“Cortesã ou dona-de-casa”

11 Então o Senhor disse a Moisés:
12 “Diga o seguinte aos israelitas: Se a mulher de alguém se desviar e lhe for infiel,
13 e outro homem deitar-se com ela, e isso estiver oculto de seu marido, e a impureza dela não for descoberta, por não haver testemunha contra ela nem ter ela sido pega no ato;
14 se o marido dela tiver ciúmes e suspeitar de sua mulher, esteja ela pura ou impura,
15 ele a levará ao sacerdote, com uma oferta de um jarro de farinha de cevada em favor dela. Não derramará azeite nem porá incenso sobre a farinha, porque é uma oferta de cereal pelo ciúme, para que se revele a verdade sobre o pecado.
16 O sacerdote trará a mulher e a colocará perante o Senhor.
17 Então apanhará um pouco de água sagrada num jarro de barro e colocará na água um pouco do pó do chão do tabernáculo.
18 Depois de colocar a mulher perante o Senhor, o sacerdote soltará o cabelo dela e porá nas mãos dela a oferta memorial, a oferta pelo ciúme, enquanto ele mesmo terá em sua mão a água amarga que traz maldição.
19 Então o sacerdote fará a mulher jurar e lhe dirá: Se nenhum outro homem se deitou com você e se você não foi infiel nem se tornou impura enquanto casada, que esta água amarga que traz maldição não faça mal a você.
20 Mas, se você foi infiel enquanto casada e se contaminou por ter se deitado com um homem que não é seu marido –
21 então o sacerdote fará a mulher pronunciar este juramento com maldição – que o Senhor faça de você objeto de maldição e de desprezo no meio do povo fazendo que a sua barriga inche e que você jamais tenha filhos.
22 Que está água que traz maldição entre em seu corpo, inche a sua barriga e a impeça de ter filhos.
Então a mulher dirá: Amém. Assim seja.”

O livro de Números, de onde retirei a passagem acima, no seu capítulo 5, é o quarto livro do Antigo Testamento, sendo parte do conjunto de cinco escritos atribuídos a Moisés denominado o Pentateuco. Esta obra traz em suas linhas a história do povo de Israel durante a peregrinação de aproximadamente 40 anos no deserto, após longo período sob o julgo da sociedade egípcia. Aqueles “libertados” por Moisés constituíam um agrupamento social sem preceitos de relação e sem “leis” que pudessem confirmar a condição (moralista) do povo escolhido por Deus para servi-lo como Seu exército e que deveria dominar Canaã, a Terra prometida. Uma geração substituí a precedente neste período, sendo esta influenciada pelas “ordens” de Deus, expressas nas leis mosaicas.

Fotografia 1: Mulheres operárias em uma fábrica de algodão em Lancashire (é um condado não metropolitano cerimonial que fica no noroeste da Inglaterra), por volta de 1908. Registro sem autor informado. Disponível em https://br.pinterest.com/pin/855050679270755679/. Acesso mar 2023.

Segundo Foucault (2016, p. 19)

Toda reflexão moral, por mais teórica, por mais geral que seja, toda questão moral, por mais contemporânea que seja, não pode evitar, me parece, uma questão histórica que lhe está associada, que é sua sombra projetada e que seria: o que aconteceu no primeiro século de nossa era, no ponto de viragem do que chamamos de uma ética pagã e uma moral cristã? Na história de nossa moral, esse problema histórico está associado a toda questão geral ou a toda questão política referente à nossa moral.

Fotografia 2: Um grupo de trabalhadoras em uma fábrica de aviões em Birmingham (é uma cidade e distrito metropolitano do condado de Midlands Ocidental, na Inglaterra), em setembro de 1918. É possível identificar na imagem logo a frente, jovens e adolescentes, entre as mulheres fotografadas. Durante os períodos entre as Grandes Guerras Mundiais a presença da mulher se consolidou nos espaços de trabalho mesmo em indústrias onde os homens predominavam. Sem informação sobre o autor da fotografia. Disponível em https://br.pinterest.com/pin/1055599897604872/. Acesso em mar 2023.

Desta forma, o contexto histórico de determinadas práticas sociais permite o conceber domínios de saber (“sombras projetadas”) que se consolidam e no caso da mulher, perante as “funções” de esposa e dona-de-casa, percebemos ainda na atualidade “nuances que se fundem na harmonia de um discurso unânime. Infeliz vítima da natureza e da sociedade, a mulher, longe da fábrica hostil, deveria encontrar proteção na família para ali dedicar-se à sua família e à educação de seus filhos.” (PERROT. 2005, p. 177)

Ainda hoje é a mulher conduzida a ficar diante do “sacerdote” social, para ser julgada pelo “Senhor” por vontade de seu marido, com base apenas em suspeitas de um possível adultério ou por ciúmes, sentimento que é expressão da fragilidade e insegurança de quem se mantem na condição de sujeito superior. Não importa se “ela é pura ou impura”, será obrigada a beber a “água amarga que traz maldição”, que lhe imputa uma sentença de ser socialmente “objeto de maldição e de desprezo no meio do povo fazendo que a sua barriga inche e que (…) jamais tenha filhos”; assassinada, depredada, agredida… enquanto ao homem o direito de ver sua “honra” atendida. A ela cabe o juramento “enquanto casada [de que não] se contaminou por ter se deitado com um homem que não é seu marido.” E ao homem?

Fotografia 3: Em junho de 1917, décadas antes da consolidação das leis trabalhistas no Brasil (CLT), cerca de 400 operários – em sua maioria mulheres – da fábrica têxtil Cotonifício, paralisaram suas atividades. Esta Greve Geral começou em indústria têxtil de São Paulo e se espalhou por outras cidades do Brasil – Foto: Arquivo de Edgar Leuenroth / Unicamp. Sem autor revelado. Disponível no site https://www.brasildefators.com.br/2019/06/04/breve-historico-das-greves-gerais-no-brasil. Acesso mar 2023.

A consolidação desta condição avança os diversos e divergentes pensamentos políticos e econômicos pós revolução industrial. Perrot (2005, p. 171) reproduz o discurso de um delegado operário na Exposição Universal de Paris em 1867: “O destino da mulher é a família e a costura (…) Ao homem, a madeira e os metais, à mulher a família e os tecidos.” Madeira e metal = força, tecidos = fragilidade.

Perrot (2005, p. 173) relaciona o pensamento de Proudhon (1) como…

…intérprete de um mundo embarcado no crescimento econômico, enaltece a superioridade da castidade sobre a sensualidade, do trabalho sobre o prazer e vê na família o melhor meio de domesticar a energia libidinal para orientar todas as forças para a produção, perfeita ilustração da grande “repressão sexual” atribuída à sociedade industrial e da qual Wilhem Reich será o analista. No que se refere à mulher, Proudhon adere totalmente ao discurso médico sobre a inferioridade física do sexo frágil, retomando por sua conta toda a sintomatologia desta fraqueza: tamanho, peso, menstruação, caixa craniana… As funções da mulher inscrevem-se em sua conformação: uma vagina para receber, um ventre para carregar, seios para amamentar – como os pedaços de melões – marcam seu destino, feito pelo homem e pelo filho. Nenhum lugar além do lar.

Esta autora consolida em sua obra As mulheres ou o silêncio da história os discursos socialistas sobre a mulher e a família durante os anos finais do século XIX e início do século XX, definindo-os como “prolíferos e diversos”, identificando que os “sufrágios do povo” caminharam preferencialmente para os conservadores Cabet (1840) e Proudhon (1860)

Ora, Cabet e Proudhon gozam de ampla audiência popular. O primeiro chega a mobilizar em toda a França uma verdadeira rede que se pode considerar como o primeiro esboço de um “partido operário”. O segundo foi, por muito tempo, tanto o mestre do pensamento quanto o intérprete dos operários profissionais que formam a ossatura das associações operárias e a alma federal. (PERROT. 2005, p. 173)

As divergências no movimento operário a época quanto a condição social da mulher ao invés de corrigir pensamentos que definem a mulher pela sua condição frágil (corpo fraco, órgãos delicados, indisposições periódicas), agravavam as desigualdades nas relações. Os pensamentos a direita principalmente no que podemos definir como um fascismo religioso, se apoiam na moralidade “imposta” por Deus as suas servas, são bem claros quanto a submissão do gênero feminino.

Fotografia 4: Nas décadas de 40 e 50 do século passado a mulher americana já havia conquistado espaço no mercado de trabalho, mas a “função” de dona-de-casa com todos os seus deveres com a família lhe era imposta. Em maio de 1955, a revista Housekeeping Monthly publicou um artigo chamado “o guia da boa esposa”, onde estabelecia o comportamento da mulher para que pudesse atender devidamente as necessidades do seu marido e filhos. Imagem disponível no site https://www.vintag.es/2016/12/vintage-housewives-32-lovely-vintage.html. Acesso em mar 2023.

Definitivamente, a prioridade dada aos valores familiares fez com que a reivindicação de uma igualdade no trabalho, e de uma “liberação” das mulheres para um espaço público de manifestação, não tenha sido uma das preferências do movimento operário naquele momento, permitindo-nos encontrar reflexos na atualidade como por exemplo, a jornada dupla atribuída as mulheres que conquistaram o direito ao trabalho, mas que ainda são responsáveis por tudo que concerne ao lar e a família.

Fotografia 5: A condição de “belas, recatadas e do lar” perpetua-se na educação das mães para com suas filhas, quando determinados símbolos que definem a condição da mulher aceita socialmente são reforçados, como: a cor rosa, brinquedos que se referem ao trabalho doméstico, bonecas que precisam ser cuidadas e alimentadas por suas “mães”, a fragilidade posta com a imposição de que certas brincadeiras são apenas para os meninos, etc. Imagem disponível no site https://www.vintag.es/2016/12/vintage-housewives-32-lovely-vintage.html. Acesso em mar 2023.

No transcorrer dos tempos a questão da “mulher” avança por suas próprias conquistas, saindo unicamente das referências a “mulher no trabalho”, para as questões que a definem como ser e cidadã. Mas ainda hoje aquelas que ousam ocupar espaços e ações cultural e politicamente definidas como masculinas, são vistas como cortesãs que merecem ser apedrejadas e rejeitadas, são as impuras; e as que sucumbem a falsa moralidade/moralista – são as “belas, recatadas e do lar” – donas-de-casa, oprimidas e quantas vezes violentadas… silenciadas. “ No início era o Verbo, mas o Verbo era Deus, e Homem. O silêncio é o comum das mulheres. Ele convém à sua posição secundária e subordinada. Ele cai bem em seus rostos, levemente sorridentes, não deformados pela impertinência do riso barulhento e viril.” ((PERROT. 2005, p. 9)

(1) Pierre-Joseph Proudhon. (1809-1865) Publicista, economista e sociólogo francês, ideólogo da pequena burguesia. Um dos fundadores do anarquismo.

Referência:

FOUCAULT, Michel. Subjetividade e Verdade (Curso no Collège de France 1980-1981). Trad. Rosemary C. Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2016

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