Layza de Almeida Rocha
Resumo
Este artigo tem por finalidade tratar sobre a inserção tardia da memória de Mercedes Baptistas, que foi a primeira mulher negra a ingressar no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, na sua cidade natal, Campos dos Goytacazes, assim como destacar a importância da preservação da história local. Precursora de grandes trabalhos na área artística, Mercedes foi um grande símbolo de resistência e luta contra o racismo através da dança na capital do Estado. O fenômeno Campista já foi homenageada na esfera internacional, assim como na cidade do Rio de Janeiro, com a instalação de sua estátua na Praça Mauá, exposições e biografia.
Palavras-chaves: Mercedes Baptista, História Local, Memória Coletiva.
Abstract
This article aims to deal with the late insertion of the memory of Mercedes Baptistas, who was the first black woman to enter the Theatro Municipal do Rio de Janeiro, in her hometown, Campos dos Goytacazes, as well as highlighting the importance of preserving local history . Forerunner of great works in the artistic field, Mercedes was a great symbol of resistance and the fight against racism through dance in the state capital. The Campista phenomenon has already been honored internationally, as well as in the city of Rio de Janeiro, with the installation of his statue in Praça Mauá, exhibitions and biography.
Keyword: Mercedes Baptista, Local History, Collective Memory.
INTRODUÇÃO

Com uma estátua instalada no Largo da Prainha-RJ, um dos maiores pontos boêmios do Rio de Janeiro, descalça e com as mãos na cintura, na cabeça um turbante, lá está ela: Mercedes Batista! De origem pobre, originária da planície goitacá, Mercedes foi uma grande referência para dança afro-brasileira.
O fenômeno campista, até então pouco lembrada na sua cidade natal, esbanjava do seu erudito talento nos teatros do Rio de Janeiro. Dirigiu coreografias de escola de samba, participou de concurso sobre a beleza negra, abriu seu próprio colégio de dança na cidade do Rio de Janeiro, atingiu águas internacionais com apresentações de dança afro-brasileira, e o resultado não poderia ser diferente, a preservação do seu legado.
A partir de levantamentos feitos pelo biógrafo de Mercedes, Paulo Melgaço, que consta na obra ‘’ Mercedes Baptista: A criação da Identidade Negra na Dança‘’, das recentes matérias sobre as movimentações feitas entre as secretarias campista em reviver este fenômeno com a tutora dos pertences de Mercedes, foi possível encontrar conteúdos importantes que ajudaram a conduzir esta pesquisa.
Lá vem o fenômeno campista: Mercedes Baptista!
Mercedes Baptista, campista, nascida no ano de 1921, filha de empregada doméstica, foi precursora da dança afro no Brasil. Sua mãe, Maria Ignacia da Silva, se mudou para Rio de Janeiro, quando Mercedes ainda era jovem, no propósito de oferecer maiores oportunidades para sua filha Mercedes que tinha o sonho de ser famosa[i]. Sobre o seu pai pouco se sabe, mas diante das imprecisões que cercam a questão, o que se tem registrado é que se chamava João Baptista Ribeiro e era separado da mãe de Mercedes.
Foi somente em 1944 que Mercedes Baptista teve seu primeiro contato com a dança. Enquanto frequentava o curso de dança que era oferecido pelo Serviço Nacional de Teatro do Rio de Janeiro, que foi ministrado por Eros Volúsia, recebeu as primeiras instruções sobre a dança do balé clássico e danças folclóricas. Foi a primeira bailarina negra a integrar o corpo de dançarinos do Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
Bem, tratar de Mercedes Baptista é ir muito além de uma análise sobre sua história, mas evidenciar a importância da sua história para cidade de Campos dos Goytacazes. Foi através do seu talento, a dança, que Mercedes conseguiu dar visibilidade e reconhecimento das influências negras na arte, assim como dar voz à resistência negra do período.
Não só Mercedes, mas vários outros campistas negros fizeram grandes protagonismos na história do nosso país, entretanto, pouco se fala e pouco se explora sobre estes atores. Ao tratarmos de Mercedes Baptista é possível notar que matérias, exposição e trabalhos recentes buscam manter viva na memória da cidade o orgulho do passado extraordinário traçado pela bailarina.
O historiador Le Goff (1990), durante a escrita do seu livro História e Memória, aponta que ‘’a memória coletiva é não somente uma conquista, é também um objeto de poder’’. Isto é, a consolidação da memória coletiva, muita das vezes, é constituída a partir da construção de monumentos como forma de preservação cultuada. Atualmente, se buscarmos na cidade de Campos alguma referência como estátuas ou monumentos que fazem alusão ao protagonismo de Mercedes, não encontraremos nada em vias públicas, apenas alguns objetos pertencentes à bailarina que foram doados para o Museu da cidade recentemente.
Para Le Goff (1990) o monumento pode ser considerado tudo aquilo que de certa forma consegue evocar o passado, perpetuar uma recordação. Logo, quando observamos a inserção tardia de qualquer artefato que fizesse alusão à Mercedes Baptista, notamos que por muito tempo a história local desconsiderou seus atores, principalmente, quando esses eram pessoas negras. O resgate da valorização da cultura afro-brasileira e da história local acaba se tornando não só memória para aquela comunidade, mas a ideia de pertencimento.
Diferentemente da cidade de Campos, na cidade do Rio de Janeiro, no Largo de São Francisco da Prainha, com as mãos nas cinturas e descalça, com turbante na cabeça e fazendo referência a execução de um passo de dança, encontra-se no centro da Praça de Mauá, a homenagem feita à bailarina Mercedes Baptista. A preservação da memória de Mercedes na agitada praça, que conta com diversos bares ao seu redor e uma vida noturna badalada, novamente conduz a ideia trabalhada por Le Goff, que diz: ‘’devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens’’.
Não podemos, de forma alguma, afirmar que a cidade de Campos, por meio de suas secretarias culturais, não busca promover a história local para sua população, pelo contrário, no mês de novembro de 2022, por exemplo, a Câmara Municipal de Campos fez a exposição ‘’Mercedes Baptista: A criação da identidade negra na dança’’, onde contou com fotos e pertences pessoais da bailarina negra. Houve também, em agosto de 2022, no teatro Trianon, tributo feito em homenagem à Mercedes Baptista, que, além de contar a história da brilhante campista, também incluiu apresentações de danças e músicas. O Centro Especializado de Atendimento à Mulher (CEAM) de Campos dos Goytacazes foi batizado com o nome de Mercedes Baptista.
Atualmente contamos com a produção feita pelo biógrafo de Mercedes, Paulo Melgaço, que trouxe grandes contribuições para este trabalho. Lançado no ano de 2007, o autor buscou com a obra ‘’Mercedes Baptista: A criação da identidade negra na dança’’ tratar da narrativa sobre a construção da identidade negra na dança brasileira a partir da análise da atuação de Mercedes Baptista.
Mercedes foi uma grande ativista negra na capital do estado. Usava como arma de combate a arte de dançar. Segundo Melgaço (2007), foi a partir da Segundo Guerra Mundial que o movimento negro nasceu na cidade do Rio de Janeiro. O objetivo desse movimento, que era subdividido em grupos, era encontrar um caminho para valorização e reconhecimento da identidade cultural negra no país.
Nesse período, um dos percussores pela luta negra no país, Abadias Nascimento, fundou em 1944 o Teatro Experimental Negro – T.E.N e o Comitê Afro-brasileiro de 1945. Tinha como objetivo principal a valorização do povo Afro-brasileiro, lutando através da arte, cultura e educação contra o complexo de inferioridade que era atribuído ao negro (2007, pág. 25).
Mercedes, por sua vez, participou de um dos concursos promovidos por Abadias. Esses concursos buscavam valorizar a beleza da mulher negra no país. No ano de 1948, por exemplo, Mercedes não só participou como ganhou o concurso promovido pelo T. E. N. Esse ocorrido também marcou o início da amizade entre Mercedes e Abadias.

Abadias Nascimento e Mecedes Baptista, em 1970 – Fonte: Melgaço
Mais tarde, por volta do ano de 1953, Mercedes fundou o grupo de Ballet Folclórico Mercedes Baptista, que era formado exclusivamente por pessoas negras, já que era dedicado à cultura afro-brasileira. Muitos artistas que eram excluídos dos espaços tradicionais da dança eram acolhidos pelo grupo de Ballet[ii].
Elza Soares, por exemplo, uma das grandes vozes do samba brasileiro, contou na sua bibliografia a relação que teve com Mercedes Baptista. Elza narra a oportunidade que teve de cantar junto com o Ballet Folclórico Mercedes Baptista em águas internacionais. Entretanto, quem pensa que o fenômeno campista não passou por maus momentos está enganado.
Devido o grande sucesso das apresentações feitas pelo Ballet Folclórico Mercedes Baptista nos teatros da cidade do Rio de Janeiro, muitos empresários locais visam projetar o corpo de Ballet exteriormente, de forma que representasse a cultura negra brasileira fora do país. Acontece que, segundo narra Elza Soares (Louzeira, 1997 apud. Júnior, 2007), foi durante uma viagem à Argentina que o empresário de Mercedes roubou todo o dinheiro do grupo, deixando sem recursos necessários para arcar com as demandas dos artistas, eis o teor da bibliografia:
“Um tal Ramon Shelber deu o golpe. Sumiu com a grana…. Não conhecendo ninguém importante no mundo artístico argentino, Mercedes passou por maus momentos “. (p. 65, 2017 apud. p. 49, 2007).
A campista desenvolveu trabalhos importantíssimos durante sua brilhante carreira artística. Em 1963, por exemplo, coreografou a comissão de frente da escola de samba campeã, Salgueiro, que trouxe o enredo ‘’Xica da Silva’’. Ministrou cursos nos Estados Unidos, além de receber uma grande homenagem feita pelo Bloco de Carnaval Alegria de Copacabana, em 1976 (Berriel, 2022).
O retorno do acervo deixado por Mercedes à sua cidade natal no ano de 2022 vai muito além, talvez, de um suposto desejo de retornar às suas origens, mas faz reviver na lembrança da planície goitacá o grande fenômeno campista Mercedes Baptista. Antes da inauguração do CEAM, por exemplo, não existia nada na cidade que fizesse referência à Mercedes.
Segundo Nogueira (2001), a valorização da história local é o ponto de partida para o processo de formação do cidadão. Isto é, analisar as questões locais é muito importante para compreender a relação existente entre sua região com demais lugares do mundo. Mercedes, por exemplo, mulher, negra, humilde e campista, tornou-se uma importantíssima ativista da causa afro-brasileira a partir da sua arte, a dança. Quantas meninas negras campistas bailarinas deixaram de ter essa referência em sua vida por conta do seu esquecimento na cidade natal?
Não só o caso isolado de Mercedes, mas vários outros atores campistas são/foram esquecidos durante anos pela história local da cidade. Hoje é possível notarmos uma preocupação maior, através de iniciativas como o sistema de bolsa PIBID, por exemplo, que busca recuperar a história de determinada localidade. O projeto ‘’guarda-chuva’’, do qual faço parte no PIBID, teve como proposta da coordenadora tratar da construção da memória da cidade campista.
Os pertences pessoais de Mercedes Baptista doados ao Museu de Campos hoje contribuem como importante patrimônio histórico local como instrumento de preservação da sua memória. Para uma mulher negra e pobre, que já foi homenageada fora do país, na cidade do Rio de Janeiro com a sua estátua na Praça Mauá, por qual motivo a sua cidade natal iria ausentar-se da preservação da sua memória?
Durante a pesquisa sobre a temática e como os pertences pessoais chegaram à cidade campista, foi notória a participação ativa nas negociações a Secretaria de Políticas para Mulheres em Campos, a Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, Museu Histórico de Campos, e a ex-aluna de Mercedes, Dona Ruth, que era a tutora de alguns pertences pessoais (Berriel, 2022). A história de luta e superação traçada por Mercedes é repleta de orgulho e inspiração para nós campistas.
A História Local, por sua vez, é uma das vias que faz a ligação dos processos de (re)construção identitária, logo, reviver Mercedes Baptista no norte fluminense é conectá-la novamente com sua comunidade natal. Dentro da Universidade Federal Fluminense (UFF), por exemplo, existe um coletivo formado por alunos dos diversos cursos oferecidos pela instituição que foi batizado de Coletivo Mercedes Baptista, onde busca-se debater sobre as desigualdades e discussões políticas da comunidade universitária.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim, o presente trabalho procurou estabelecer uma análise sobre o Ensino de História Local e identidade histórica a partir da atuação da Campista Mercedes Baptista. Reviver a memória da precursora da dança afro-brasileira na planície campistas é criar com a comunidade a identidade de um grupo, da relação existe daquela região com o restante do mundo, quer seja pelo histórico de um local, os eventos que ocorreram ali ou as pessoas que ali viveram.
Ainda que hoje tenhamos movimentos que buscam reverter o atual quadro, a nossa história local, por exemplo, durante muito tempo silenciou-se dos personagens negros campistas que protagonizaram importantes feitos no país, assim como absteve-se na promoção de medidas que preservassem a memória desses atores.
Manter viva a memória da primeira bailarina negra a ingressar no Teatro do Rio de Janeiro, além de trazer o sentido identitário, também mostrar que os espaços de protagonismos não só podem, mas devem ser ocupados por qualquer pessoa, sem qualquer distinção. Na dança clássica, por exemplo, que majoritariamente por muitos anos foi predominante à presença de brancos, há milhares de crianças e mulheres negras que por falta de referência e incentivo perdem o gosto pela arte.
Mercedes organizou a dança negra de forma que ganhasse dimensão não apenas em lugares inacessíveis por negros no país, mas que atingisse águas internacionais com apresentações de um estilo próprio. Munida de técnicas e de interpretação, a dança afro-brasileira ganha corpo como estilo cênico, como um espetáculo. A inter-relação de seus passos com os movimentos de danças de religiões de matriz africana nos fornece que a campista Mercedes também protagonizou uma luta antirracista.
REFERÊNCIAS
MERCEDES Baptista. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2023. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa106837/mercedes-baptista. Acesso em: 13 de outubro de 2023. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7
MELGAÇO, Paulo Jr. Mercedes Baptista, A criação da Identidade Negra na Dança. Rio de Janeiro, Fundação Cultural Palmares, 2007.de Disponível em: http://ambiente.educacao.ba.gov.br/conteudos-digitais/conteudo/baixar/id/167
NOGUEIRA, Natania Aparecida da Silva. O ensino da história local: um grande desafio para os educadores. IV Seminário Perspectivas do Ensino de História: Ouro Preto, 2001.
BERRIEL, Matheus. Acervo de Mercedes Baptista é trazido para Campos e ficará exposto no Museu Histórico, com peças também no CEAM. Folha, cultura e lazer, 2022.
[i]Mercedes Baptista: primeira bailarina negra a ingressar no corpo de baile do theatro municipal do rio de janeiro. Petite Danse, 2023.
[ii] MERCEDES Baptista. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2023.

Mercedes Baptista: fenômeno campista que lutou contra o racismo através da arte
