“Só a imaginação transforma. Só a imaginação transtorna” (Mário Cesariny, em A Intervenção Surrealista)
O Surrealismo, em linhas gerais, foi um movimento artístico e literário nascido em Paris na década de 1920, dentro do contexto das vanguardas que viriam a definir o modernismo no período entre as duas Grandes Guerras Mundiais. Reuniu artistas anteriormente ligados ao Dadaísmo, ganhando dimensão mundial. Influenciado pela Psicanálise de Sigmund Freud (1856-1939), o movimento enfatiza o papel do inconsciente na atividade criativa.
O poeta e crítico André Breton (1896-1966) foi o principal líder e mentor do Surrealismo, que influenciou profundamente as artes visuais, a literatura, o cinema e até a filosofia, desafiando as convenções e explorando o inconsciente, o onírico e o absurdo, expandindo-se posteriormente para vários países europeus, para a América Latina e inclusive para o Japão.
Afiche da exposição em Lisboa. Foto: Bel Liviski
Segundo Jorge de Sena¹ (1919-1978), “Portugal foi talvez o primeiro país fora da França onde o surrealismo foi mencionado, poucos meses depois da primeira proclamação do novo ismo de Breton, já em 1925. Todavia, as actividades surrealistas como tal não tiveram repercussão, em Portugal, nos círculos de Vanguarda. Há que esperar até 1942, quando o meu primeiro livro de poemas apareceu² incluindo exemplos de escrita automática e escudado com epígrafes de alguns escritores surrealistas.”
Foto de Fernando Lemos (1926-2019)- “Hospital de bonecas” (1949) – Coleção Museu Calouste Gulbenkian. Fonte: https://maislisboa.fcsh.unl.pt/
Apesar dos artistas portugueses terem conhecimento deste movimento e da publicação do primeiro manifesto de Breton, o aparecimento do Surrealismo em Portugal é tardio. Gomes Leal, Teixeira de Pascoaes ou a geração do “Orpheu” já possuíam nas suas obras algumas características surrealistas, embora o movimento em Portugal só venha a impor-se nos anos 40, do século passado. Tal como na França, também em Portugal o desenvolvimento do Surrealismo sofreu algumas vicissitudes.
O movimento, organizado como tal, começou em Portugal em 1947 logo depois do fim da Segunda Guerra Mundial, quando em todo o mundo há uma renovação do interesse sobre ele. Porém não teve longa duração, pois subsistiu somente até 1952, deixando uma profunda marca quer na literatura (sobretudo na poesia) quer na pintura, focalizando “como nunca até então se fez em Portugal, um dos movimentos literários, filosóficos e estéticos mais importantes do século XX português”.
Grupo Surrealista de Lisboa, Portugal. Na foto, da esquerda para a direita: Henrique Risques Pereira, Mário Henrique Leiria, António Maria Lisboa, Pedro Oom, Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas, Carlos Eurico da Costa e Fernando Alves dos Santos, durante a I Exposição dos Surrealistas (Junho/Julho, 1949).
Ainda na esteira das comemorações do centenário da publicação do Primeiro Manifesto do Surrealismo de André Breton (1924), que teve início no ano passado, a Sociedade Nacional de Belas Artes de Lisboa³ abriga até meados de março, a Exposição Surrealismo: um salto no vazio, promovido pela Fundação Cupertino de Miranda4. Uma mostra singular de obras emblemáticas que retratam o espírito subversivo e a liberdade criativa que definem este movimento artístico, reunindo uma seleção de trabalhos de artistas e autores portugueses e estrangeiros, desde os seus primórdios até a contemporaneidade.
Cartaz da Exposição Surrealismo: Um Salto no Vazio, na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa- Fonte: https://revistabica.com/
O cartaz da exposição, mostra um desenho coletivo de surrealistas franceses, composto pela técnica que eles denominavam de “Cadavre Exquis” (cadáver delicioso). Já em Portugal o nome foi traduzido, de forma irônica, para “Cadáver Esquisito”. Era o jogo mais famoso praticado pelos surrealistas que consistia na elaboração de uma obra por um grupo de artistas, num processo em cadeia criativa, na qual cada um dava seguimento à criatividade do anterior, resultando numa espécie de colagem de imagens ou de palavras, a partir apenas de um acordo quanto à estrutura geral.
O nome da exposição “Um salto no vazio” (“Un saut dans le vide”), foi baseado em uma frase retirada deste poema, também um “cadavre exquis”, colagem que Breton e seus colegas produziram, recortando e colando títulos e frases aleatórias de jornais, produzindo uma sintaxe e um sentido próprios.
Foto: Bel Liviski
Cito três dos principais surrealistas portugueses:
Artur Cruzeiro Seixas (1920-2020) foi um dos fundadores do Surrealismo português, movimento a que sempre se manteve leal por considerá-lo “único e revolucionário”, na história da arte. Os seus desenhos de traço fino se mantiveram fiéis a essa linguagem estética, que surgiu no início dos anos 20 com o intuito de transformar a sociedade e libertar o espírito. Seixas sonhou e imaginou, sem imposições estéticas ou morais, no mundo das artes plásticas, mas também da poesia. É autor de um vasto trabalho em diversos campos, desde o desenho e a pintura, mas também na poesia e na escultura.
Isabel Meyrelles (Matosinhos, 1929) – Com 96 anos, é escultora e poeta. Foi amiga dos artistas Mário Cesariny e Cruzeiro Seixas, membros do grupo dissidente Os Surrealistas, apesar da misoginia dos outros elementos deste grupo. Juntos alugavam uma casa de um pescador na Costa da Caparica, que ainda era uma zona deserta, onde Isabel praticava nudismo e se juntava aos rituais ocultistas improvisados pelo grupo na Descida das Vacas. Conhecida pelos amigos como Fritzi, Isabel causava escândalo ao fumar cachimbo no café Palladium, e também foi detida várias vezes por parecer “um homem vestido de mulher”.
«Há muito pouca normalidade no que eu faço. Nunca pensei que estava a fazer parte do grupo surrealista, eu era uma mulher diferente das outras. Eles pareciam gatos assustados quando me viam, para eles eu era um bicho assustador: ‘isto é uma mulher?!’», evoca Isabel em 2023. O pesado contexto social da ditadura levou-a a mudar-se para Paris em 1950, onde estudou escultura na Escola Nacional Superior de Belas Artes e Análise comparada da poesia medieval francesa e portuguesa na Universidade Paris-Sorbonne.
Paris em 1950 (para Robert Desnos) – Poema de Isabel Meyrelles
“Pequeno pequeno pequeno ronronava a formiga de dezoito metros aproximando-se dissimuladamente do Leão de Belfort mas este fez orelhas moucas, ele era não apenas de bronze mas também cartesiano e dizia para consigo que uma formiga de dezoito metros não existe não existe… No que ele se enganava redondamente o poeta a criou, logo ela existe. Q.E.D. Esteve ultimamente na Praça Denfer-Rochereau?”
Mário Cesariny de Vasconcelos (1923-2006) – Poeta, autor dramático, crítico, ensaísta, tradutor e artista plástico, considerado o principal representante do surrealismo português. É de se destacar também o seu trabalho de antologista, compilador e historiador das atividades surrealistas em Portugal, podendo ser considerado inclusive como um autêntico “militante” do movimento.
Em 1947, Cesariny viajou até Paris onde, graças a uma bolsa, frequentou a Académie de la Grande Chaumière, onde conheceu André Breton. Este acontecimento mudou para sempre a vida de Mário Cesariny, sendo um momento determinante no desenvolvimento do seu trabalho literário. Regressou a Portugal com vontade de transgredir e de desafiar a poderosa máquina da ditadura. Queria ser livre no seu país. No seu regresso, integrou o Grupo Surrealista de Lisboa, juntamente com Alexandre O´Neill, Marcelino Vespeira, António Pedro, Cândido Costa Pinto e João Moniz Pereira entre outros.
Maria João Simões, da Universidade de Coimbra, em seu artigo “Liminaridades e Liames: a Interventiva Subversão do Surrealismo Português”, observa que:
“Os surrealistas portugueses foram observadores curiosos das propostas artísticas do movimento surrealista francês. (…) criando as suas próprias especificidades estéticas, apesar do contexto culturalmente conservador do totalitário regime salazarista, que lhes limitava a liberdade criativa. Diferentes estratégias foram acionadas pelos surrealistas portugueses para configurarem as suas produções, as quais foram sustentadas quer na atenção dada ao ‘real cotidiano’, na utilização do grotesco e ainda no jogo com a liminaridade. Através destas modalidades se desenha uma ‘poética do liame’, sob a qual os surrealistas construíram as suas obras de arte”. Disponível em: https://hdl.handle.net/10316/116803 (Acesso em 25/02/2025)
Notas:
¹ Jorge Cândido de Sena foi poeta, crítico, ensaísta, ficcionista, dramaturgo, tradutor e professor universitário português, foi naturalizado brasileiro em 1963.
² “Perseguição”, Editora Assírio & Alvim.
³ Associação cultural portuguesa, fundada em março de 1901 com sede em Lisboa, que tem como principal objetivo “promover e auxiliar o progresso da arte em todas as suas manifestações, defender os interesses dos artistas e, em especial dos seus associados, procurando auxiliá-los, tanto moral como materialmente (…). Fonte: https://snba.pt/
4 A Fundação Cupertino de Miranda é uma fundação privada de interesse geral, sem fins lucrativos, com sede em Vila Nova de Famalicão, a qual prossegue objetivos principais de natureza cultural e, acessoriamente, social. (Fonte: Wikipédia) – Praça Dona Maria II, 4760-111 Vila Nova de Famalicão, Portugal.
INAUGURAÇÃO DA EXPOSIÇÃO Sonhos e Metamorfoses: O Surrealismo de Paula Rego Data: 11 de abril de 2025, 18h30h Onde: Centro Português do Surrealismo Fundação Cupertino de Miranda
Bel Liviski – professora, fotojornalista, é doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná. Escreve a Coluna INcontros desde 2009, e é também Editora do TAK! Agenda Cultural Polônia Brasil, em Curitiba/Pr.
3 comentários em “Surrealismo em Portugal: Um Salto no Vazio…”
Parabéns pelo belo artigo. Me fez refletir sobre como o vazio deve ter penetrado a alma dos artistas (os mais sensíveis) e como os dias atuais devem se refletir no futuro. Me fez pensar. Obrigado.
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