A questão epistemológica da história cultural estaria centrada no conceito de cultura como objeto de investigação, no estudo das representações sociais, das práticas culturais e do processo de apropriação. As representações construídas sobre o mundo não só se colocariam no lugar do mundo, como fariam com que os homens percebessem a realidade e a partir delas pautassem sua existência. Seriam elas as geradoras de condutas e práticas culturais e sociais…,(1) que se perpetuam na relação direta entre os vínculos sociais (em espaços de memória), a memória e a imagem fotográfica.
O historiador – no campo da História Cultural – que se propõe a uma construção histórica por meio da análise dos significados e representações contidas nas diversas fontes, deve cuidar para identificar as articulações entre o que sobrevive como memória voluntária e consciente, como ação dos homens, e os fatores inconscientes desta, quase sempre incógnitos, que a circunscrevem e a restringem; a memória involuntária.
Proust, segundo Odete Dourado, tenta na sua obra “Em busca do tempo perdido”, salvar a vida e as sensações do transcurso do tempo, apoiando-se na memória, dividindo-a em voluntária e involuntária: a primeira oferece aspectos falsos do passado, fragmentados e esparsos, por pertencer à inteligência, àconsciência e aos embates de memória; a segunda, por se fazer no inconsciente, pela atração que um momento exerce sobre o outro, permanece submersa no esquecimento até que um pequeno elo de similaridade entre o passado e o presente desencadeie movimentos na memória, que trazem para o presente todo um segmento de eventos contíguos. A memória involuntária “não nos faz reviver o passado enquanto tal, mas oferece-nos a realidade em toda a sua inteireza: o passado em toda a sua forma e solidez restaurado no presente.” (DOURADO, 2005)
Entendo assim que no fazer historiográfico é possível recorrer-se à memória, sendo esta descortinada para o futuro com o conhecimento histórico. A fotografia de qualquer tempo funciona como um dos elementos que retoma no presente, as relações vividas pelos seres que participaram de uma mesma época, experiências-depoimentos às vezes conflitantes entre indivíduos, mas possíveis de serem compartilhadas em qualquer tempo, trazendo ao instante do presente vivido, o que está sedimentado na memória inconsciente, que, para Marcel Proust, apresenta-se com a marca da autenticidade. É possível colher uma quantidade de informações sobre fatos e experiências passadas dos depoimentos de indivíduos, importando ao historiador fazer emergir destes testemunhos uma visão de mundo.
Nas imagens sequenciadas a partir das fotografias 1 até a 7, tem-se uma narrativa que demonstra as complexidades de um acontecimento popular religioso na sociedade da cidade de Três Rios/RJ, realizado em fevereiro de 1959: a procissão organizada pelo Srº José Pinto que se iniciou na Igreja Matriz de São Sebastião, percorrendo as ruas da cidade, chegando ao 3º Depósito da Estrada de Ferro Central do Brasil, onde foi sagrada uma capela em homenagem a Nossa Senhora Aparecida.
A capela fica a alguns metros da entrada do 3º Depósito, local onde até alguns anos funcionava a empresa T´Trans, possuindo uma espécie de concha, pintada internamente de azul e um altar.


Fotografias 1 e 2: Vista externa da passagem da imagem de Nosso Senhora Aparecida pela cidade de Três Rios/RJ, em fevereiro de 1959, do acervo Rádio Três Rios, com fotógrafo desconhecido.

Fotografia 3: Vista externa da Igreja Matriz de São Sebastião, com seu pórtico ao fundo, na saída da procissão em homenagem a Nossa Senhora Aparecida (vê-se em destaque a imagem desta), padroeira do Brasil para os católicos. Fotografia do acervo Rádio Três Rios, de fevereiro de 1959, sem autor conhecido.

Fotografia 4: Vista externa da concentração popular quando da sagração da capela em homenagem a Nossa Senhora Aparecida, no antigo 3º Depósito da E. de F. Central do Brasil, em Três Rios/RJ. Fotografia do acervo Rádio Três Rios, de fevereiro de 1959, sem autor conhecido.

Fotografia 5: Vista externa da chegada da procissão em homenagem a Nossa Senhora Aparecida, no antigo 3º Depósito da E. de F. Central do Brasil, em Três Rios/RJ. É possível vislumbrar a presença no primeiro plano de muitas crianças, a esquerda mais ao fundo um vagão de passageiros e em destaque a bandeira do Brasil. Fotografia do acervo Rádio Três Rios, de fevereiro de 1959, sem autor conhecido.

Fotografia 6: Vista externa da missa de inauguração da capela em homenagem a Nossa Senhora Aparecida, realizada no antigo 3º Depósito da E. de F. Central do Brasil, em Três Rios/RJ. Registro de um dos momentos da cerimônia religiosa, com o representante da Igreja católica ofertando a hóstia. Fotografia do acervo Rádio Três Rios, fevereiro de 1959, sem autor conhecido.

Fotografia 7: Vista externa da capela em homenagem a Nossa Senhora Aparecida, atualmente ainda se encontra no pátio da antiga empresa T´Trans, em Três Rios/RJ. Fotografia do acervo André Mattos, de 13 de janeiro de 2012.
As imagens retomam agora memórias desta representação de fé católica ainda presente em muitos municípios do país.
São fiéis representantes de todas as camadas da população, crianças, homens de terno e gravata, jovens e mulheres vestidas adequadamente para esta importante celebração, espaços de relação social e as manifestações e símbolos de fé: eis o que se vislumbra nas fotografias. O comportamento social que se impõe perante este ato religioso pouco mudou, permanecendo na memória social a força da representação de todos os símbolos ai envolvidos.
No ato fotográfico, o fotógrafo expressa suas experiências vividas como sujeito em seu tempo histórico, sua cultura, seus conhecimentos, seus interesses e, também, suas técnicas no lidar com a construção imagética. Mas como estas, todas as fotografias são testemunhos que avançam os limites da memória de seu autor; são depositárias das memórias involuntárias e coletivas de todos os indivíduos que permanecem perpetuados neste objeto bidimensional, privilegiando a articulação da História como conhecimento da vida social, cotidiana, dos sujeitos e da sociedade em que estão inseridos.
É muito provável, na profusão de imagens que se encontram na atualidade, terem-se dois ou mais olhares criadores do ato fotográfico, sobre um mesmo evento, pessoas, paisagens, objetos, espaços, que, como ação dos sujeitos históricos, demonstrem interesses e ângulos diferenciados, revelando parcelas diversas da realidade, colhendo-se pontos de percepção múltiplos, às vezes contrapostos, uma recomposição constante de dados e imagens.
O campo teórico e metodológico da História Cultural e seu trato com a diversidade das fontes historiográficas se alistam ao campo (ainda em construção) da Memória, principalmente com relação ao que Ecléa Bosi define como “substância social da memória” (BOSI, 2004, p. 16), por entender que não se pode mais identificar a memória como um método parcial e limitado de recordar fatos passados, servindo como simples auxiliar para as ciências humanas. A memória se baseia na construção de referenciais de distintos grupos sociais, sobre as experiências vividas anteriormente e no presente, respaldados nas tradições e atrelado a mudanças culturais. (CHIOZZINI, 2000)
Referências:
1 – VIEIRA, Alboni Marisa Dudeque Pianovski. A HISTÓRIA CULTURAL E AS FONTES DE PESQUISA. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, nº 61, p. 367-378, mar2015 – ISSN: 1676-2584.
BOSI, Ecléa. O Tempo Vivo da Memória. Ensaios de Psicologia Social. Ateliê Editorial. São Paulo/SP, 2ª Edição, 2004.
CHIOZZINI, Daniel: Memória é matéria prima do trabalho do historiador. Disponível no site: http://www.pactoaudiovisual.com.br/mestres_final/lygia/texto1.htm. Acesso out 2023.
DOURADO, Odete. Para sempre, memória. Disponível no site: http://www.portalseer.ufba.br/index.php/rua/article/viewArticle/3093. Acesso out 2023.
