Educação para morte: uma proposta para pedagogos e pais. Parte 2
Sei bem que a proposta de reflexão que apresento, neste e no artigo anterior, publicados na Coluna Narciso e o Espelho, não contempla uma abordagem sobre a relação, arte, fotografia, memória e história, mas como educador o tema da morte no cotidiano escolar e a necessidade de uma formação que vise preparar o professor para lidar com a realidade da morte do outro e de si, espelhada na morte do outro, nos espaços de educação, tem figurado como objeto de pesquisa que realizo algum tempo, vinculado a condição da fotografia como lugar de lembrança, pois registram a presença de pessoas, personagens de outros tempos, familiares ou não, não mais presentes: a memória dos mortos, a morte de si e do outro, as lembranças, os vivos e a lembrança dos mortos na memória dos vivos.
É na escola e na universidade que diferentes indagações são feitas. Descobertas são realizadas assim como o levantamento de hipóteses que levam a novos desafios. É no ambiente escolar, no seu cotidiano de relações, que o ser humano se descobre enquanto um ser pensante, capaz de mudar a sua trajetória e buscar àquilo que almeja para a vida como um todo, assim, sendo estas instituições espaços de questionamentos é totalmente justificável a reflexão e discussão sobre a morte nestes ambientes. Mais do que isso, a morte pode ser um instrumento pedagógico para a inserção e reflexão das dúvidas, aflições, e sentimentos com relação à vida. (BATISTA e SILVA, 2018)
Um aluno de cinco anos morreu após ser atingido por um brinquedo durante um evento na escola em que ele estudava, no bairro América, em Barretos (SP), na tarde de quinta-feira (15). Criança participava da festa de aniversário de um colega na área social da escola. De acordo com o boletim de ocorrência, uma “casinha” de brinquedo caiu sobre o menino. Arthur foi socorrido e levado para a Santa Casa da região, onde seu óbito foi constatado. A criança foi enterrada na manhã desta sexta-feira (16).
Importa organizar atividades pedagógicas interdisciplinares sobre o tema da vida e da morte, preparar nossos profissionais da educação para lidarem com ética e respeito junto às crianças e adolescentes que estejam experimentando situações de perda de entes queridos, ou, numa conjuntura mais complexa, a ausência de um ou mais amigos do convívio escolar em circunstâncias vivenciadas na própria instituição de ensino.
Na morte, o corpo, a imagem, a individualidade e a relação de amizade e amor se ausentam e preciso se faz preparar crianças e jovens para esta experiência, seja na escola, seja no lar.
Ross relata uma experiência de sua infância com relação ao desencarne de uma colega de escola, Suzy, que sendo afastada do convívio e reclusa em sua casa, impedida de receber visitas, criou-se uma impressão mais negativa do fato:
Nunca esquecerei que, no dia que Suzy morreu, as cortinas do seu quarto estavam fechadas. Lembro-me de ter ficado triste porque ela estava isolada do sol, dos pássaros, das árvores e de todos os belos sons e paisagens da natureza. Não me parecia certo.
Em nossa cultura social a morte vinculou-se a ideia de solidão e abandono.
Com relação a um fazendeiro amigo do seu pai, lhe foi, após os médicos afirmarem que não podiam mais nada fazer por ele, dada a condição de morrer em casa, junto à família, recebendo amigos. Ross (2004) relata que a dignidade, o amor e a paz que viu (naquela oportunidade) deixaram-lhe uma impressão positiva duradoura.
O velório me proporcionou um momento fascinante. Ao olhar para o corpo, percebi que o homem não estava mais ali. A força e a energia que deram vida a ele haviam desaparecido… O fazendeiro morreu o que hoje chamo de boa morte: em casa, cercado de amor e respeito, dignidade e afeição. Sua família disse tudo o que tinha a dizer e chorou sua morte sem arrependimentos ou questões mal resolvidas. Minhas poucas experiências de então me fizeram perceber que a morte é algo que nem sempre se pode controlar. Porém, com direito a algumas escolhas, isso era até aceitável.” (ROSS, 2004)
Essas experiências só lhes foram possíveis porque seus pais não a afastavam da morte ou das dores da vida quando ocorriam de forma natural; precisamos proporcionar aos nossos filhos assimilar diferentes situações de uma existência, para que construam sentimentos e valores que a apartem do medo e da culpa, da ignorância, quanto à morte e o morrer.
Como na atualidade as instituições de ensino não se ajeitam mais como um espaço fechado para as decisões de ordem pedagógica, propostas como o Projeto de Educação para a Morte, devem ser apresentadas aos pais e debatidas junto ao corpo discente e a direção escolar.
Os escritos de Ricoeur no livro por mim revisitado são especificamente fragmentos testemunhos de suas inquietações com relação à morte, tão humanas e presentes na maioria de nós. Esta é uma das imposições da morte, a de nos fazer pensar na realidade de sua presença, não importando nossa condição social, cultural e religiosa. Percebemos que se faz, primeiramente, necessário instituir o hábito de pensar na morte e no morrer, pois em algum momento vamos nos encontrar com o exame inesperado desta realidade.
Giaretton et al (2020) afirmam que:
A figura do professor é importante para promover o compartilhamento das experiências de vida e possibilitar um processo de luto menos solitário e mais saudável. Nesse sentido, a escola e as relações do(a) professor(a) com o(a) aluno(a) podem consolidar-se em um meio e um vínculo que romperiam com o silêncio e com a ausência de reflexões associadas às perdas. Assim, a presente pesquisa tem como objetivo compreender, pela perspectiva de docentes de escolas públicas de ensino fundamental, como a temática da morte está inserida no ambiente escolar e de que forma ela é abordada com os alunos, em especial na infância.
As indagações e as dúvidas quanto ao morrer e o após vida apresentam-se como problemática dos vivos. Preciso é reconhecer, que os espaços humanos de divulgação e expressões do conhecimento – instituições religiosas, escolas, museus, entre outros –, quase nada ensinam da relação vida e morte.
Por falta de uma abordagem sobre o tema, principalmente junto à formação de pedagogos e educadores nos cursos de graduação ou pós-graduação, observamos que boa parte dos profissionais de educação afasta sistematicamente de suas ações pedagógicas tudo que se refere aos problemas da vida e da relação desta com a morte.
Deparei-me com esta realidade quando da aplicação do Projeto Educação para Morte; natural, porque se trata de uma temática impeditiva de abordagem por diversos fatores culturais, sociais e religiosos, para a maioria das pessoas.
Como professor do curso de Pedagogia da Faeterj – Instituto Superior de Educação de Três Rios – Três Rios/RJ, nas disciplinas de História da Educação, de Arte e Educação e História da Arte, entre outras, propus o Projeto Educação para a Morte: Reflexões sobre a morte no cotidiano escolar e o preparo do professor para lidar com a realidade da morte do outro e de si, espelhada na morte do outro, no 2ª semestre de 2017, para os alunos da disciplina Arte e Educação – 4º e 5º Períodos (repeti o projeto com os alunos do 4º período no primeiro semestre de 2018), com o objetivo de apresentar, discutir e analisar as questões da morte no cotidiano escolar de educação e a importância do professor aprender a lidar com a morte do outro e de si, espelhada na morte do outro (aluno, professores, funcionários, por exemplo); bem como, com as experiências da morte vivenciadas por crianças e adolescentes de seu convívio educacional. O projeto me permitiu constatar que uma série de questões relacionadas à morte também permeiam o imaginário dos professores que experimentam o confronto desta realidade nas suas atividades educacionais
Os diversos olhares com relação à morte e o morrer, que já percorreram longa jornada temporal da história humana, impõem à alma contemporânea obscuridade e equívocos e como consequência o medo e o evitar-se pensar em tudo que se relaciona ao problema de sua natureza espiritual e de seu futuro. Este estado de coisas está na base do tumulto de consciências e da desordem moral e ética da atualidade.
É possível utilizar-se da arte em suas diversas expressões para uma abordagem pedagógica sobre o tema, como sugestão:
Imagem 2: Cena do filme “A vida depois” que traz como atores Jenna Ortega, Maddie Ziegler, Niles Fitch, Will Ropp, entre outros.
1 – O filme “A vida depois” que aborda questões de emocionais após a um ataque à escola, ao debater o processo de se tentar retornar a vida escolar após uma tragédia, apresentando ponderações sobre como diminuir o trauma e a urgência de se cuidar das crianças e adolescentes envolvidas no processo. Como sinopse: Em A Vida Depois, uma estudante do ensino médio enfrenta consequências emocionais após uma tragédia escolar. A partir desse processo, ela forma um vínculo único e dinâmico com outros dois adolescentes, em uma jornada muitas vezes confusa, de cura. A jovem experimenta em seus relacionamentos, seja com a família, amigos ou até mesmo em suas visões de mundo, uma transformação significativa, potencializadas pela intensidade desse período da vida e por seus traumas. O filme retrata os rostos invisíveis de uma tragédia, e seus esforços em conseguir (ou nem sempre conseguir) transformar a dor em uma mudança positiva no mundo.
2 – E o filme “Elefante” (este é muito bom), que tive a oportunidade de utilizar em uma atividade sobre o tema, que tem como sinopse: Um dia aparentemente comum na vida de um grupo de adolescentes, todos estudantes de uma escola secundária de Portland, no estado de Oregon, interior dos Estados Unidos. Enquanto a maior parte está engajada em atividades cotidianas, dois alunos esperam, em casa, a chegada de uma metralhadora semiautomática, com altíssima precisão e poder de fogo. Munidos de um arsenal de outras armas que vinham colecionando, os dois partem para a escola, onde serão protagonistas de uma grande tragédia.
Imagem 3: É um filme americano apresentado em 2003, escrito e realizado por Gus Van Sant, foi inspirado no massacre de Columbine/EUA.
Vivemos tempos em que a pandemia (1) e por causa desta, o isolamento social, trouxeram-nos entre outros sentimentos, a angústia da experiência da morte e do morrer e o luto na ausência do corpo a ser velado.
A realidade da morte e o medo que ela ainda inspira ao ser humano induzem a atividades e pensamentos, sociais e religiosos, que buscam vencê-la mediante sua negação.
Olivier Abel afirma que, em janeiro de 1996, em diálogos realizados através de correspondências desde fins de 1995 com Ricoeur, sobre a morte, a vida e as esferas dessas dúvidas, este, Abel, lhe escreveu uma carta de vinte páginas prolongando os escritos de “confidências sem confissão”, no livro La Critique et la Conviction, de 1995, onde Ricoeur apresentou sua meditação “sobre a renúncia à ideia de sobrevida…”
Quando da minha morte [que Deus], faça de mim o que ele quiser. Não reclamo nada, não reclamo nenhum pós. Atribuo aos outros, meus sobreviventes a tarefa de assumir o meu desejo de ser, o meu esforço para existir, no tempo dos vivos. (RICOEUR, citado por Abel, 2012)
As imprecisões sobre a morte e o morrer, fez com que ele entregasse em palavras e sentimentos, o seu destino a Deus; e a quem mais poderia ser?
Então, neste estado de um futuro sem critérios indispensáveis ao aclareamento, sem os meios de verificação e de comparação preciosos ao pensamento humano, Ricoeur encontrava-se no findar de uma existência, confiado a si mesmo e as suas indagações.
A esperança estava na íntima vontade de sentir-se vivo após a morte, entregando-se a Deus e aos seus sobreviventes por anseio, através da obra de sua vida.
É desta maneira que também procuramos vincular aos outros, nossos entes queridos e a Deus, nos caminhos e gestos determinados culturalmente pela nossa sociedade cristã ocidental, o desejo que temos de continuar vivos, como “reconhecimento infinito em relação a alguém que não nasceu em vão; e isso parece poder ser dito de qualquer um.” (ABEL. 2012)
Refletir sobre a própria morte (…) deve ser feito por todo ser humano individualmente. Todos nós sentimosnecessidade de fugir a esta situação; contudo, cada um de nós, mais cedo ou mais tarde, deverá encará-la. Se todos pudéssemos começar admitindo a possibilidade da nossa própria morte, poderíamos concretizar muitas coisas (…) encarando ou aceitando a realidade da nossa própria morte, poderemos alcançar a paz, tanto a paz interior como a paz entre as nações.” (ROSS, 2011)
Muitos de nós equilibramo-nos, como numa corda bamba bem acima do picadeiro da vida, no temor, no medo da perda: de um amor verdadeiro, daquele convívio demorado que suscita harmonia e correspondência; temor da frágil segurança no existir em uma vida física que pode se esvair a qualquer momento; temor de sermos esquecidos e descobrirmos que não fomos amados como desejamos; temor em perder os bens acumulados, as paixões.
É neste estado de existência que construímos a nossa história com a morte – uma condição de perda, incapaz de proporcionar a paz e a felicidade –, mesmo sendo a morte que sinaliza o término da relação entre o tempo, na finitude imaginada e a vida, e o desejo de que esta recomece em outro momento, em outro lugar.
E neste sentido, no espaço escolar de ensino, ou no espaço familiar de relação, é preciso que a morte e o morrer, e a vida, sejam objetos de estudos e reflexões.
RICOEUR, Paul. Vivo até a morte, seguido de fragmentos. São Paulo. 1ª Edição, Editora WMF Martins Fontes, 2012.
ROSS, Elisabeth Kübler. A Roda da Vida. Sextante. Rio de Janeiro/RJ. 2004. ROSS, Elisabeth Kübler. Sobre a Morte e o Morrer. Editora WMF Martins Fontes Ltda. São Paulo/SP, 9ª Edição, 2ª Tiragem, 2011.
ROSS, Elisabeth Kübler. Sobre a Morte e o Morrer. Editora WMF Martins Fontes Ltda. São Paulo/SP, 9ª Edição, 2ª Tiragem, 2011.