A fotografia e os laços invisíveis das lembranças

O principio da distância e o corte na realidade e no tempo – algumas reflexões em fragmentos.

A fotografia enquanto lugar de lembrança e testemunho de memória encontra-se inserida na relação entre tempo e a narrativa histórica, onde a memória, a lembrança e o esquecimento são, segundo Ricceur, níveis intermediários desta relação. Deste modo, uma análise das problemáticas comuns a fotografia e a memória quanto à representação do passado e a sua relação com o tempo, o espaço, a realidade, a lembrança e o esquecimento, é um caminho que se apresenta necessário a reflexão.

Roland Barthes sinaliza em sua obra que a fotografia mantém uma relação congênita com seu referente (1), pois este “nasce” com o ato fotográfico, permanecendo (virtualmente ou impresso) distanciado e separado no tempo e no espaço, o instante de percepção do fotógrafo quanto ao que foi retratado.

Todo o fazer do registro imagético se desenrola em um determinado tempo e espaço de relação, sempre passado, por mais próximo que esteja do presente; será a sua realização um instante que ocorreu, e uma realidade construída – considerando todos os aspectos do ato como a luz, ângulos, técnicas no manejo e as próprias possibilidades do instrumento fotográfico, e a intenção e motivação do fotógrafo -, condição que dificilmente se repetirá, fazendo de cada imagem, de cada fotografia, um objeto único.

Fotografia 1: Natália com uma de suas alunas. Registro realizado por ela em setembro de 2024.

A imagem fotográfica 1 da minha filha Natália Mattos (por ela realizado em setembro deste ano), monitora de uma creche localizada em um bairro da periferia da cidade de Paraíba do Sul/RJ, no momento em que as crianças adormecem, registra uma menina deitada em seu corpo, encontrando naquele momento, repouso e carinho em um gesto que, acredito, se insere numa série de procedimentos importantes para a formação social e educacional infantil.

O mesmo ocorre com a fotografia 2, registro do dia do cabelo maluco (também por ela realizado em outubro de 2024), onde a alegria estampada nos referentes perpetua o momento e como a anterior, aplica-se a construção de reflexões a cerca dos processos educacionais na primeira infância.

A fotografia a partir do momento de sua realização constrói então, os “laços invisíveis da lembrança”, mas também do esquecimento quando são “deslembradas” nos embates sociais e políticos da memória.

Fotografia 2: Natália com uma de suas alunas, no dia do cabelo maluco. Registro de outubro de 2024.

Ao contrário da pintura, como afirma Barthes, que “pode simular a realidade sem tê-la visto… [na fotografia] jamais posso negar que a coisa esteve lá. Há dupla posição conjunta: da realidade e do passado… O nome do noema da Fotografia será então: Isso-foi.” [destaques do autor] (BARTHES. 2008, p. 115) Outro aspecto importante a se considerar é que a representação indiciária apesar de “nascer” com o ato fotográfico tem com relação ao seu referente possibilidade de se manter “viva” (principalmente no mundo virtual) por muito mais tempo que o próprio objeto, a pessoa, as paisagens e os espaços que sofrem ameaças constantes de transformação e “morte”. É esta possibilidade de enganar a morte que concede a fotografia a sua aura de objeto místico, mágico, “fonte da juventude” que permite ao ser vencer a morte no desejo de eternizar e preservar pessoas e situações, e toda lembrança vinculada a estes. É possível então olhar uma fotografia e recordar, perceber uma lembrança mesmo que a realidade na imagem não tenha sido vivenciada, criando-se uma similaridade com as próprias memórias.

“É possível que, no desenvolvimento cotidiano das fotos, as mil formas de interesse que elas parecem suscitar, o noema “Isso-foi” seja, não recalcado (um noema não pode sê-lo), mas vivido com indiferença, como um traço que não precisa explicação. É dessa indiferença que a Foto do Jardim de Inverno acabava de me despertar. Seguindo uma ordem paradoxal, já que costumeiramente asseguramo-nos das coisas antes de declará-las “verdadeiras”, sob o efeito de uma experiência nova, a da intensidade, eu induziria, da verdade da imagem, a realidade de sua origem; eu confundiria verdade e realidade em uma emoção única; na qual eu colocava doravante a natureza – o gênio – da Fotografia, já que nenhum retrato pintado, supondo que ele me parecesse “verdadeiro”, podia impor-me que seu referente tivesse realmente existido.” (BARTHES. 2008, p. 116)

Sobre a fotografia do Jardim de Inverso escreve este autor:

“A fotografia era muito antiga. Cartonada, os cantos machucados, de um sépia empalidecido, mal deixava ver duas crianças de pé, formando grupo, na extremidade de uma pequena ponte de madeira em um Jardim de Inverno com teto de vidro. Minha mãe tinha na ocasião cinco anos (1898), seu irmão tinha sete. Ele apoiava as costas na balaustrada da ponte, sobre a qual estendera o braço; ela, mais distante, menor, mantinha-se de frente; sentia-se que o fotógrafo lhe havia dito: “Um pouco para frente, para que a gente possa te ver”; ela unira as mãos, uma segurando a outra por um dedo, como com freqüência fazem as crianças, num gesto desajeitado. O irmão e a irmã, unidos entre si, eu o sabia, pela desunião dos pais, que se divorciariam pouco tempo depois, tinham posado lado a lado, sozinhos, no espaço aberto entre as folhagens e palmas da estufa (tratava-se da casa em que minha mãe tinha nascido, em Chennevières-sur-marme). Observei a menina e enfim reencontrei a minha mãe.”  (Barthes. 2008, p. 101 e 102)

Fotografia 3: Registro dos filhos e filhas dos meus avós, Mario e Zeni. Da esquerda para direita: Celso, Ereni, Mario, Marilene, Paulo, Marlene (minha mãe), Marni (minha madrinha), Eni (quem me enviou a foto), Regina e Angela. Registro da década de 80 do século XX.

Barthes não publica em seu livro este registro. Segundo Constance De Gourcy em seu artigo (2017):

“Não sendo mostrada, a foto da mãe quando criança escapa de qualquer influência. Mostrar a imagem do desaparecido seria, de facto, um esforço vão porque a fotografia perderia o seu punctum, ou seja, o seu poder marcante ligado à emoção despertada, aquela mesma que permitiu ao filho constituí-la numa relação de essencialização. Como acontece frequentemente neste trabalho, através de um efeito de reversão, o texto entre parênteses adquire um significado primordial para descrever essa impossibilidade de mostrar: “(Não posso mostrar a Foto do Jardim de Inverno. Ela só existe para mim. Para você, seria nada mais que uma foto indiferente, uma das mil manifestações de “qualquer”; não pode de modo algum constituir o objeto visível de uma ciência; no máximo interessaria ao seu estúdio: tempo, roupas, fotogenia mas nisso, para você, nenhum prejuízo.)” (p. 115).

As palavras substituem, portanto, a imagem para tirar da invisibilidade da fotografia desaparecida os recursos necessários para manter uma presença e desta uma fidelidade ao ser desaparecido. Em muitos aspectos, esta fotografia “fantasma” é, portanto, paradoxalmente, uma fotografia do depois, ao mesmo tempo em que é uma fotografia do antes. Porque é através da escrita e da individualização da história que a presença da mãe se concretiza e que o fio genealógico continua entre as gerações. A escrita torna-se assim uma origem, um compromisso, um “projeto de vida” que mantém uma continuidade de presença – até mesmo uma copresença – a partir da ausência.”

Quando recebi por Whatzapp a fotografia 3 (este elemento contemporâneo de comunicação entre as pessoas favorece e muito a disseminação de imagens fotográficas e com isso, de lembranças, o que favorece a memória) da minha Tia Eni, percebi o quanto o registro conduz o olhar que repousa na imagem a relacionar a fotografia com a verdade e a realidade, ao ponto de ser aceito sem necessidade de elucidação; condição que se reforça pelos “laços invisíveis da lembrança”.

Todos os presentes, tios e tias, minha mãe, fizeram e fazem alguns ainda parte das minhas relações sociais, mas quando do trato do registro fotográfico enquanto fonte em pesquisas, a visão deve superar metodologicamente esta percepção comum às massas, para adentrar ao campo da análise e da interpretação, alcançando o máximo das informações presentes na imagem. Separada ao “nascer”, distante mesmo, mas irremediavelmente próxima, sensação imposta de realidade e verdade, capaz de vencer a morte (mesmo com o referente “morto”), a fotografia também permite assim remontar o tempo, um reencontrar e resignificar memórias e um fazer historiográfico, mas existem ainda outras características que devem ser observadas.

(1) Roland Barthes entendeu o referente fotográfico como o objeto/pessoa verdadeiro que foi captado pela objetiva da câmera, elemento indispensável para a existência da fotografia. Barthes acreditava que a fotografia não perde o conceito de “aura” de Benjamin, pois, mesmo que seja reproduzida, é sempre o registro de um momento único.

(continua)

Referências:

BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Rio de Janeiro. Editora Nova Fronteira, 2008.

GOURCY, De Constance. Jalon iconographique de l’absence (2) : la photographie du Jardin d’Hiver (1898). Disponível em https://crisalide.hypotheses.org/437. Acesso nov 2024.

RICCEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas/SP: Editora
UNICAMP, 2ª reimpressão, 2010

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