mascarado, no Brasil, projeta o genocídio do negro brasileiro submetido ao embranquecimento cultural da população negra e sob uma estética da brancura que estigmatiza o povo negro, tanto pela interpretação visual negativa (estigma do atavismo), quanto pelo branqueamento cultural que Nascimento apontou nas artes em geral. Ainda, a hegemonia política e cultural das religiões cristãs, também compreendida como um dos vieses do branqueamento cultural, se apresenta como “assimilação”, representando o projeto longo e duradouro de inviabilização e, mais, destruição, das religiosidades afrodiaspóricas.
Outra constatação acerca do branqueamento cultural brasileiro encontra-se na análise acerca do negacionismo presente no Ensino de História brasileira e na divulgação de análises por analistas diletantes da História nacional, como observa Arantes, considerando, em contraposição às visões eurocêntricas à história reivindicada por movimentos que as contestam “versões estas que invisibilizam os negros ou contam apenas parte da história –é considerada ‘política’, ‘invenção ideológica’ e, portanto, não são ‘verdadeiras’” (ARANTES, 2021)
De forma a explicitar as “armadilhas da História”, demonstrando meios como o Ensino de História reproduz a “normalização” do apagamento das resistências negras na História do Brasil, exemplifica-se esta consideração com o pronunciamento de Abdias Nascimento, enquanto membro do Senado Brasileiro (1997–1999), na data de 13 de maio de 1998, no aniversário de 110 anos da Lei da Abolição da Escravatura:
A tentativa de vender a Abolição como produto da benevolência de uma princesa branca é parte de um quadro maior, que inclui outras fantasias, como a ‘colonização doce’ – suave apelido do massacre perpetrado pelos portugueses na África e nas Américas – e o ‘luso tropicalismo’, expressão que encerra a contribuição lusitana à construção de uma ‘civilização’ tropical supostamente aberta e tolerante. Talvez do tipo daquela por eles edificada em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, quando a humilhação e a tortura foram amplamente usadas como formas de manter a dominação física e psicológica de europeus sobre africanos.[vi]
Enquanto Deputado Federal pelo Rio de Janeiro, de 1983 a 1987, Nascimento, batizado católico e convertido ao candomblé, defendeu a inclusão da História da África e da cultura negra nos currículos escolares
Como senador, em um dos seus pronunciamentos, Abdias Nascimento destacou:
O racismo não é um problema apenas de cor da pele. Sua natureza mais profunda reside na tentativa de desarticular um grupo humano pela negação de sua identidade coletiva. Assim, ao rotular de “negros”, “ladinos”, “pretos” ou “crioulos” os africanos e seus descendentes, o dominador pretendia arrancar-lhes a referência básica à sua condição humana, reduzir sua identidade à cor da pele, feita sinônimo de condenação à inferioridade e à condição de escravo. Até hoje as comunidades de origem africana nas Américas sofrem a falta de uma referência histórica que lhes permita construir uma autoimagem digna de respeito e autoestima. A identidade “negra” fica confinada às surradas categorias do ritmo, do esporte, do vestuário e da culinária, e parece que as atividades intelectuais, políticas, econômicas, técnicas e tecnológicas não estão a seu alcance. Assim, a criança de origem africana tende a não identificá-las como áreas de aspiração, reproduzindo, ela própria, a imagem excludente implícita na versão da história que lhe é passada.[vii]
Esta constatação se relaciona ao que se considera “Racismo Religioso”, termo que Santos Araujo (2020) localiza em Flor do Nascimento (2017) que apontou que a expressão “Racismo Religioso” teria sido utilizada pela primeira vez em Trabalho de Conclusão do Curso de Licenciatura em Pedagogia da Universidade Estadual da Paraíba, no ano de 2012, defendido pela graduanda Claudiene dos Santos Lima, com seu artigo O Racismo Religioso na Paraíba. Santos Araújo, seguindo os passos de Flor do Nascimento, esclarece que a pedagoga empreendeu a construção desta importante categoria ao constatar a necessidade de confrontar valores diferenciados atribuídos às religiões cristãs e religiões afro-brasileiras. Ao constatar que a carga de preconceito que afeta as religiões de matriz africana, Lima concebeu o conceito “Racismo Religioso” a partir da definição de racismo que consta na Declaração de Durban África do Sul, de 2001, resultante da Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, na qual, o Brasil assinou o compromisso de combate ao racismo. De acordo com Lima:
O racismo pode ser definido como crença na existência de raças superiores e inferiores. Dessa forma é passada a ideia de que por questões de pele e outros traços físicos, um grupo humano é considerado superior ao outro. Ao direcionar os argumentos racistas para as religiões, tem-se o racismo religioso, através do qual se discrimina uma religião (LIMA, 2012, p.9).
Para Lima, o termo “Intolerância Religiosa” ameniza a carga criminosa que está implícita em “Racismo Religioso”. Esta “negação” reflete-se na atuação da necropolítica estatal, desde a chegada dos portugueses em relação à imposição do culto católico aos povos originários, aos judeus e muçulmanos migrados e à imensa população afrodiaspórica que, entre os séculos XV e XIX, por volta de 20 milhões de africanos se viram obrigados a migrar para os continentes americano, europeu e asiático. Portanto, como observa Rezende “o movimento da diáspora foi violento, ao passo que forçou a migração de milhões de africanos contra sua vontade, escolhas ou direitos.” (REZENDE, 2021,p. 25)
Retornando a Lima, este traz à reflexão que o termo “intolerância”, ao remeter à ideia oposta de “tolerância”, traduz-se em relação de poder: concessão para “existir” sob subordinação de sujeitos dominantes ou hegemônicos.
Ainda se chama a atenção para o uso do termo “Intolerância Religiosa” e a comparação que o site Geledés apresenta racismo religioso e intolerância religiosa:
Ontem na reunião do grupo Salva Guarda da Capoeira na Região Metropolitana de Campinas, estávamos debatendo vários assuntos quando mencionei que não acreditava na Intolerância religiosa, por 2 motivos:1 -Quando a capoeira e o Candomblé tiveram suas práticas proibidas no Brasil foi porque eram de Preto e isso para mim é Racismo aberto e declarado; 2-As outras religiões não sofrem ataques como as de Matriz Africana e neste pensamento para mim também é racismo aberto e declarado. (Oluandeji apud LIMA,)
Embora sejam amplamente franqueados os usos de signos religiosos cristãos, como Bíblia, terços, cruzes etc., as exposições de símbolos demonstrativos de fé das religiões de matriz africana, muitas vezes são reprimidas ou consideradas incômodos à “ordem escolar”. Esta situação de discriminação religiosa que privilegia as religiões cristãs encontra respaldo no Congresso Nacional que, nos últimos dias do mês de outubro de 2024, recebeu do Gabinete da Deputada Missionária Michele Collins, do Partido Progressistas, o Projeto de Lei CD244716473901 que visa “assegurar a realização de ritos religiosos voluntários nas unidades de ensino públicas e privadas em todo o território nacional e dá outras providências.”, referindo-se, no seu 2º. Artigo: “Consideram-se ritos religiosos o conjunto de ações que tem o propósito de compartilhar experiências religiosas, como leitura bíblica, comemoração de cunho religioso, cultos, devocional, dentre outros.”[viii]
Desconsiderando a Constituição Brasileira que no O § 2º de seu art. 11 proclama que “é vedado aos Estados, como à União, estabelecer, subvencionar, ou embaraçar o exercício de cultos religiosos”. Afirmando-se a laicidade do Estado brasileiro, que garante proteção e liberdade de culto a todas as religiões, é claramente observável que a Escola no Brasil, ainda não compreendeu esta lição.
Em publicação do Jornal “Folha de São Paulo, destacou-se que no último CENSO do IBGE observa-se a superioridade da quantidade de estabelecimentos religiosos (579,7 mil) sobre 264,4 mil estabelecimentos de ensino e 247,5 estabelecimentos de saúde. Embora pesquisadores tendem a deduzir que entre os estabelecimentos religiosos, seja preponderante o número de igrejas/templos neopentecostais devido à importante investida política, com considerável representação no Congresso Nacional, compondo a chamada Bancada BBB (Bíblia, Bala [referência à defesa da imposição da violência sobre as decisões democráticas] e Boi [referência à composição da bancada do agronegócio]) e à capacidade proselitista e adaptativas dos sacerdotes neopentecostais em utilizar espaços ditos “mundanos”, como shoppings, espaços comerciais de rua, praças etc. para suas pregações, não é possível afirmar esta preponderância de templos Neopentecostais no Brasil.
Conforme Fernandes:
É assimétrico comparar a quantidade de estabelecimentos religiosos com espaços educacionais e de saúde, inclusive por causa dos tamanhos físicos diferenciados entre eles e pela quantidade de pessoas que eles costumam atender, a considerar, por exemplo, grandes universidades e hospitais. Certamente há centenas de micro estabelecimentos religiosos que caberiam dentro do edifício de um único hospital, por exemplo, como se vê facilmente no Brasil. Ou até milhares de espaços religiosos que somados são estabelecimentos menores do que a área construída de um único campus ou cidade universitária de algumas dessas grandes instituições de ensino superior do Brasil, como USP, UFRJ, Unicamp, UFPE ou UFAM.[ix]
Apesar da amostragem recolhida pelo Censo 2022 ignorar as especificidades das nomenclaturas religiosas, é possível ponderar que, especialmente, as mídias tendem a não considerar os terreiros ou barracões, espaços ritualísticos das religiões de matriz africana como estabelecimentos religiosos.
Resistências
Considerando a nomenclatura “povo de santo”, como categoria êmica[x], enquanto linguagem compartilhada no interior dos grupos sociais, demarcando identidades particulares, nesta pesquisa, “povo de santo” se refere aos fiéis das religiões do candomblé e da umbanda, que fazem parte das religiões de matriz africana ou afro-brasileiras. Seus adeptos não possuem o mesmo direito de circular na sociedade com suas guias e vestimentas sem serem vítimas de Racismo Religioso. Mesmo que sofram algum tipo de preconceito, os adeptos do cristianismo (de todas as vertentes) falam abertamente sobre sua religião, vestem camisas que expressam sua religião, usam objetos que identificam sua fé e alguns até se sentem à vontade para converter a população em praça pública. Diferente do povo de santo que muitas vezes escolhem não compartilhar publicamente sua fé devido ao preconceito que perdura há séculos. Durante os anos de escravização o povo de santo criou estratégias para professar sua fé, misturavam elementos das religiões de matriz africana com o catolicismo, o que ajudou a desenvolver algo muito único do brasileiro. Esse sincretismo faz parte da cultura brasileira, com o povo se declarando católico e batendo cabeça para os orixás. O povo escravizado utilizava símbolos católicos para professar usa fé. Essa fusão de elementos, o sincretismo religioso que nasceu de forma sofrida, mas que hoje faz parte da sociedade brasileira.
Com o passar dos anos o preconceito e racismo Religioso ganharam outras formas e atualmente esse preconceito está cada vez mais violento, chegando a ser físico. Cresce o número de terreiros que são invadidos e derrubados com alguns relatos de que as mães e pais de santo são obrigados a destruírem, com suas próprias mãos seu templo, seu sagrado. O que para pais e mães de santo é uma morte. A religião de matriz africana está no dia-a-dia, é uma simbiose. Seus líderes não o deixam de ser se não estão nos terreiros. Suas práticas religiosas não são isoladas ou separadas de sua vida privada. A sociedade brasileira encontra-se no momento que tantas figuras públicas falam abertamente de suas religiões, seja candomblé ou umbanda, da tecnologia que tem o poder de juntar as pessoas e denunciar quem comete o crime de Racismo Religioso e fortalecer as pessoas no combate as várias formas de preconceito, a escola também deveria refletir estes aspectos dessa sociedade que se conecta, compartilha, que se fortalece, demonstrando sua capacidade de se unir para denunciar e combater o racismo.
Quando se observa o pequeno número de estudantes da rede pública estadual ocupando seu espaço no ambiente escolar, com sua identidade, suas tranças, sua sexualidade, suas opiniões, suas lutas por igualdade, constata-se que nesse espaço não é comum encontrar facilmente alunos de religião matriz africana falando abertamente sobre sua fé, com suas vestimentas, guias, etc. A liberdade religiosa das religiões de matriz africana não possui o mesmo espaço que outros “temas sensíveis” abordados pela sociedade e dentro das escolas.
Se a Lei 10.639/2003 estabeleceu a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura afro-brasileira e africana nas escolas do país e, mais tarde e tão importante, a lei 11.645/2008 que incluiu os povos originários foi criada, percebe-se que a legislação contribui para que se caminhasse mais fortemente o combate ao racismo dentro da escola, fomentando, com subsídios legais a Educação antirracista. Mas, é o suficiente?
Importante destacar que se não fossem as leis, muitos professores correriam o risco de serem processados, pois muitos são os casos de professores que precisam “se explicar” ao trabalharem alguns temas que tratam de negritude e cultura afro. Segundo pesquisa apresentada por Hyago Werner Almeida Silva, em seu trabalho de conclusão de curso “Escolas e intolerância religiosa: Crianças de Axé e discriminações enfrentadas no ambiente escolar” pela Universidade Federal Rural de Pernambuco
Em 2003, na primeira gestão do Presidente Luís Inácio Lula da Silva, foi sancionada a Lei 10.639/03, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira em escolas públicas e privadas, nos dois níveis de ensino da Educação Básica; o Ensino Fundamental e Ensino Médio (BRASIL, 2003). Uma Lei, que possibilita ampliar conhecimentos acerca da cultura Africana e Afro-Brasileira e que pode e deve ser utilizada a favor da tolerância religiosa, fazendo parte de um conjunto de outras Leis que sustentam as políticas públicas voltadas às ações afirmativas para reconhecimento e inclusão dos saberes e dos fazeres das pessoas negras, que sofrem historicamente com diversos tipos de opressões e preconceitos, dentre os quais destacamos o racismo religioso (FILIZOLA, 2019)[xi]
Percebe-se que apesar das dificuldades estruturais, salarias, entre outras, enfrentadas por professores da rede pública (nesse projeto, os professores da Rede Estadual) muitos educadores acreditam em uma educação transformadora e buscam trabalhar temáticas como bullying, homofobia, racismo, feminicídio, etc. Nessa prática, muitos professores sentem a necessidade de ter um respaldo legal por receio de sofrerem ameaças e acusações como “doutrinadores”. Temas que são de cunho humanitário e não ideológico. Observa-se que por muitas vezes trabalhar o racismo no ambiente escolar não é tão fácil como se imagina, quando vamos para o campo do Racismo Religioso …as vezes não chega a acontecer.
Exemplificando, no ano de 2018 (15 anos após a aprovação da Lei 10.639/2003), a professora Sabrina Luz, de Macaé no Rio de Janeiro, apresentou para seus alunos a história e vida do Besouro Mangangá e foi denunciada pelo pai de um aluno.
A obra foi o filme “Besouro”, que conta a vida de Besouro Mangangá, interpretado por Ailton Carmo, um capoeirista brasileiro da década de 1920. Segundo Sabrina, a obra é baseada em fatos reais sobre um levante no recôncavo baiano liderado pelo capoeirista. O teor da reclamação também não foi revelado pela prefeitura, mas a professora acredita que o problema é o fato de a obra abordar as religiões afro brasileiras.[xii]
A escola pública é laica, dentro de seus muros deveriam estar representadas a pluralidade e a diversidade. E essa diversidade deveria ser acolhida em sua totalidade e a fé faz parte da construção do educando, é parte da sua cultura familiar. Outra questão se coloca: Tem como a escola se eximir da responsabilidade de combater o racismo religioso? Desde o processo de colonização que submeteu indígenas, as religiões cristãs são hegemônicas em vários espaços, inclusive nas escolas “públicas laicas”. A hegemonia religiosa, cujo atrelamento ao Estado perdurou até 1889[xiii], normalizou suas influências na sociedade e no ambiente escolar.
Apesar da Lei, quando se fala em Racismo Religioso, o tema é ocultado na escola. Algo proibido. Surge a frase “Religião e política não se discute “, mas como não trazer ao debate o racismo que um determinado grupo religioso está sofrendo? Como continuar deixando que os alunos de santo usem as estratégias de convívio como o povo escravizado usava para não serem perseguidos? Combater o Racismo Religioso também é combater o racismo estrutural, Racismo esse que não está somente em olhares e palavras, hoje chega a agressões e risco de morte. Portanto, entender como os alunos de santo se sentem, dar voz as suas necessidades, escutar o que e como os professores podem contribuir para que na escola eles se sintam acolhidos e fortalecidos, para que junto com os seus possam enfrentar essa sociedade e seus desafios é o foco e a esperança desse trabalho.
Os ataques ocorridos fora dos murros da escola possuem reflexo no interior das escolas, o comportamento de alguns representantes religiosos influencia o pensamento e atitudes de alguns alunos. Alguns líderes religiosos propagam o preconceito e constroem uma imagem que chamam de “demônio” sobre as religiões e adeptos do candomblé e umbanda. Enquanto incentivam os seus adeptos a “converterem e ocuparem qualquer espaço”. Não existe proibição velada dentro das escolas se o assunto for a religiosidade com vertente do cristianismo, seja qual vertente for.
É comum os ataques de Racismo Religioso que surgem na mídia serem tratados como Intolerância Religiosa e não se vê uma punição adequada a quem comete tal crime, quando não se justificam com “minha opinião”. É Racismo Religioso e não Intolerância Religiosa porque é um dos tentáculos do racismo estrutural, que alguns brasileiros insistem em dizer que não existe. Quase quatrocentos anos de escravidão deixou marcas que machucam e segregam até os dias atuais. E o Racismo Religioso contra as religiões de matriz africana é uma delas. Na atual consta, no Artigo 5º, XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;
Diante de tantas amostras de Racismo Religioso e a tentativa de amenizar a situação por parte de algumas pessoas e até da lei, do número crescente de atitudes preconceituosas com o discurso de que é somente uma opinião, observa-se, em uma sociedade que se orgulha e se diz ser democrática e não possuir preconceitos, que algumas pessoas não podem demostrar sua fé em público, ficam restritas ao terreiro e entre os seus. Não por falta de coragem, porque é preciso muita coragem para ser quem realmente é, mas para evitar conflitos. Muitos são os casos de pessoas que são excluídas, ofendidas verbalmente, perdem empregos, relacionamentos, são induzidas a “aceitar Jesus” e são por vezes agredidas fisicamente. Chamadas em jornais, internet e denúncias como essa “Comassédio público, neopentecostais intimidam adeptos de religiões afro a frequentarem igrejas evangélicas [xiv]” são mais comuns a cada dia.
Vários estudos mostram o crescimento de igrejas neopentecostais no Brasil. O problema é que junto com elas cresce o número de Racismo Religioso (mesmo sendo tratado como Intolerância Religiosa, é Racismo Religioso) contra as Religiões de Matriz Africana. Alguns adeptos de outras religiões narram fatos de preconceito que sofreram, porém, nenhum número chega ao de religiões como Umbanda ou Candomblé. Segundo o Censo:
O registro de denúncias sobre intolerância religiosa feitas ao Disque 100, um serviço do governo, cresceu – sobretudo após 2021, um ano depois do início da pandemia da Covid-19. Também aumentaram as violações – que são os diversos tipos de violência relatados. Em 2018, foram registradas 615 denúncias de intolerância religiosa no Brasil. O número saltou para 1.418 em 2023, um aumento de 140,3%. Já o número de violações passou, no mesmo período, de 624 para 2.124, um salto de 240,3%. Entre 2022 e 2023, o aumento das denúncias foi de 64,5% e, o de violações, de 80,7%.
Diante do avanço em pesquisas, informações, combate as múltiplas formas de preconceito a sociedade não avançou no combate ao Racismo Religioso contra religiões de matriz africana. O livro Educação nos terreiros, de Caputo, que começou em sua pesquisa de 1992, continua sendo leitura importantíssima no ano de 2025. Mudanças positivas ocorreram, mas as formas como a prática do racismo evoluiu ao longo desses anos também é preocupante.
O embasamento teórico, portanto, tem na pesquisa de Stela Caputo seu norteamento pela admiração pelo trabalho de uma professora que teve o prazer de conviver e criar laços, por vinte anos com crianças que eram criadas em terreiros no Rio de Janeiro. Uma pesquisa vivida dentro dos terreiros e no seio de algumas famílias de maioria do candomblé, mas algumas da umbanda. Caputo acompanhou o crescimento, em diversas formas das crianças de santo. Seus medos, suas inseguranças, seu crescimento, suas dúvidas ao longo caminho, a força que descobriram dentro de si a certeza da fé que professavam. Caminho árduo, difícil e emocionante em muitas páginas.
Com o “tratamento” etnográfico de Caputo, pretende-se considerar a correspondência teórica e metodológica no tratamento do objeto pesquisado enquanto a técnica da observação participante e teoria advinda da Sociologia do Conhecimento da qual a Pedagogia de Paulo Freire é correspondente, a partir da compreensão dos fenômenos observáveis no cotidiano escolar e para-escolar, no qual a vivência religiosa se insere.
No livro de Caputo, há relatos sobre o preconceito verbal e o velado, a exposição sofrida pelas crianças do terreiro que foram chamadas de “Filhos do Demônio” pela Igreja Universal do Reino de Deus. Ainda não havia relatos no livro como os que surgem na atualidade, que noticiam que mães e pais de santo são obrigados a destruir seus terreiros e são expulsos das comunidades.[xv]
A escola pública é laica. É o local onde os jovens passam uma boa parte de suas vidas, onde vão amadurecendo como seres humanos e em idade, a escola acompanha as mudanças desses jovens, o ambiente deveria ser acolhedor pois a religião faz parte da vida de muitos alunos. Se o aluno for do candomblé ou da umbanda seu caminho na escola é por muitas vezes acompanhado de preconceitos. Quando o aluno faz a cabeça ele vai a escola? Se sente seguro em frequentar as aulas ou sente medo de perder as amizades? Na sexta-feira, ele se sente à vontade em usar o branco? Em compartilhar como foi a festa no final de semana no terreio que frequenta? Ele deixa seu contra egum à amostra ou esconde? Esse aluno precisa ter voz, não se sentir silenciado, não precisar omitir sua religião para transitar socialmente sem medo de sofrer preconceito e ser excluído. Esse aluno precisa se sentir fortalecido, e com ele fortalecido toda uma sociedade ganha, para assim o Brasil não produzir notícias como essa: “Motorista de app que recusou corrida de família com roupa do candomblé é indiciado por preconceito religioso”
Referências Bibliográficas:
[i] Conferir em https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2024/02/09/aluna-de-colegio-estadual-de-caxias-denuncia-ter-sido-vitima-de-intolerancia-religiosa-no-retorno-as-aulas.ghtml Acesso em 05/11/2024.
[ii] Conferir em https://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2024/12/05/mppb-entra-com-acao-contra-uber-por-racismo-religioso-e-pede-indenizacao-de-r-3-milhoes.ghtml Acesso em 20/11/2024
[iii] MUSEU AFRO BRASIL. Roteiro de visita ao acervo. São Paulo: 2007, p. 18-20. Em: http://www.museuafrobrasil.org.br/pesquisa/indice-biografico/manifestacoes-culturais/religioes-afro-brasileiras Acesso 10/04/2025
[iv] PLURAL, Revista do Programa de Pós‑Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.15, 2008, pp.23-46
[v] https://legis.senado.leg.br/diarios/ver/13436?sequencia=68 -79
[vi] Fonte: Agência do Senado: https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/arquivo-s/senador-abdias-nascimento-uma-vida-dedicada-a-luta-contra-o-racismo . acesso 06/11/2024.
[vii] FERNANDES. Referência citada acima
[viii] Cf. Câmara dos Deputados/ Gabinete da Deputada Missionária Michele Collins PP/PE https://static.poder360.com.br/2024/11/PL-4134-24-Missionaria-Michele-Collins-culto-em-escola.pdf
Acesso 06/11/2024
[ix] Esta concepção foi elaborada por Kenneth L. Pike acerca dos aspectos linguísticos tratados no horizonte da interculturalidade.
[x] Conferir SILVA, Hyago Werner Almeida, em seu trabalho de conclusão de curso “Escolas e intolerância religiosa: Crianças de Axé e discriminações enfrentadas no ambiente escolar” pela Universidade Federal Rural de Pernambuco
[xi]. Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/educacao/professora-denunciada-por-pai-de-aluno-por-passar-filme-sobre-cultura-negra-22797872.html Acesso em 17 de jun. de 2024.
[xii] Na Constituição republicana de 1889, com a implementação da laicidade, o ensino religioso foi abolido da Constituição
[xiii] https://www.intercept.com.br/2023/05/10/neopentecostais-intimidam-adeptos-de-religioes-afro-com-assedio/ acessado em 19/06/2024
[xiv] A manchete divulgada através da Rádio CBN/Globo anunciou em 13 de setembro de 2017: “Criminosos obrigam mãe de santo a destruir próprio terreiro em Nova Iguaçu” https://cbn.globoradio.globo.com/editorias/policia/2017/09/13/CRIMINOSOS-OBRIGAM-MAE-/DE-SANTO-A-DESTRUIR-PROPRIO-TERREIRO-EM-NOVA-IGUACU.htm acessado em 05/07/2024.
[xv] – https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2023/07/04/motorista-de-app-que-recusou-corrida-de-familia-com-roupa-do-candomble-e-indiciado-por-preconceito-religioso.ghtml acessado em 06/07/2024

Orientadora: Profa. Dra. Márcia Regina Silva Ramos Carneiro
