Pelos olhos do Guilherme… 13 anos depois

Quais os sentidos das imagens fotográficas geradas por uma criança? Não aquelas produzidas a partir de uma prática educativa – oficina de fotografia ou qualquer outra realizada com fins pedagógicos, mas as que acontecem basicamente no âmbito familiar de suas interações sociais? Exatamente há 13 anos, (17/04/2011) eu publicava um artigo intitulado Pelos olhos do Guilherme rememoro a minha infância, em duas edições, na sessão Espaço do Leitor, na Revista ContemporArtes, com minhas reflexões sobre os registros feitos pelo meu neto, Guilherme, então com quase 5 anos.

“Não posso deixar a minha Sony Cyber-shot ou o meu celular a vista, que o Guilherme sai pela sua ainda breve vida a registrar em imagens o mundo à sua volta.Guilherme Reis Mattos Duarte Lima, meu neto, 4 anos, filho da minha querida Natália, com um tio pouco mais velho, meu amado João Vitor de 8 anos. Moramos todos em um pequeno apartamento alugado no bairro de Cantagalo em Três Rios/RJ.”

Desta maneira iniciei o artigo.

A representação social dos grupos, espaços e objetos de relação são realizados pelo próprio sujeito, construindo seus registros de memória, inserido numa cultura que, ao mesmo tempo é alimentada na interação com outros grupos e indivíduos no convívio em lugares sociais menores e mais intensos, numa família por exemplo, e em outros mais amplos.

O ato fotográfico “é um estado do olhar que, por necessidade, invade outros territórios do saber [e do viver] humanos”. (SAMAIN. 1998, p. 14) A interação com todo o seu ambiente de relação, no que possuíam de objetos, símbolos e pessoas de seu interesse, permitiu-me naquele momento, e ainda hoje, percorrer o campo das sensibilidades, do imaginário, dos sonhos, das narrativas e da memória, expressos nas imagens construídas sem a preocupação com a técnica, apenas, a vontade, o ato… o modo de dizer do Gui.

Imagem 1: “Mas hoje, ao transferir mais umas tantas imagens registradas pelo Gui, me deparei com a fotografia 1, e… lá estava ele, no gesto, na ação de fotografar, auto se retratando sem assim o perceber, refletido no tubo da televisão.” Janeiro de 2011. Acervo André Mattos.

E foram “centenas de imagens captadas em um período muito curto… A cada oportunidade de revelar por onde percorre o seu olhar, me encontro fascinado, animado mesmo…”

Hoje me coloco numa perspectiva diferente; pois ao retomar “o seu olhar”, percebo que o registro fotográfico, no avançar do tempo, além de continuar a revelar as experiências e vivências do Guilherme realizadas no seu mundo particular (inserido em outros mundos), agora, me permite constatar a importância de tudo que estava a sua volta para a formação de sua identidade e ao mesmo tempo, concede-me o penetrar novamente no espaço da criança, propiciando conhecê-la um pouco mais, através das fotografias, pois a Sony Cyber-shot era seus olhos, e as imagens fotográficas, a multidimensionalidade da sua vida.

“Com o desenvolvimento da fotografia, iniciou-se um percurso em direção a novos/outros modos de descrever/escrever o mundo, não mais restrito ao âmbito do verbal, porém igualmente sistematizando as manifestações subjetivas sobre a cultura humana. A foto-grafhia resulta do olhar humano mediado pela tecnologia, remetendo a uma grafhia que necessariamente não está relacionada â racionalidade da cultura do letramento.” (Brandão. 2010, p. 16)

Imagem 2 e 3: Sua mochila destacando os “heróis” do Hot Wheens (seu mundo está repleto de heróis) e seu tio João Vitor dormindo. A relação dos dois é de muito carinho, com as provocações inerentes a idade e a uma relação de irmãos. Objetos, pessoas, espaços de sua vida.  Janeiro de 2011, imagem registrada pela Sony Cyber-shot. Acervo André Mattos.

O ato fotográfico é capaz de registrar no tempo ínfimo de sua construção, imagens fragmentos de uma realidade quase que impossível de imaginada no mundo de nossas dimensões reais. Vejamos a imagem 1:

Esta é a fotografia que mais me impressionou, pois ao tentar fotografar um dos seus desenhos preferidos na televisão, no intervalo sem imagens, geralmente em um tempo pequeno, o reflexo na tela perpetuou seu gesto, sua intenção, sua mãe ao fundo, meu pequeno fotógrafo, meu Gui. É a aparência de algo não perceptível ao olhar comum, mas possível de ser registrado no ato fotográfico.

Ao tirar mais uma foto (imagem 1) da televisão (são várias) buscando registrar os seus desenhos favoritos, sua imagem segurando a câmera digital reflete no tubo da tv: um autorretrato de cuecas, uma imagem a revelar sua ação, a animação com a brincadeira. Ele sabe que o captado permanece, retoma as fotografias uma a uma, na própria máquina ou depois, no meu computador. No fundo a silhueta de sua mãe se olhando no espelho da sala do nosso apartamento. É a fotografia materializando a subjetiva fantasia, o que não será mais repetido, e ao mesmo tempo havendo tanto da história de sua vida. O indivíduo que fotografa normalmente não é neutro, possui uma intencionalidade, mas Guilherme naquele instante percorre um caminho breve e desconhecido, não imaginado.

Imagem 4, 5 e 6: Na sequência: Sua mãe Natália, eu no meu carro quando estávamos aguardando o JV sair do colégio e seus heróis colados em um caderno. Janeiro e fevereiro de 2011. Acervo André Mattos

O tempo é o elemento primordial ao estudo da fotografia, da memória e da história. As apreciações quanto ao passado estão sempre condicionadas pela temporalidade. Os significados históricos do tempo encontram, na memória, o substrato capaz de aproximar as ações humanas do passado da realidade múltipla das sociedades contemporâneas, definidas quanto aos valores, culturas, modos de relações, vivências, experiências e representações. Estes significados estão presentes nas diversas formas de registros e marcas, os fragmentos e as ruínas, as fontes e testemunhos, que o historiador utiliza para a construção do conhecimento historiográfico.

Em experiências como esta, mesmo atentando a uma passagem de tempo insignificante em relação aos recortes das pesquisas em História, mesmo as da História do Tempo Presente; a fotografia também assume a sua condição de lugar de lembrança.

A condição de testemunho de memória vincula-se à fotografia quando do ato fotográfico, momento do “nascimento” da imagem , sendo este também o finalizar de um procedimento que surge com a aspiração de um sujeito, processo depoimento da condição cultural e social do fotógrafo em seu tempo histórico, tornando-se a imagem revelada o testemunho de lembranças que admite a rememoração.

Pierre Bourdieu quando resolveu avaliar uma coleção de fotografias do seu amigo de infância Jeannot, desejou…

“tentar explicar, por exemplo, a frontalidade dessas imagens e o fato de nelas revelarem-se relações entre pessoas e uma série de coisas que indicam a medida de sua necessidade e que, por isso, têm o efeito de reabilitá-las.”

Nesta perspectiva as fotografias apresentam-se como objetos possíveis a uma leitura sociológica; e no caso em analise, que…

“nunca sejam consideradas em si mesmas e por si mesmas em termos das suas qualidades técnicas e estéticas… A fotografia deve apenas possibilitar uma representação suficientemente crível e precisa para permitir o reconhecimento. É metodicamente inspecionada e observada, à distância, de acordo com a lógica que governa o conhecimento dos outros no quotidiano. Através do confronto de conhecimentos e experiências, situa-se cada pessoa por referência…” (Bourdieu) ao grupo e espaços a que pertence.

Imagem 7, 8 e 9: É muito representativa a imagem em que o Gui registra um porta-retratos onde esta uma fotografia do JV com ele ainda nenê no colo. A seguir temos o momento em que guardo o meu carro com o JV assistindo e a imagem do seu rosto, todas as fotografias de fevereiro de 2011. Acervo André Mattos.

Foi a Sony Cyber-shot o instrumento de uma lembrança ainda viva na memória, na formatação de imagens recordação de uma vida sendo vivida. Se naquele tempo as fotografias do Guilherme eram…

registros, traços do mundo que consegue (ia) observar com a atenção e preferências da sua idade. Os brinquedos, os bonecos seus heróis, os espaços do apartamento (sala, seu quarto, o meu quarto, a cozinha), sua mãe, seu tio, seu avô, sua mochila do colégio, as capas dos seus dvds favoritos, os decalques colados no caderno ou nas mobílias, o desenho na tv, seu rosto… a rua ao lado do apartamento onde brinca com o tio, meu carro, o estacionamento improvisado… seu espaço de vida.”

Imagens 10 e 11: Guilherme e Manu, registro de um passeio na praia de Unamar, Cabo Frio/RJ, no início deste ano. Fotografias do Instagram do Gui.

Atualmente as fotografias compartilhadas no Instagran se concentram na manifestação de sua individualidade e da relação que possui com a Emanuele, bem “ao gosto” das experiências de um tempo onde o “olhar” se volta à sentimentalidade e ao narcisismo; com a câmera eternizando o que a memória – nos lugares de lembrança, pode guardar, “impedindo” que o vivido se perca nos lugares de esquecimento

Conforme sinaliza Kossoy, a fotografia “documenta a própria atitude do fotógrafo diante da realidade, seu estado de espírito e sua ideologia acabam transparecendo em suas imagens, particularmente naquelas que faz para si como forma de expressão pessoal.” (KOSSOY, 2001, p. 43). Estes registros tornaram-se, com o atravessar dos anos, ainda mais, lugar de lembrança, permitindo-me como sujeito inserido na realidade de sua concepção, o rememorar do passado…

pois “não fala (forçosamente) daquilo que não é mais, mas apenas e com certeza daquilo que foi;” (Barthes, p 127); não é memória, mas o testemunho, a lembrança (e que lembrança boa) de um sujeito ou de um grupo social, num determinado tempo histórico, podendo esta assumir lugar no quadro de referências de nossas lembranças.

Não só para mim, mas também, para o meu querido Guilherme, sua mãe, seu tio, que rememoradas com certeza em qualquer tempo, mais do que o simples reviver de imagens do passado, serão sempre a confirmação da história de uma vida.

Referências:

BARTHES, Roland. “A Câmara Clara”. Rio de Janeiro. Editora Nova Fronteira. 2008

BOURDIEU, P. & BOURDIEU, M.-C. 1965. Le paysan et la photographie. Revue française de sociologie, v. 6, n. 2, p. 164-174, avr.-juin.

BRANDÃO, Claudia Mariza Mattos. Grafhias do Tempo em Mim, in, Sob o Signo da CegueiraÇ foto-graphando o cotidiano. Editora e Gráfica Universitária da UFPel, Pelotas/RS. 2010.

KOSSOY, Bóris. Fotografia e história. 2. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.

SAMAIN, Etienne (org). O Fotográfico. São Paulo, Ed. Hucitec, 1998.

Um comentário em “Pelos olhos do Guilherme… 13 anos depois

  1. […] a fotografia “documenta a própria atitude do fotógrafo diante da realidade, seu estado de espírito e sua ideologia acabam transparecendo em suas imagens, particularmente naquelas que faz para si como forma de expressão pessoal.” Achei isso maravilhoso, adorei ver os registros dele conhecendo o mundo e o fechamento com o que é importante pra ele registrar hoje em dia. Me lembrei que minha sobrinha Tata, de 8 anos, adora tirar foto e agora vou observar essa fotografias com um outro olhar. ❤

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