Em matéria publicada no dia 26/01/2010, no site http://www.agenciaserra.com.br/ler_noticia.php?acao=noticia&id=7382, com o título “Três Rios: Como Pilatos, Cultura “lava mãos”, possibilitando derrubada do palacete da família Nasser”, o jornalista José Barros (in memoriam), escreveu sobre a demolição de uma das mais tradicionais residências de Três Rios:
Sem que a prefeitura tomasse a menor providência para evitar a derrubada (…), no finalzinho do ano, quando todos se achavam envolvidos com os festejos natalinos, foi demolida a casa de número 123, da Praça da Autonomia, localizada numa esquina vizinha a da agência do Banco do Brasil, confluência com a Rua Duque de Caxias, no centro da cidade.
A antiga residência, fotografias 1 e 2, em estilo neoclássico lembrava as consagradas obras do século XIX, e pertenceu à família do próspero comerciante libanês José Nasser, personagem que exerceu enorme influência na economia da antiga Entre Rios, na década de 1930, sendo que um dos seus filhos foi prefeito da cidade, o falecido Samir Nasser.
Fotografia 1: Casarão dos Nasser, esquina da Rua Duque de Caxias com a Praça da Autonomia, fotografia de 2009, pertence ao acervo da Rádio Três Rios. Sem autor definido.
Fotografia 2: Casarão dos Nasser, de frente a Praça da Autonomia, fotografia de 2009, pertence ao acervo da Rádio Três Rios. Sem fotógrafo conhecido.
Ainda José Barros em seu artigo:
Neste prédio, a presença da platibanda encimando a fachada encobre o telhado, como na maioria das fachadas clássicas; o arco romano emoldurando os vãos; a balaustrada no guarda-corpo. Linhas geométricas simples e calculadas são próprias do neoclássico. A escadaria erguendo o prédio em um terreno plano tem por finalidade conferir monumentalidade. O neoclássico vai buscar essas influências precisamente no Maneirismo, ao final da Renascença. Lamentavelmente, as Secretarias de Cultura e de Obras da cidade nada fizeram e lá se foi um patrimônio tão valioso que, caso pertencesse a outros municípios que respeitam suas histórias, caso de Petrópolis, Nova Friburgo e até mesmo Paraíba do Sul, certamente teria sido preservado.
Os patrimônios de natureza material e imaterial são portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos grupos instituidores das organizações sociais, formando o patrimônio cultural da nação, dos estados e dos municípios. A evolução urbana da cidade de Três Rios, no processo de formação do atual espaço físico e social, privilegiou a representação do moderno e a identificação do progresso, como ainda se realiza nas diversas obras que adaptam a cidade ao crescimento econômico e populacional acelerado nas últimas décadas.
Fotografia 3: Entre-Rios na década de 20. Observa-se ao centro a Rua (depois avenida) Condessa do Rio Novo; no lado esquerdo da imagem a Estação Ferroviária D. Pedro II e a direita, os prédios comerciais que seriam demolidos para a ampliação e modernização desta artéria rodoviária. Vislumbra-se ao centro e acima o Largo da Capelinha, com a Capela de São Sebastião e mais a direita as árvores da Praça Oscar Weinchenk, construída em 1902. (sobre este espaço urbano ver: https://revistacontemporartes.net/2023/07/17/a-praca-o-coreto-e-a-memoria-dos-espacos-urbanos-de-relacao/. Ao fundo a direita as águas do Rio Paraíba do Sul. Sem registro do fotógrafo.
Na fotografia 3 temos o registro da cidade de Três Rios/RJ na década de 20 do século passado, se destacando ao centro a Av Condessa do Rio Novo, ainda hoje, a principal artéria de deslocamento rodoviário, ensejando a saída de um lado para as cidades de Petrópolis e Rio de Janeiro (pela Avenida Zoello Sola), do outro, a cidade de Juiz de Fora/MG (pela Rua Nelson Viana). É possível ver a sua direita os casarões que abrigavam o comércio a época, até e após o Largo da Capelinha e a esquerda os edifícios da Estação Ferroviária.
As mudanças que ocorreram neste trecho da avenida foram consideradas, no final da década de 60, como marco do progresso e da modernização do município. Empreendeu-se o seu alargamento, pavimentação e instalação de iluminação a vapor de mercúrio, a remoção dos postes da Rio-Ligth e da Companhia Telefônica Brasileira, bem como, da rede telegráfica. O Correio Trirriense, em sua edição de 23 de abril de 1970, nº 412, informa que “exatamente 53 prédios foram (…) removidos pela Prefeitura Municipal de Três Rios”, para a efetivação da obra.
Fotografia 4: Imagem presente na capa de O Correio Trirriense em sua edição de nº 359, de 6 de fevereiro de 1969, que trouxe a notícia da demolição do Hotel Central, após “batalha judicial”, “um dos últimos obstáculos ao progresso”. Acima e a esquerda parte da estrutura da cobertura da antiga Estação Ferroviária D. Pedro II. Sem autor conhecido.
Neste mesmo periódico em sua edição de nº 359, de 6 de fevereiro de 1969, temos, em destaque a imagem 4, e a notícia da demolição do Hotel Central, após “batalha judicial”, “um dos últimos obstáculos ao progresso” com a ampliação da Av. Condessa do Rio Novo. No corpo da notícia lê-se:
Como é de conhecimento de todos, o recuo dos prédios situados a Rua Condessa do Rio Novo foi decretado a 29 anos, ainda na administração Walter Francklin. Todavia, somente a 2 anos passados a Prefeitura resolveu dar execução ao decreto. Vários prédios foram demolidos, outros recuados, restando apenas o do Hotel Central, pois seu proprietário recusava sistematicamente qualquer acordo amigável com a municipalidade, forçando assim, o recurso a Justiça, que culminou com a sábia decisão de segunda-feira última.
Ainda se destaca a informação de que “toda a cidade aplaudiu.”
Fotografia 5: Destaca-se os prédios na antiga Rua Condessa do Rio Novo, demolidos quando da sua ampliação, imagem sem fotógrafo conhecido, Entre-Rios, década de 20.
A demolição do Casarão dos Nasser representou um dos marcos finais deste processo, pois poucas residências particulares e espaços arquitetônicos, representativos do período inicial de urbanização da Vila de Entre Rios, se mantêm intactos; a maioria foi demolida, alterada, remodelada ou substituída por construções mais modernas, alargamento de ruas, edifícios residenciais e shoppings comerciais. Moraes (2000) lembrando Baudelaire escreve que este
(…) aponta o sentido “efêmero do tempo”, tal percepção expressa, também, a relação que se funda na descartabilidade da maioria dos objetos consumidos, objetos substituíveis no ato e na essência; nas relações societárias marcadas pela perda da noção de futuro; na construção de redes simbólicos-discursivas que partem das mídias e das tecnologias amigáveis.
“Entre-Rios nasceu e se criou pela influência de artistas do trabalho.” Esta afirmativa encontra-se no periódico Entre-Rios Jornal de fevereiro de 1939, sendo seu autor Pedro Moraes da Silva; um discurso que representa a influência dos trabalhadores da Estrada Rodoviária União Indústria e logo depois e principalmente, dos funcionários da Estrada de Ferro D. Pedro II (estação inaugurada em 13 de outubro de 1867), na formação do núcleo populacional da Vila de Entre Rios e que concebe a ação social humana como modelo civilizatório.
Ao todo foram 29 casas que foram dadas de aluguel para as diversas pessoas que ai foram residir, sendo chefe da respectiva estação o Sr. João Gavinho Viana. Foi desta maneira que Entre-Rios nasceu e começou a crescer. A União Indústria foi inaugurada em 18 de março de 1858 com a presença de S. M. Imperial. Na suntuosa Estação de Entre-Rios, [ou Estação das Diligências] a comitiva imperial teve carinhosa recepção, estando presente todas as autoridades civis, militares e eclesiásticas do município [Paraíba do Sul]. – (SILVA, Pedro).
A Vila de Entre-Rios tornou-se um importante entroncamento rodo-ferroviário o que possibilitou um crescimento urbano-populacional de tal monta, que já na década de 20 do século passado, surge um movimento político visando a sua emancipação do município sede de Paraíba do Sul/RJ.
As transformações sociais, políticas e econômicas ocorridas no período histórico de formação dos núcleos urbanos, refletem a maneira de se viver nos e construir os espaços físicos, nas formas arquitetônicas utilizadas e nos objetivos traçados para suas construções; havendo perdas de referenciais e representações do tempo inicial, quando das reformas ou demolições destes espaços. O estudo do patrimônio cultural material dos lugares urbanos e das manifestações sociais nestes, permitem ao historiador entender a própria identidade social e cultural das cidades.
Segundo Moraes (2000)
Com a emergência da pós-modernidade, acredita-se ou é crescente a sensação de que nem o passado nem o futuro importam. Portanto, muda o próprio significado da história (como disciplina), da vida e da morte [do ser, dos objetos, dos espaços de relação], que deixam de constituir a experiência mais forte e de construção de sentidos e padrões relacionais para os homens e sociedades. Ao homem contemporâneo e veloz, condenado ou desprovido de vida própria e possibilidade de futuro e utopia, basta consumir e integrar-se ao mercado e à velocidade que reconstrói, modificar relações e poder subordiná-las às instancias e vivências virtuais.
Fotografia 6: Antigo prédio da fábrica de Usina de Açúcar e Café Pérola, a Praça São Sebastião. Registro do acervo da Rádio Três Rios. Sem fotógrafo conhecido.
Fotografia 7: No lugar da usina foi construído o Shopping Olga Solla e seus dois prédios bem enfrente ao antigo chafariz da Praça São Sebastião. A imagem fotográfica é o registro capaz de assegurar a memória dos espaços urbanos transformados no decorrer do tempo histórico. Disponível no site http://rcmaisimoveis.net/imoveis/800/vende_excelente_cobertura_no_ed_olga_sola_no_centro_de_trEs_rios. Sem autor definido.
Desde os primeiros estudos avalio que a Fotografia tem o “poder” de dar visibilidade e conhecimento para as futuras gerações quanto ao patrimônio material e a memória social, cultural e arquitetônica dos espaços urbanos de interação.
Como reavivar, preservar e divulgar para as gerações futuras os referenciais urbanos fundamentais para a compreensão e perpetuação do patrimônio cultural material arquitetônico e da própria memória individual e coletiva, se o processo de urbanização atual, essencialmente definido pela organização dos espaços sociais, privilegia a substituição do antigo pelo moderno, fazendo desaparecer o primeiro literalmente transformado em pó?
Considero que os registros visuais e dentre estes a fotografia, fragmento estático de um determinado objeto, paisagem ou sujeito(s) em seu tempo histórico, tem sua presença de importância neste contexto, pela possibilidade de interpretação e de as mesmas, permitirem a mudança do mundo em animação à imagem estática, conservadora das identidades culturais e sociais; mais do que meras ilustrações, como afirma Barthes são um “certificado de presença” (2008, pag 129) e ao mesmo tempo, de ausência (conforme fotografias 5 e 6); e na mesma dimensão como testemunho direto ou indireto de um tempo anterior, apresentando-se como “evidências no processo de reconstrução da cultura material do passado.” (BURKE. 2004, pag 99)
Tal reflexão insere-se essencialmente na perspectiva apresentada na afirmativa de Goff de que a história é a forma científica da memória, completando que “(…) os materiais da memória podem apresentar-se sob duas formas principais: os monumentos, herança do passado, e os documentos, escolha do historiador”. (GOFF, 1996)
Neste sentido fotografia é monumento/documento. “Fotografia é memória e com ela se confunde.” (KOSSOY. 2003, pag 132)
Não se pode mais identificar a memória como um método parcial e limitado de recordar fatos passados, servindo como simples auxiliar para as ciências humanas. A memória se baseia na construção de referenciais de distintos grupos sociais sobre as experiências vividas anteriormente e no presente, respaldados nas tradições e atrelado a mudanças culturais. (CHIOZZINI, Daniel. “Memória é matéria prima do trabalho do historiador.” [online])
É preciso observar que a “função” da memória é semelhante à do esquecimento, conforme evidenciou Hobsbawn, sendo ambos utilizados nos embates de memória quando grupos sociais, segundos seus interesses, estabelecem o que deve ser lembrado e o que deve ser esquecido, onde o tempo e os espaços sociais são construções simbólicas, que determinam uma memória coletiva de alguma forma privilegiada.
Em sua análise da memória coletiva, Maurice Halbwachs enfatiza a força dos diferentes pontos de referência que estruturam nossa memória e que a inserem na memória da coletividade a que pertencemos. (M. Halbwachs, La mémoire collective, Paris, PUF, 1968) Entre eles incluem-se evidentemente os monumentos, esses lugares da memória analisados por Pierre Nora, (P. Nora, Les lieux de mémoire, Paris, Gallimard, 1985) o patrimônio arquitetônico e seu estilo, que nos acompanham por toda a nossa vida, as paisagens, as datas e personagens históricos de cuja importância somos incessantemente relembrados, as tradições e costumes, certas regras de interação, o folclore e a música, e, por que não, as tradições culinárias. Na tradição metodológica durkheimiana, que consiste em tratar fatos sociais como coisas, torna-se possível tomar esses diferentes pontos de referência como indicadores empíricos da memória coletiva de um determinado grupo, uma memória estruturada com suas hierarquias e classificações, uma memória também que, ao definir o que é comum a um grupo e o que, o diferencia dos outros, fundamenta e reforça os sentimentos de pertencimento e as fronteiras socioculturais. (POLLAK, Michael. “Memória, Esquecimento, Silêncio. [online])
Estes pensamentos se inserem no conceito onde a fotografia se apresenta como fragmento da memória, privilegiando-a como um “lugar de memória” relacionada a todas as lembranças a ela associadas, sejam história de vidas, sejam monumentos arquitetônicos.
Já foi dito que as imagens são históricas, que dependem das variáveis técnicas e estéticas do contexto histórico que as produziram e das diferentes visões de mundo que concorrem no jogo das relações sociais. Nesse sentido, guardam as fotografias, na sua superfície sensível, a marca indefectível do passado que as produziu e consumiu. Um dia já foram memória presente, próxima àqueles que as possuíam, as guardavam e colecionavam como relíquias, lembranças ou testemunhos. No processo de constante vir a ser recuperam o seu caráter de presença, em um novo lugar, em um outro contexto e com uma função diferente. Da mesma forma que seus antigos donos, o historiador entra em contato com este presente/passado e o investe de sentido, um sentido diverso daquele dado pelos contemporâneos da imagem, mas próprio à problemática ser estudada. Aí reside a competência daquele que analisa imagens do passado: no problema proposto e na construção do objeto de estudo. A imagem não fala por si só é necessário que as perguntas sejam feitas. (MAUAD, Ana Maria. “Através da Imagem: Fotografia e História Interfaces.” [online])
Cada espaço físico urbano surge com funções originalmente particulares e distintas. Os registros fotográficos revelam-se de suma importância por permitirem a observação cuidadosa dos processos de rupturas, continuidades e sobreposições arrastados no âmbito das alterações urbanas, sendo possível esta compreensão pelo papel de perpetuação dos fatos e tempos históricos, que principalmente o material fotográfico disponível de diversos acervos, concede-nos; mas consciente de que apesar do amplo potencial de informação é preciso proceder a contextualização da imagem fotográfica, pois são registros deslocados do seu tempo de produção e consumo. Entendendo que contextualizar não significa interpretar ou proceder à leitura da representação imagética, mas o modo de assimilação da imagem como artefato.
Fotografia 8: Imagem aérea do centro da cidade de Três Rios, no último quarto da década de 60 do século passado, destacando-se mais ao centro e abaixo a Praça São Sebastião, espaço urbano que percorreu todo o tempo histórico deste município com transformações várias, principalmente em seu entorno. Mais ao centro o prédio da Usina de Açúcar e Café Pérola, destaque na fotografia 6. A Praça São Sebastião será tema do nosso próximo artigo, ainda tratando sobre o patrimônio urbano, memória e fotografia.
As fotografias que sobreviveram nos interessam de pronto, mas também devem ser localizadas outras fontes que possam transmitir informações acerca dos assuntos que foram objeto de registro em dado momento histórico, dos fotógrafos que atuaram nos diferentes espaços e períodos e das tecnologias particulares empregadas nas várias épocas. (KOSSOY. 2003 pag 64)
A maior parte dos registros fotográficos do passado não possuem as informações técnicas facilitadores da leitura e interpretação, sendo necessário utilizar também o método de comparação entre as representações fotográficas, e outras fontes historiográficas, que em muitos casos, permite a aproximação do tempo histórico de sua reprodução. Aprecio poder realizar uma incursão pela história e pela memória do conjunto arquitetônico urbanístico da Vila de Entre-Rios/RJ, atualmente, cidade de Três Rios/RJ, assim, no nosso próximo encontro vamos conhecer um pouco da Praça São Sebastião.
Referências:
BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Rio de Janeiro. Editora Nova Fronteira, 2008.
BURKE, Peter. Testemunha Ocular: História e Imagem. 2. ed. São Paulo/SP: EDUSC. 2004.
MORAES, Nilson Alves de. Saúde, Imprensa e Memória in Percursos da Memória: Construções do Imaginário Nacional. UERJ SIRIUS/PROTAT. Rio de Janeiro/RJ. 2000.
SILVA, Pedro Moraes da. O Município de Entre Rios. Artigo publicado numa edição especial do “Entre-Rios Jornal”, ano V de 17 de janeiro de 1939, nº 209, p. 6. Arquivo da Casa de Cultura de Três Rios.
2 comentários em “Patrimônio Urbano, Memória e Fotografia”
Muito gratificante poder ter acesso a tantas informações de um município que vem se modificando muito rápido.O cuidado ao relatar sobre as fotos , ótimo texto.
Muito gratificante poder ter acesso a tantas informações de um município que vem se modificando muito rápido.O cuidado ao relatar sobre as fotos , ótimo texto.
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Obrigado Dircilene, aproveite, vc que é pedagoga, os outros textos desta revista maravilhosa…
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