A imagem e o ato de narrar: o marinheiro e o camponês (parte 2)

Fonte que conserva na imagem bidimensional os referentes culturais e sociais da época do ato-fotográfico, a fotografia relaciona-se com um elemento primordial a história: o tempo; criando então, um diálogo entre este instante inicial (pela perpetuação das presenças e ausências) e a lembrança e o esquecimento, expondo a inseparável trama existente entre a memória, a narrativa imagética e a história.

Pelo lado deste “triângulo” que converge até a memória, a fotografia assume a sua condição de testemunho capaz de ativar e compartilhar lembranças, fundamental para a transição entre a memória e a história. Lugar de lembrança ou esquecimento apresenta-se também, como testemunho das batalhas de memória, permitindo perceber as manipulações políticas, culturais, sociais ou religiosas que definiram ao longo da história, o que pode ser lembrado e o que deve ser esquecido nos processos de rememoração, interferindo diretamente na formação da identidade de indivíduos e grupos e consequentemente, na constituição historiográfica. Inegável a capacidade da fotografia de provocar recordações, apresentando-se como um dos principais mecanismos da linguagem desencadeadora da memória.

Fotografia 3: Augusto Malta. Grupo de homens fantasiados para o carnaval. As Marrequinhas, 1913, Rio de Janeiro/RJ. Acervo IMS. Disponível em https://brasilianafotografica.bn.gov.br/?p=34913. Esta imagem ativa e compartilha lembranças permitindo a transição entre a memória e a história; na cidade de Três Rios/RJ (temos o Bloco das Piranhas) e em tantas outras, durante os festejos do carnaval é comum os homens se vestirem com roupas e objetos femininos.

É também ponto de referência como indicadores empíricos da memória coletiva, constituindo coleções e acervos, que arquivados, organizados e divulgados, são patrimônios culturais que celebram as atividades da memória, cumprindo papel social fundamental numa sociedade que prima pela ideia de que o progresso e a modernidade podem renunciar ao passado.

As imagens fotográficas da coleção Brasiliana Fotográfica, um espaço digital que agrega acervos fotográficos do Brasil e do exterior, é um belo exemplo. Fundado em 17 de abril de 2015 pela Biblioteca Nacional e pelo Instituto Moreira Salles, disponibiliza um número considerável de fotografias do século XIX até as primeiras décadas do século XX, que se apresenta com objetivo:

“Brasiliana Fotográfica é um espaço para dar visibilidade, fomentar o debate e a reflexão sobre os acervos deste gênero documental, abordando-os enquanto fonte primária mas também enquanto patrimônio digital a ser preservado…” (1) O acervo é dividido em categorias, é possível consultar também pela cronologia de fotógrafos representados.

Na relação da história com a memória observa-se, como aponta Jacy Alves de Seixas (2004, p. 38), um momento crescente de revalorização da memória (falas, direito e dever de memória), convivendo com um movimento inverso que indica descaso ou fragilidade teórica por parte dos historiadores. A memória torna-se com isso uma prisioneira da história, uma verdadeira memória historicizada, restando a esta os lugares de memória, vivendo apenas sob o olhar de uma história reconstituída. Entendo que a aceitação e análise, na atualidade, pela historiografia, da subjetividade das experiências humanas no processo de relação social e formação das identidades, aproximam estes campos do conhecimento humano. Um simples olhar para a Fotografia 4 nos revela o racismo estrutural ainda presente na sociedade brasileira, quando demonstra o preconceito e a discriminação racial, na forma em que os grupos étnicos foram organizados na imagem, com os negros (músicos) sentados no chão em uma posição que “valida” a sua condição inferior aos indivíduos da etnia branca, privilegiando um grupo em detrimento do outro, numa clara alusão também ao poder econômico.

Fotografia 4: Baile de Carnaval, 1921, Santa Teresa, Rio de Janeiro/RJ. Acervo FBN. Anotação manuscrito no verso da foto “63”: “baile de carnaval em casa de Raul no Largo dos Neves em Sta Tereza. Da esquerda: sentados (3) primeira fila: Di Cavalcanti, Amaro e Claudio Manuel da Costa – sentados (2ª fila) Luis Peixoto, Mario, Kalixto, Raul, o ator Brandão o popularíssimo, e Helios Seelinger. Em pé atraz: [sic] miranda, 3 deusas, Marques Pinheiro e outra deusa 1923″. – “mulher do Raul Pederneiras (Wanda)” Disponível https://brasilianafotografica.bn.gov.br/?p=34913.

A história como a memória relaciona-se com a descontinuidade do tempo, apresentando-se ambas, como a base do “triângulo”, a sustentação da pesquisa.  Benjamin apontou em suas teses sobre a história, os limites para a enumeração de fatos e eventos ao longo de um tempo homogêneo e linear, homogeneidade que afasta a historiografia da memória.

Na atualidade, os historiadores ligados aos campos da História Cultural, Social, da História do Tempo Presente e da História Oral, distanciam-se tanto do conceito de uma história como apontamento fidedigno do passado, como do abatimento da memória a apenas um elemento de reconstrução seletiva do passado. Ao valorizar a subjetividade dos sentimentos e vivências dos indivíduos nos seus processos de interação social, constroem-se um espaço no interior da narrativa histórica, que dá visibilidade àqueles que não aparecem no registro documental, elaborando as narrativas dos grupos esquecidos por outros campos da historiografia.

Trazer para a história uma dimensão da existência humana fundada na subjetividade estabelece uma conexão possível desta com a memória, porque esta não obedece apenas à razão, mas a tudo o que participa do conjunto constituído das identidades. Encontrar e entender valores, culturas, modos de vida, representações das diversas sociedades e de seus indivíduos formadores, em seu tempo e espaços históricos, aproxima a memória com a história pesquisada, estudada, narrada. Assim entendo que fotografia, memória, narrativa e história podem dialogar, apesar de suas diferenças e especificidades. Tempo, espaços urbanos e a representação das relações e identidades sociais: são estas as três linhas principais que unem os pontos do triângulo teórico formado, que se distribuem e se inter-relacionam, permitindo o construir de uma narrativa histórica. Destes, acredito que o tempo é o objeto presente com a capacidade ímpar de unir os elementos da pesquisa, tempo fragmentado, descontínuo, instituído de substrato móvel, fluído e sensível, o tempo qualificado da lembrança. Em consonância com os estudos teóricos de Paul Ricceur, entendo que memória, lembranças e esquecimentos, são níveis intermediários entre o tempo e a narrativa histórica.

Fotografia 5: Fotografia aérea do centro da cidade de Três Rios/RJ, denominada na sua formação inicial de Vila de Entre-Rios, tomada no início de 1970. Em primeiro plano, a Praça São Sebastião e no  centro, o antigo coreto. Registro realizado pelo fotógrafo Abdisio (2), que afirmou ter feito a imagem nos últimos dias do primeiro governo do prefeito Alberto Lavinas; pertencente ao acervo Rádio Três Rios. Tempo, espaços urbanos transformados pela ação humana nos permitem em conjunto com outras fontes históricas, perceber nesta imagem aérea, as representações das relações e identidades sociais.

A Memória e a História são “um trabalho sobre o tempo, mas sobre o tempo vivido, conotado pela cultura e pelo indivíduo.” (BOSI, 2004, p. 53) A problemática comum à ambas é a representação/reconstrução do passado e a relação com o tempo e as fontes para a prática historiográfica. A fotografia insere-se neste contexto por perpetuar um momento de um tempo existido, experimentado com objetivos, propostas, desejos, ideologias; testemunho das memórias das ações e dos empreendimentos dos homens no seu momento histórico.

A fotografia é antes de tudo imagem-presença de uma coisa ausente, referenciada na memória preservada, que vence o tempo e o espaço da sua formação no ato fotográfico, até a análise dos pesquisadores das ciências humanas. Tenho considerado para a construção dos artigos nesta revista publicados, o entendimento de que imaginar é evocar ou rememorar lembranças através de imagens – porque toda memória reivindica imagens -, distanciando-me da relação comum da imaginação com o fantástico, com a ficção.

Mesmo uma lembrança evocada por um odor familiar, um sabor, uma sensação ou por uma melodia, surge na memória através das imagens de objetos, momentos e pessoas que afetaram a consciência em algum momento de sua experiência histórica. “Parece, mesmo, que a volta da lembrança pode fazer-se somente no modo de tornar-se-imagem [imagem-lembrança].” (RICCEUR, 2010, p. 26) Imagens-representação, que permitem a apreensão e o conhecer das ações e práticas do sujeito histórico em seu espaço de relação social, “sensíveis ao mesmo tempo à pluralidade das clivagens que atravessam uma sociedade e à diversidade dos empregos materiais ou de códigos compartilhados”. (CHARTIER, 1991, p. 177)

A percepção através de uma experiência viva e direta com a imagem fotográfica permite que aqueles que não conviveram com o espaço de relação registrada na fotografia, o construir em sua memória uma imagem-lembrança, compartilhada e ressignificada, pelas informações históricas que a análise e estudos possibilitam. E estas lembranças descortinadas, rememoradas, podem e devem acompanhar os registros fotográficos em qualquer meio de preservação e divulgação (museus áudios-visuais, livros, sites na internet, circuitos culturais, entre outros).

A valorização da fotografia e consequentemente a sua preservação enquanto patrimônio cultural e social de uma comunidade consente não somente o entendimento de que “nada temos de melhor que a memória para garantir que algo ocorreu antes de formamos sua lembrança” (RICCEUR, 2010, p. 26); bem como, o tornar presente uma grande parcela do que foi esquecido, enquanto rastros apagados ou ruínas abandonadas, retornando ao seu lugar na história, pelo olhar daqueles que superaram as condições impostas por uma historiografia voltada apenas para os vencedores dos embates de memória.

Referências:

(1) https://brasilianafotografica.bn.gov.br/?page_id=96

(2) Abdisio Bernardo da Silva, natural de Arcoverde, Pernambuco, é reconhecido “por duas gerações de trirrienses, o fotógrafo Abdisio Bernardo da Silva, se tornou uma unanimidade de simpatia junto ao povo da cidade. Na verdade, ele já fotografou crianças, hoje homens e mulheres, e continua sendo admirado pelas famílias. Falar sobre o pernambucano Abdisio é tarefa para quem o acompanha desde que ele surgiu em Três Rios, no ano de 1965. A primeira iniciativa foi abrir um estúdio fotográfico na Galeria da Automeca, que fica logo no início da Rua Nelson Viana. Muito experimentado, já que havia sido fotógrafo de alguns jornais do Rio e depois da Companhia Hidroelétrica do São Francisco, (CHESF), começaria ali seu trabalho com aquelas fotos de casamentos, batizados, etc. Naquela época, o prefeito da cidade era o saudoso Alberto Lavinas, que logo o convidou para realizar trabalhos para a PMTR. Seus serviços na prefeitura acabaram fazendo com que a então esposa, Dona Dilma passasse a auxiliá-lo no estúdio. (…) Logo seria chamado para participar das mais diversas atividades sociais, inclusive se tornando filiado de partido político como o PDT, para o qual foi levado pelo próprio Leonel Brizola. (…) Abdisio afirmou: “Através da minha fotografia eu consigo expressar momentos únicos, especiais e também do lado pessoal. Vejo o mundo por um ângulo diferente, mais colorido em alguns momentos, e noutros nem tanto. Através das minhas lentes, consigo captar a verdade, a tristeza, a alegria, retratando situações inusitadas, e às vezes até divertidas. Tenho imensa preocupação com problemas sociais e a minha arte está sempre à disposição. A fotografia tem uma expressão íntima sobre o que vejo. Num clique eternizo um flagra, uma situação, ou um tema que poderá virar discussão pelo mundo todo. O que mais me da prazer é aplicar os meus conhecimentos, para retratar momentos harmoniosos e torná-los símbolos de amor e paz.” – “Três Rios é o amor da minha vida.” Texto de José Barros de 27/06/2011. Disponível no site: http://folhapopular.net.br/noticias/860. Acesso em 23 de mar. de 2012.

BOSI, Ecléa. O Tempo Vivo da Memória. Ensaios de Psicologia Social. Ateliê Editorial. São Paulo/SP, 2ª Edição, 2004.

CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Revista Estudos Avançados. v. 5 n.11 São Paulo/SP, jan./abr. 1991.

RICCEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas/SP: Editora UNICAMP, 2ª reimpressão, 2010.

SEIXAS, Jacy Alves de. Percursos de Memórias em terras de História: problemáticas atuais. In Memória e (Res)sentimento. Indagações sobre uma questão sensível. Organização de Bresciani e Naxara, Stella e Marcia. Campinas/SP: Editora Unicamp, 2004.

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