O FEIJÃO E O SONHO

Desde que a língua de Camões se fez a nossa, um eco repete o verso: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. Mudam-se – oh tempos! – os costumes. Hoje em dia não se usa mais, por exemplo, catar feijão. Em minha infância, quantas vezes não deixei as brincadeiras de rua ou de terreiro para sentar-me diante de uma peneira de taquara, concentrado em selecionar os bons grãos de feijão, descartando os ruins, eliminando as impurezas. Muita gente que só conhece o feijão que dá nas prateleiras dos supermercados, limpinho e embalado, talvez tenha mais dificuldade que eu para ler o poema CATAR FEIJÃO, de João Cabral de Melo Neto.

Nesse poema, João Cabral afirma que “catar feijão se limita com escrever”.  Muito do trabalho de escritor consiste em soprar o que for leve e oco, jogar fora o que for palha e eco, selecionando as palavras que têm peso e densidade de sentido. Isso exige alguma paciência, alguma concentração, algum tempo de isolamento. Eu sempre aproveitei esses momentos para ensaiar meus primeiros voos textuais. Por isso, além de catar feijão, eu gostava de ficar de castigo. Às vezes até caprichava em alguma “arte”, para ser premiado com aquele tempo sozinho, num canto, afastado de todos e de tudo, entregue às estórias e estrofes que já começa a criar.

Uma vez minha avó quis me livrar, com o pretexto de me mandar fazer uma compra, mas não adiantou: eu fui, fiz a compra, entreguei a ela a encomenda e voltei pro castigo. Esse caso fez sucesso na família, mas ninguém percebeu que eu já experimentava o sentido da frase de Peter Handke, prêmio Nobel de literatura de 2019, quando disse da necessidade de um momento de pausa e solidão para o trabalho da escrita: aquele ponto de vista que permite ao artista um certo distanciamento do mundo para melhor compreendê-lo e recriá-lo.

Também o leitor que quiser se dar à experiência do “intus legere”, à leitura inteligente de um texto mais elaborado e profundo, o leitor também vai precisar de um pequeno retiro na terceira margem do riocorrente de uma sociedade onde tudo é veloz e fragmentário. O momento de pausa para catar feijão, para escrever um verso ou para ler um poema é um gesto de resistência. Resistência às verdades prontas e acabadas da sociedade do desempenho. Quem escreve, como quem cata feijão, deve estar atento às próprias escolhas; quem lê um poema deve estar atento às escolhas do poeta: os avisos aos navegantes com que ele orienta a navegação solitária, sem o norte do senso comum, sem a bússola do falatório autoritário. Se catar feijão se limita com escrever, o ato da leitura se limita com a navegação no mar dantesco:

“Oh, vós que estais em vossa pequena barca

e, desejosos de escutar, seguis

minha nau que avança cantando,

voltai para ver de novo vossa terra firme,

não entreis no mar aberto, senão,

ao me perder de vista, estareis perdidos”.

(Dante Alighieri, A divina comédia, Paraíso, canto II, versos 1 -6)

Afonso Guerra-Baião  

4 comentários em “O FEIJÃO E O SONHO

  1. Excelente texto e importante refletir sobre a necessidade humana de dar uma pausa na correria do dia dia e ler, meditar, escrever, filosofar solitariamente, exercitar a imaginação e tantas outras possibilidades que andam esquecidas por essa sociedade tão conectada.

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