A Fotografia Humanista, assim intitulada, conforme escreve Martina Caruso, por “ter suas raízes na ideologia socialmente engajada e esquerdista da França dos anos 1930 [pós Primeira Guerra Mundial], estabeleceu-se mundialmente como gênero ao fim da Segunda Guerra Mundial. Seu surgimento coincidiu com um desejo de renovação após a destruição e o sofrimento trazidos pelo recente conflito global.” Após grandes desordens sociais com graves e dolorosos impactos na vida das pessoas, ocorrem desejos de mudanças, uma onda humanista costuma percorrer países, principalmente aqueles que sofreram maiores destruições.
Para esta autora, a Fotografia Humanista apresenta-se como um “braço” da Fotografia Documental, (assim também o Fotojornalismo) possuindo como característica “o interesse pela vida nas ruas, por acontecimentos cotidianos e pelos excluídos da sociedade, assim como a preferência generalizada pelos filmes em preto e branco em vez dos coloridos”; é um discurso imagético de cunho humanista, com uma forte sensibilidade estética e humanitária. São imagens que capturam as emoções humanas e as experiências cotidianas de homens e mulheres comuns, permitindo-nos conhecer pessoas e lugares distantes das realidades dos espaços urbanos ou inseridos nestes, mas vivendo o processo de invisibilidade social.
Na pós-Segunda Guerra Mundial, “deixando de lado algumas das especificidades francesas, a corrente humanista que se formava na fotografia espalhou-se internacionalmente por meio dos fotógrafos atuantes na França, mas também por meio das agências fotográficas e das revistas ilustradas, que já então possuíam um alcance internacional bem considerável” (Zerwes. 2016, p. 2); promovendo-se uma linguagem humana, que para Marie de Thézy, citada por Zerwes (2016, p. 3), atende “essa necessidade calorosa de reencontrar o homem em sua dignidade profunda [sendo este] um fenômeno internacional.”
Ainda segundo Zerwes (2016, p. 3):
Fotografia 1: Imagem extraída da rede social Facebook sem autor e data de reprodução, aqui exposta para que o “não conhecer a autoria” direcione o nosso olhar a condição social imposta aos negros e seus descendentes em países como EUA e Brasil, que viveram longo período de escravidão.
“…a Biblioteca Nacional da França sediou uma exposição e publicou um livro sobre o movimento da fotografia humanista. No livro, Laure Beaumont-Maillet afirma claramente a dificuldade tanto de definir o que seria essa fotografia humanista quanto circunscrever sua atuação e fixar limites cronológicos. Ao apresentar uma tentativa de definição, ela o faz de modo bastante amplo e novamente temos presente a noção de “dignidade humana”. Segundo ela, “A expressão ‘fotografia humanista’ designa uma corrente que privilegia a pessoa humana, sua dignidade, sua relação com o seu meio” (BEAUMONT-MAILLET, 2006, p. 11, grifo nosso). Ao mesmo tempo, a autora afirma contundentemente que o humanismo foi, ao lado do pictorialismo, um dos raros movimentos que tiveram impacto na fotografia internacionalmente, e como um todo (BEAUMONT-MAILLET, 2006, p. 11-12).”
Fotografia 2: Sebastião Salgado, fotógrafo brasileiro considerado um dos maiores talentos da fotografia mundial pelo teor social de seu trabalho. Entre 1993 e 1999, Salgado viajou por diversos países e fotografou a luta dos imigrantes, que resultou no livro “Êxodos”, publicado em 2000. Disponível em https://falasaosebastiao.com.br/2021/07/a-morte-vista-de-perto-reflexao-de-sebastiao-salgado/
Fotografia 3:“Êxodos” é uma história reveladora, que retrata pessoas que abandonam a terra natal contra a própria vontade. Em geral elas se tornam migrantes, refugiadas ou exiladas, compelidas por forças que não têm como controlar, fugindo da pobreza, da repressão ou das guerras. “Mais do que nunca, sinto que a raça humana é somente uma. Há diferenças de cores, línguas, culturas e oportunidades, mas os sentimentos e reações das pessoas são semelhantes”, define Salgado. Imagem disponível em https://www.papocult.com.br/2018/07/20/exodos-de-sebastiao-salgado-ganha-exposicao-em-sobral/
Estendendo nosso olhar para uma história do tempo, que conforme Koselleck se experimenta na sucessão imediata dos fatos, ou a do médio prazo que expressa uma experiência geracional que reconhece determinados padrões ou recorrência nos fenômenos, poderemos configurar certas vivências de indivíduos e de gerações que estavam disponíveis antes das gerações contemporâneas e que seguirão atuando muito provavelmente depois das gerações contemporâneas (Koselleck, 2003, p. 41).
Assim, tanto “os acontecimentos singulares, surpreendentes evocam experiências que dão lugar a histórias, como as experiências acumuladas ajudam a estruturar com o tempo as histórias” (Koselleck, 2003, p. 53). E desta forma, percebe-se que o que movimenta o olhar de um fotógrafo humanista está presente em imagens de tempos outros, onde, os registros fotográficos “enlaçam” principalmente, aqueles que são referência a massa da população que se apresenta a historiografia da história vista de baixo ou de baixo para cima, que como define Hobsbawn, é “a história da gente comum”.
Para este autor “o que é definido oficialmente como “passado” é e deve ser claramente uma seleção particular da infinidade daquilo que é lembrado ou capaz de ser lembrado”. (Hobsbawm. 2011, p. 23) As imagens humanistas declaram condições sociais que atravessam o tempo, capturando cenas de um cotidiano [registrando o que deve ser lembrado] que no estudo da fotografia, estabelece-se no passado, mas por trazer “narrativas humanas, inspirando-se em temas atemporais, como amor, o nascimento, a velhice, a morte e a devoção”, encontram referências nas experiências sociais do presente.
Isso ocorre mesmo quando por conta do fotógrafo, as imagens instantâneas da vida social, são encenadas; a cena vai dizer das sensibilidades e emoções humanas no registro “construído”.
Fotografia 4: Nair Benedicto, Mulheres trabalhando no sisal , Bahia, 1983. “Não importa se estou fotografando índio, se estou fotografando operário, ou se estou fotografando puta. O que importa é o que eu penso, como eu me coloco como mulher. Tem gente que acha que sou politizada demais. Dizem que politizo tudo. Mas não sou eu que politizo, a vida que é politizada”, declara Nair em conversa com a historiadora Erika Zerwes. Disponível em https://revistazum.com.br/entrevistas/conversa-nair-benedicto/
“A postura que adotamos com respeito ao passado, quais as relações entre passado, presente e futuro não são apenas questões de interesse vital para todos: são indispensáveis. É inevitável que nos situemos no continuum de nossa própria existência, da família e do grupo a que pertencemos. É inevitável fazer comparações entre o passado e o presente: é essa a finalidade dos álbuns de fotos de família ou filmes domésticos. Não podemos deixar de aprender com isso, pois é o que a experiência significa. Podemos aprender coisas erradas – e, positivamente, é o que fazemos com freqüência -, mas se não aprendemos, ou não temos nenhuma oportunidade de aprender, ou nos recusamos a aprender de algum passado algo que é relevante ao nosso propósito, somos, no limite, mentalmente anormais. “Gato escaldado tem medo de água fria”, diz o velho provérbio – acreditamos em seu aprendizado a partir da experiência. Os historiadores são o banco de memória da experiência. [meu destaque] (Hobsbawm. 2011, p. 36)
Neste contexto a Fotografia Humanista e tudo que se poderá ser escrito pelo historiador considerando esta fonte, tem como móvel estabelecer uma experiência tão significativa que imponha mudanças sociais que busquem uma sociedade mais igualitária e fraterna, conforme observamos nas fotografias de Sebastião Salgado (1), por exemplo; pois esta retorna ao real àquilo que em aparências é invisível a parcela da sociedade: a imposição de uma condição humana violenta e degradante, concedendo a possibilidade de se documentar a historiografia das condições sociais humanas em determinados tempos históricos.
É a imagem do pobre e do proletário, como na análise de Barthes da obra do genial Carlitos de Chales Chaplin no seu livro Mitologias:
Imagem 1:Os Tempos Modernos de Charles Chaplin, mostrando o operário (Carlitos) diante da maquina para alimenta-lo sem perder muito tempo, para que volte a linha de produção.
“O último gag de Carlitos foi ter feito com que metade do seu prêmio soviético passasse para os cofres do abade Pierre. No fundo, equivale a estabelecer uma igualdade entre o proletário e o pobre. Carlitos atribui sempre ao proletário as características do pobre: daí a força humana de suas representações, mas também a sua ambiguidade política, bem visíveis nesse filme admirável, que é Os tempos modernos. Carlitos aflora incessantemente o tema proletário, mas nunca o assume politicamente. Mostra-nos o proletário ainda cego e mistificado, definido pela natureza imediata das suas necessidades, e a sua alienação total nas mãos dos seus senhores (patrões e polícia). Para Carlitos, o proletário é ainda um homem que tem fome; as representações da fome são sempre épicas em seus filmes: tamanho desmedido dos sanduíches, rios de leite, frutos negligentemente abandonados após a primeira dentada; ironicamente a máquina de comer (de essência patronal) fornece apenas alimentos parcelados e visivelmente insípidos. Tolhido pela fome, o homem-Carlitos situa-se sempre um pouco abaixo da tomada de consciência política: para ele, a greve é uma catástrofe, pois ameaça um homem realmente obcecado pela fome, homem que só recupera a condição operária no momento em que o pobre e o proletariado coincidem sob o olhar (a a pancada) da polícia. Historicamente, Carlitos assume a condição de operário da Restauração, do trabalhador revoltado contra a máquina, desamparado pela greve, fascinado pelo problema do pão (no sentido próprio da palavra) mas incapaz ainda de aceder ao conhecimento das causas políticas e à exigência de uma estratégia coletiva.” (Barthes. 2001, p. 31)
Fotografia 6: Fotógrafo João Roberto Ripper. “Idealizador do Projeto Imagens do Povo, uma Agência-Escola de Fotógrafos Populares do Observatório de Favelas, localizada no complexo de favelas da Maré. Hoje mais de 40 fotógrafos oriundos de espaços populares estão vivendo de fotografia a partir deste projeto. Desde 2011 desenvolve a oficina Bem Querer onde analisa o trabalho de fotógrafos humanistas e sua importância na quebra de estereótipos e no uso da fotografia como ferramenta de transformação social. Disponível em https://www.premiopipa.com/pag/joao-roberto-ripper/
A degradação da dignidade humana também é uma ação política de controle e poder sobre uma parcela da sociedade, sujeita aos favores para viver, vencer a fome, a falta de moradia digna, trabalho e educação. O político, o agente religioso, o patrão são os que “concedem os favores”, em troca de uma “escravidão moderna” e estabelecem os limites (ou zonas) de relacionamento cultural e social.
Na atualidade há aqueles que desejam que as crises humanitárias e sociais, “geradoras” da fotografia humanitária francesa, se repitam: são movimentos fascistas que vem “varrendo” a sociedade cristã ocidental procurando atenuar, desvirtuar e negar o que ocorreu, por exemplo, nos campos de concentração nazista no período da Segunda Guerra Mundial, e desta forma, desfiguram e se opõem a história. Neste caso, a fotografia humanista em imagens permite a construção de narrativas que nos aproximam da realidade daqueles violentados na sua dignidade humana. “A imagem fotográfica é mais que a retenção de um fragmento do real sobre um suporte. São trechos de uma realidade suspensa no tempo, roubados da vida e devolvidos a ela com revelações inesperadas.”
Entre os fotógrafos humanistas podemos citar: Robert Doisneau (1912-1994) e Willy Ronis (1910-2009), Robert Capa (1913-1954), Henri Cartier-Bresson (1908-2004) e David Seymour “Chim” (1911-1956) Werner Bischoff(1916-1954).Henri Cartier-Bresson, e os brasileiros, Sebastião Salgado, Nair Benedicto e fotógrafo João Roberto Ripper.
(1) “A fotografia é para mim uma escrita. É uma paixão, pois amo a luz, mas é também uma linguagem. Poderosíssima. Quando comecei, não tinha limites. Queria andar por todos os lugares onde minha curiosidade me levasse, onde a beleza me comovesse. Mas também por todos os lugares onde houvesse injustiça social, para melhor descrevê-la.” (SALGADO; FRANCQ, 2015, p.27)
Referencias:
BARTHES, Roland. Mitologias. Editora Bertrand Brasil, Rio de Janeiro/RJ. 11ª Edição, 2001.
CARUSO, Martina. A Fotografia Humanista, in, Tudo sobre Fotografia. Editora Sextante. Rio de Janeiro/RJ. 2012.
HOBSBAWM, Eric. Sobre História. Editora Companhia das Letras, São Paulo/SP. 2ª Edição, 2011.
PALTI, Elias José. Introduccion. In: KOSELLECK, R. Estratos del tiempo. Barcelona: Ediciones Paidós, 2003
Um artigo maravilhoso sob todos os aspectos de forma e conteúdo. Me levou a pensar que ninguém (que eu saiba) escreveu sob a perspectiva de os negros continuarem a ser escravizados em seus próprios países pelos sistemas político-econômicos atuais.
Obrigado Francisco, tbm tenho grande admiração pela Fotografia Humanista. Neste momento não me vem a memória quem tenha escrito sobre “a perspectiva de os negros continuarem a ser escravizados em seus próprios países pelos sistemas político-econômicos atuais”, mas vale a pesquisa.
Um artigo maravilhoso sob todos os aspectos de forma e conteúdo. Me levou a pensar que ninguém (que eu saiba) escreveu sob a perspectiva de os negros continuarem a ser escravizados em seus próprios países pelos sistemas político-econômicos atuais.
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Obrigado Francisco, tbm tenho grande admiração pela Fotografia Humanista. Neste momento não me vem a memória quem tenha escrito sobre “a perspectiva de os negros continuarem a ser escravizados em seus próprios países pelos sistemas político-econômicos atuais”, mas vale a pesquisa.
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