Fotografia, História e Memória: pesquisa e narrativa imagética

Diante de uma imagem – por mais antiga que seja -, o presente jamais cessa de se reconfigurar (…). Diante de uma imagem – por mais recente, por mais contemporânea que seja -, o passado, ao mesmo tempo, jamais cessa de se reconfigurar, porque essa imagem só se torna pensável em uma construção da memória. 1

A memória, a narrativa e a história, são analisadas por alguns autores como representações de coletividades sociais, em determinados tempos e espaços históricos, instituídos pelas ações dos sujeitos inseridos nestes grupos. A fotografia é construída no ato-fotográfico por um ator, que teceu suas memórias a partir das diversas interações que alimentou com outros indivíduos, apresentando-se no presente não só como lugar de lembrança deste sujeito, mas também, numa perspectiva que se amplia para a condição de testemunho das representações sociais de diversos grupos, nos seus espaços de relação.

Para alinhavar narrativas, entendo a fotografia, então, como testemunho de memória e fonte da história. As pesquisas realizadas partiram de uma proposta de investigação que propôs uma discussão historiográfica, que considera o registro fotográfico na sua dupla dimensão, privilegiando-o como um lugar de lembranças relacionadas a todas as representações a elas associadas, sejam histórias de vidas, sejam as histórias da formação e transformação dos espaços urbanos de relação, além de fonte historiográfica de um período histórico específico.

Fotografia 1: Marinheiros e as histórias de gatos. “Dizem que esta prática (dos gatos nos navios) começou junto com a domesticação dos gatos no antigo Egito, e a partir desse momento se estendeu a todo mundo. Graças aos barcos, a espécie felina se estendeu a todos os cantos do planeta. No início os gatos eram levados a bordo dos barcos apenas com a missão de caçar ratos, já que estes roedores causavam grandes danos as cordas e a madeira, comiam as provisões ou a carga quando os barcos transportavam grãos… depois passaram a fazer companhia aos marinheiros.” Disponível em https://www.mdig.com.br/index.php?itemid=29344. Acesso out. 2023.

Assim, uma narrativa imagética não é apenas o rememorar das lembranças ou do que foi esquecido de um ou poucos indivíduos – o(s) sujeito(s) constituidor(es) das imagens fotográficas -, mas sim, as memórias de uma coletividade, resultado das diversas interações sociais ocorridas durante o recorte temporal escolhido, sem desconsiderar que as narrativas históricas refletem sempre um procedimento contínuo de escolha e reconstrução dos vestígios do passado, realizado no presente pelo historiador.

O ato de narrar, de contar experiências, para Walter Benjamin “está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente” (BENJAMIN, 2008, p. 197), ocorrendo com dificuldade no mundo atual. No pensamento do autor, assinalado em sua tese O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, de 1936, a narrativa faz referência à memória tornando-se fonte de histórias. São discursos carregados de ensinamentos, experiências, que se perdem na contemporaneidade, porque o homem está cada vez mais privado da faculdade da comunicação interpessoal. Pouco do que possuímos está a serviço da narrativa histórica.

Fotografia 2: A fotografia e a narrativa. Possíveis histórias e memórias presentes no registro fotográfico, anterioridade e posterioridade de uma narrativa imagética. Sem autor definido. Disponível em https://br.pinterest.com/pin/304344887329040946/. Acesso out. 2023.

A imagem fotográfica e a memória encontram uma interlocução com a narrativa, arte em desaparecimento, ou, para algumas leituras modernas, em transformação ou adaptação aos novos canais de comunicação, espelho da aceleração do tempo e das vivências próprias da contemporaneidade.

A compreensão da verdadeira extensão da narrativa em seu abarcamento histórico encontra-se, segundo aquele autor, no entrecruzamento de dois tipos arcaicos: o marinheiro (aquele que viaja e tem inúmeras experiências a serem compartilhadas), sendo analisado como o que vem de longe; e o camponês (aquele que conhece as histórias e tradições do lugar de relação de suas vivências), que traduzia em relatos a sabedoria prática – definida como a sugestão organizada na substância viva da existência -, que havia acumulado. Dois modos de vida que produziram seus respectivos grupos de narradores.

Estes dois personagens representam o tempo (camponês) e o espaço (marinheiro), elementos de intersecção que permitem diálogos entre fotografia e narrativa, e destas com a memória e a história.

Fotografia 3: Barcos salva-vidas: St Ives, Lifeboatmen 1906. A casa do barco salva-vidas fica perto da igreja de St Ia. A cidade recebeu seu primeiro barco salva-vidas em 1839. As tripulações, geralmente pescadores locais, eram corajosas, mas tinham grande respeito pelo mar. Muitas vezes, tendo eles próprios resolvidos resistir ao mau tempo em terra firme, eram obrigados a aventurar-se para resgatar outros menos prudentes. Sem autor definido. Disponível em https://br.pinterest.com/pin/46654546131691849/. Acesso em out. 2023.

A narrativa procede da tradição oral compartilhando memórias. É a expressão de um trabalho artesanal que se realiza sobre a matéria-prima da experiência, tendo como modelos originais o conto de fadas, as lendas. “O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes.” (BENJAMIN, 2008, p. 201) Por isso é aquele que sabe dar conselhos, e aconselhar é conceder uma sugestão sobre a extensão de uma história que está sendo narrada.

Depois vieram os artesãos, que aperfeiçoaram esta arte. Com eles, o poder de narrar movimentava o contador de histórias por inteiro. “Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente, com seus gestos, aprendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito.” (BENJAMIN, 2008, p. 220-221) E os gestos colaboram para a formação mental das imagens extraídas e compartilhadas do que está sendo narrado.

Assim como a análise de imagens fotográficas e a memória, diferentemente do romance, a narrativa não tende para o finalizar, justificando sempre novas histórias, imaginadas, reconstruídas e rememoradas em alguns momentos, daquilo que foi narrado no passado, no seu início, do que se tornou tradição. “Ela não se entrega. Ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de desenvolver.” (BENJAMIN, 2008, p. 204) E, como a fotografia e a memória, a narrativa vence o tempo preservando-se, como escreveu Benjamin, à maneira das sementes de trigo que por milhares de anos, inseridas nas câmaras das pirâmides no Egito, conservaram suas condições germinativas. (BENJAMIN, 2008, p. 204)

Fotografia 4: Velho fazendeiro com forcado cheio de feno. Fotógrafo: Jones, Leslie, 1886-1967. Data de criação: 1930 (aproximado) Disponível em https://br.pinterest.com/pin/830351250061971609/. Acesso out 2023.

A imagem, enquanto componente inerente à natureza humana (a memória é constituída de imagens, rememorar é formar imagens mentais), é um dos mecanismos desencadeadores da memória, apresentando-se a fotografia como o equivalente visual da lembrança, permitindo recordar o tempo passado, criando sentidos que ensejam narrativas históricas. Como uma narrativa, o registro fotográfico prossegue “contando” e retendo as lembranças, as experiências, conservando-se na memória do novo “ouvinte visual”, (como lembranças compartilhadas) quando da retransmissão da história no presente, sendo esta condição primordial para a sobrevivência da memória.

O que podemos apreender de Benjamin é a exemplaridade da narrativa, ou seja, ela se faz a partir de uma determinada perspectiva e um determinado olhar.

A narrativa ganha faces, plasticidades, feições e cenários capturados pela câmara fotográfica. Registrar imagens, guardá-las e contar o que foi fotografado é um processo dinâmico em que os significados contidos nas fotografias, capturados por quem apertou o botão, são recriados por quem as guarda e recontados por quem as mostra. 2

A ligação da narrativa com a memória, a fotografia e a história, é evidente. Os elementos da linguagem fotográfica por permitirem a formatação de um texto imagético possuem “capacidade narrativa”, por isso, é possível diante do registro vislumbrar uma anterioridade e posterioridade ao próprio ato gerador da fotografia e desta maneira, estabelecer, considerando outras fontes, uma historiografia da imagem.

Entendo que todas as técnicas e elementos envolvidos na produção da fotografia possuem sua parcela de importância para a construção (pelo fotógrafo) e para a leitura (por aquele que for interpretar a fotografia) do ato fotográfico; mas, para o historiador, a visão de mundo do fotógrafo, que se expressa mesmo que não aja no momento do registro uma preocupação com as técnicas para tal, deve ser considerada como elemento de memória.

Fotografia 5: O camponês, as maças, o violino (musica e arte) e a espingarda (violência); narrativas. O trabalho do fotógrafo A. Aubrey Bodine, sem data do ato-fotográfico. Disponível em: https://br.pinterest.com/pin/13933080089711995/. Acesso em out. 2023.

A correlação entre os elementos de objetividade e de subjetividade de uma fotografia são, traços que estabelecem leituras do texto imagético, mas da mesma forma que ao interpretarmos um trabalho de um autor literato, ainda que diante do conhecimento de todas as normas e regras gramaticais e literárias, será sempre o nosso olhar diante da obra do outro.

As fotografias se qualificam como lugares de lembrança dos testemunhos de outros, que permanecem “vivos” no referente fotográfico, incitando não só uma leitura rememorativa de fatos e ações dos sujeitos históricos em seu tempo, mas também, através do olhar no presente, delinear as lembranças em comum; sem perder a condição de fonte e objeto de estudos e pesquisas multidisciplinares, permitindo abarcar temáticas diversas, passando do campo nostálgico e utópico, nas ciências humanas e destes para o campo dos estudos de memórias.

Fazemos parte de uma coletividade social e o nosso testemunho reflete muito do que absorvemos das relações nesta sociedade. Os referenciais de memória que formamos também espelham esta realidade, independente do tempo e dos espaços de relação de existência do ser, permitindo que os sentimentos de saudade e nostalgia também estejam entre as dimensões possíveis de análise das fotografias.

Os campos de estudos teóricos que venho percorrendo, se definiram então na relação entre a fotografia, a história e a memória. Mas qual(is) a(s) dimensão(ões) e pensamento(s) poderia(am) servir para “unir” os ângulos do triângulo? Que discurso(s) serviria(am) para uma descontinuidade ou discordância entre as partes? E a fotografia, enquanto testemunho de memórias, lugar de lembranças, também fonte de estudos e análises pela História, de que maneira interfere nesta relação, contribuindo para a construção historiográfica?

Tenho compartilhado minhas reflexões e possíveis respostas com vocês queridos leitores da coluna Narciso e o Espelho… e sigo estudando, mas o que mais sempre a mim importou, é a paixão pela fotografia, principalmente aquelas de um tempo que não vivi.

Referências:

1 – DIDI-HUBERMAN, Georges apud NASCIMENTO, Roberta Andrade do. Charles Baudelaire e a arte da memória. Disponível no site: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2005000100004.

2 –  JUSTO, Joana Sanches. Narrar histórias, fotografar momentos: tecendo intersecções entre narrativa oral e álbuns de fotografias. Disponível no site: http://www.unioeste.br/prppg/mestrados/letras/revistas/travessias/ed_005/artecomunicacao.htm.

BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In Walter Benjamin – Obras Escolhidas Vol. I – Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo/SP: Editora Brasiliense. 11ª Reimpressão. 2008.

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