Educação para morte: uma proposta para educadores e pais

Parte 1.

“Não é fácil lidar com a morte, mas ela espera por todos nós… Deixar de pensar na morte não a retarda ou evita. Pensar na morte pode nos ajudar a aceitá-la e a perceber que ela é uma experiência tão importante e valiosa quanto qualquer outra.” (ARIÈS, 2003)

Em algum momento nós educadores imaginamos no exercício de nossas atividades, utilizar a morte como instrumento pedagógico? Ou usar a morte e a finitude da existência humana como proposta para se viver melhor? E você pai e mãe: a morte é assunto comum em família ou somente quando do desencarne de um ente querido? (Alguns preferem mesmo nem comentar escondendo a morte das crianças).

A morte é entendida como um tabu na nossa sociedade cristã ocidental, apesar de ser a única certeza que temos em vida; conhecemos o destino humano quando confrontado com o tempo, mas evitamos consumir, discutir e pensar neste assunto. A vida é um desafio e não um drama. Enquanto educador constatei durante a minha pesquisa que a despeito de estar associada à perda, à dor e muitas vezes a grande sofrimento físico, psíquico, social e espiritual, a morte e o morrer poderiam ser de grande valia e utilizada como instrumento educacional para o aprendizado sobre os objetivos e fins da vida.

“(…) A morte seria, pois, um instrumento pedagógico por excelência para refletirmos e educarmo-nos sobre as coisas que nos são mais caras: a vida, a felicidade e o amor.” (SANTOS e INCONTRI, 2009)

Imagem 1: No Espírito Santo, atirador invadiu escolas e matou quatro pessoas. – Foto: Reprodução. “A Polícia Civil do Espírito Santo informou que o assassino que atacou duas escolas na sexta-feira (25/11/2022) em Aracruz vai responder por ato infracional análogo a três homicídios e a 10 tentativas de homicídio qualificadas. Ele foi encaminhado ao Instituto de Atendimento Socioeducativo do Espírito Santo (Iases), em Cariacica, na Grande Vitória. O assassino tem 16 anos e estudou até junho no colégio estadual atacado, segundo o governador do estado, Renato Casagrande (PSB). O ataque foi planejado por dois anos. Ainda de acordo com o governador, o criminoso usou duas armas no ataque, ambas do pai, um policial militar. Os disparos partiram de uma pistola .40 – que pertence ao Estado e era usada pelo policial para trabalhar – e de um revólver particular, de propriedade do pai do criminoso. Na roupa camuflada que o adolescente vestia durante o ataque, havia ainda uma braçadeira com símbolo nazista (…) – Disponível em https://horadopovo.com.br/policia-do-espirito-santo-investiga-se-autor-de-atentado-em-escolas-possui-relacao-com-grupos-nazistas/.

Desta forma, observei que uma série de questões relacionadas ao tema também permeiam o imaginário dos professores e pais, que experimentam o confronto desta realidade nas suas atividades educacionais e sociais de relação familiar.

“Violência, preconceito, agressão e exclusão fazem parte da rotina de escolas públicas brasileiras, mostram relatos, pesquisas e análises sobre o assunto. A necessidade de ajuda para lidar com o tema é um dos argumentos em defesa do projeto de lei 3.688, em tramitação no Congresso há 17 anos, que propõe a contratação de psicólogos e assistentes sociais para assegurar a atendimento a alunos da rede pública e apoio aos professores no ambiente escolar.”

No tempo contemporâneo em que a violência apresenta suas faces fora e no interior das instituições escolares, estando presente e impactando o cotidiano da escola, nas atitudes de indivíduos ou grupos, e entre estes, alguns oriundos das mãos dos próprios alunos; é por demais importante, inserir como proposta para a formação de educadores, ação pedagógica que abarque reflexões sobre a vida e a morte, embasada em construtos teóricos e práticos de filósofos-educadores que apresentem em comum uma identidade ideológica que consista em ver o ser humano como um ser dotado de espírito, em um processo contínuo educacional e de aprendizado, possuidor de uma consciência ética e destinado à transcendência e à felicidade.

Imagem 2: Maria Eduarda foi alvejada dentro da escola durante uma operação policial – Foto: reprodução. A morte da adolescente Maria Eduarda, 13 anos, que levou um tiro dentro da Escola Municipal Jornalista Daniel Piza, no bairro da Pavuna, zona norte do Rio, completa três anos nesta segunda-feira (30/11/2020). A jovem estava numa aula de educação física quando foi atingida por disparos de arma de fogo durante um confronto entre policiais e criminosos na região. De acordo com o laudo de necropsia, dois tiros na base do crânio foram a causa da morte de Maria Eduarda. Disponível em https://www.brasildefatorj.com.br/2020/03/30/morte-da-estudante-maria-eduarda-alvejada-dentro-de-escola-completa-3-anos.

Segundo o blog E-docente, em artigo publicado em 1/08/2023, intitulado Violência nas Escolas: causas, consequências e possíveis soluções, temos que:

Um dos primeiros ataques a escolas de que se tem notícia no país (…) Em 27 de janeiro de 2003, um estudante de 18 anos disparou 15 tiros contra cerca de 50 estudantes no pátio da Escola Estadual Coronel Benedito Ortiz, em Taiúva, interior de São Paulo. Pouco depois, atirou na própria cabeça e faleceu, sendo a única vítima fatal. Desde então, foram 25 ataques a escolas, que deixaram 139 vítimas nas últimas duas décadas. Ao todo, 46 pessoas foram mortas e 93 ficaram feridas. Os dados foram apurados pelo Instituto Sou da Paz. Dentre os episódios mais famosos, destacam-se:

  • o incêndio criminoso da creche Gente Inocente, Minas Gerais, em 2017 (14 mortes);
  • o ataque a tiros que vitimou 13 pessoas em 2011, no bairro de Realengo, no Rio de Janeiro,
  • e o atentado com armas e machadinha que provocou nove mortes em Suzano (SP), em 2019.

Nesses dois anos (2022 e 2023), em nosso país, houve um atípico quantitativo de simulacros e realizações efetivas de “celebrações” de Columbine [atentado ocorrido em 20/04/1999, na Escola Pública americana Columbine High School, naquele que foi um dos primeiros massacres a chocar o mundo, com um total de 15 mortes] em vários estados. Ainda de acordo com o Sou da Paz, o caso do Paraná [No dia 19 de junho de 2023, houve morte e ferimento de adolescentes no Colégio Estadual Professora Helena Kolody, em Cambé, no Paraná, devido à ação de um ex-aluno, de 21 anos de idade] é a sétima em escolas nos primeiros seis meses de 2023 – o maior número registrado desde 2002, quando um tiroteio em um estabelecimento de ensino em Salvador deixou duas mortes.Segundo outra pesquisa, do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral – Unicamp/Unesp (Gepem), os ataques nacionais (ainda sem a contabilização do caso recente do Paraná) foram cometidos por alunos ou ex-alunos entre 10 e 25 anos, sendo que nove ocorreram entre o segundo semestre de 2022 e abril de 2023.

Uma proposta de educação para morte, entendida como desenvolvimento pessoal, aprimoramento e cultivo do ser integral, apresenta-se como uma busca de sentido à vida que a morte oferece.

“Essa educação envolve comunicação, relacionamentos, perdas, situações-limite, nas quais reviravoltas podem ocorrer durante a vida, como, por exemplo, fases do desenvolvimento, perda de pessoas significativas, doenças, acidentes, até o confronto com a própria morte.” (KOVÁCS, 2005)

Imagem 3: Guilherme Taucci Monteiro, 17 anos, participante do ataque na escola estadual em Suzano (SP) (Fotomontagem/Reprodução). Massacre na cidade de Suzano/SP em 2019, a imagem mostra um dos atiradores, foram dois, que cometeu suicídio ao final da ação. Disponível em https://veja.abril.com.br/brasil/atirador-de-suzano-postou-imagem-com-mascara-e-arma-antes-do-crime.

É preciso superar o silêncio imposto pela sociedade com relação à morte, apesar desta realidade estar presente em vários momentos da nossa existência, porque ao pensarmos com naturalidade o assunto, cuidaremos de uma melhor qualidade de vida.

Ana Maria Araújo Freire, (2015) Doutora em Educação pela PUC de São Paulo, viúva de Paulo Freire, discorrendo sobre este grande educador brasileiro, afirmou que ele foi um homem apaixonado pelas pessoas e pela vida, de forma autêntica e profundamente dialética.

“Sentir e pensar, tentando sempre, dialeticamente, completar assim sua incompletude. Incompletude, aliás, como um traço humano comum a toda e qualquer pessoa… Paulo praticou nele mesmo a Aretê, como os mestres da Antiguidade a praticavam com seus alunos para tornarem-se seres da inteligência e dos afetos dentro do ideal da Paidéia Grega. Paulo sabia-se um homem que precisa se tornar mais e mais um educador exemplarmente ético, que, precisava, portanto, tratar as suas próprias fragilidades. Tratar as suas fragilidades é já ir construindo as suas qualidades.”(FREIRE, 2015)

Imagem 4: Ana Maria Araújo Freire junto com Paulo Freire em fotografia de 1988. Disponível em https://gauchazh.clicrbs.com.br/educacao/noticia/2017/10/quanto-mais-se-bate-em-paulo-freire-mais-ele-cresce-diz-viuva-do-educador-cj8yucu4c02lr01oyljary25u.html.

Compreende-se com estas palavras, o quanto é fundamental que venhamos a tratar das nossas fragilidades perante a morte do outro; pois este fato é o espelho que reflete a nossa realidade do morto de amanhã.

Este é o imenso desafio de pais e educadores: a morte e o morrer, e a vida, nos convidam a ofertar diretamente aos nossos filhos, ou em nossas instituições de ensino e na formação dos nossos educadores, um projeto educacional para a vida e para a morte, objetivando o aprimoramento humano, o cultivo do ser enquanto consciência que supera o limite temporal de uma vida.

“Ele viveu intensa e profundamente todas as coisas da vida, atento às contradições e às ambiguidades próprias da existência humana. Para isso, Paulo entendeu que o diálogo deveria começar dentro de seu próprio corpo, dele com ele mesmo, enquanto ser que sentia e que pensava procurando atingir o máximo possível a coerência, a tolerância e o respeito. Assim, nunca deixou de procurar na inteireza do seu ser o diálogo de seu corpo como sendo o das totalidades contraditórias buscando o seu Ser Mais. Foi assim, estendendo à sua maneira de ser através do diálogo consigo mesmo, que entendeu tão bem os seus semelhantes. Paulo compreendeu o seu corpo como uma entidade capaz de amar, de sentir, de pensar, de dizer e de fazer coisas – à imagem do “tudo está no meu corpo”, “tudo acontece no meu corpo” de Merleau-Ponty -, relacionando-se humilde e amorosamente com os outros seres, humanos ou não, voltado para um projeto de um mundo melhor, porque mais justo, procurando unificar tudo num gesto único de constituir-se enquanto ser gente.” (FREIRE, 2015, pag. 291)

No trato com a morte quando presente no espaço escolar de relação, interagindo no cotidiano dos alunos e profissionais de educação, as ausências e incertezas e o não saber lidarem com a perda repentina de alguém sempre presente, repercutem a interdição da morte na sociedade, apesar de ser companheira invasiva e sem limites, e as incompletudes da formação dos educadores.

Continua…

Referências bibliográficas:

ARIÈS, Philippe. História da Morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro, 1ª Ed., 2003.

FREIRE, Ana Maria Araújo. A Leitura do Mundo e a Leitura da Palavra em Paulo Freire. Caderno Cedes, UNICAMP, Campinas, v. 35, n. 96, maio-ago., 2015.

KOVÁCS, Maria Júlia. Educação para a Morte. Disponível no site: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932005000300012&gt;.

SANTOS e INCONTRI, Franklin Santana e Dora (Org.). Perspectivas Histórico-Culturais da Morte in A Arte de Morrer: Visões Plurais. 2ª Edição, São Paulo: Editora Comenius, 2009.

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